Os médicos estão eticamente liberados para a prática de ortotanásia. A nova versão do Código de Ética Médica (CEM), que entra em vigor amanhã, recomenda aos profissionais que evitem exames ou tratamentos desnecessários nos pacientes em estado terminal. Em vez de ações “inúteis ou obstinadas”, como diz o texto, é aconselhada a adoção de cuidados paliativos, que reduzem o sofrimento do doente.
A inclusão do tema no código foi feita antes de uma decisão na Justiça sobre o assunto. Em 2006, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou uma resolução esclarecendo que a ortotanásia - suspensão do tratamento que mantém vivo artificialmente paciente sem cura ou terminal - não representava uma infração ética.
Apesar de ser uma prática frequente, a recomendação provocou polêmica. A Procuradoria da República no Distrito Federal ingressou com uma ação civil pública, comparando a ortotanásia ao homicídio. “A resolução foi suspensa por uma liminar, mas até hoje o mérito da ação não foi julgado”, conta o presidente do CFM, Roberto Luiz D’Ávila.
Mesmo sem o julgamento da ação, o CFM decidiu incluir a recomendação no novo código. “Não se trata de desobediência”, afirma D’Ávila. “A redação foi bastante cuidadosa para afastar qualquer comparação entre ortotanásia com outras práticas”, diz. “A medida não é para negar assistência. Há uma recomendação para que tratamentos desnecessários, que prolonguem o sofrimento, sejam evitados”, completa.
O novo código entra em vigor após dois anos de debates. Nesse período, médicos discutiram a inclusão de uma outra medida que evitaria o uso desnecessário de procedimentos, batizada de diretivas antecipadas em vida. No documento, espécie de testamento voltado para a saúde, a pessoa indicaria o que gostaria de receber quando gravemente enferma. “Não deu tempo de o assunto ser incluído no código”, diz o presidente do CFM. A intenção é voltar ao tema em uma resolução, que deve ser editada até dezembro.
O documento inclui uma série de resoluções que haviam sido editadas nos últimos anos, entre elas a proibição de consórcios para cirurgias ou a concessão de boletos de desconto em medicamentos.
Mercantilismo
O texto revela ainda a preocupação de evitar ações mercantilistas dos profissionais - determina, por exemplo, a declaração de conflito de interesses e a proibição de o médico participar de propagandas. Também não será permitido o recebimento de bônus graças à indicação de produto ou farmácia. “Isso é comércio. O profissional acaba obtendo vantagem pelo encaminhamento do paciente. Aí fica a pergunta: ele indicou porque o produto é melhor ou porque recebe uma gratificação?”, questiona D’Ávila.
O código não toca em um assunto delicado: o financiamento de viagens para médicos e a oferta de brindes. O tema vem sendo discutido entre indústria farmacêutica e a entidade médica. A ideia é criar um protocolo de intenção que, no futuro, vire uma resolução. Uma das propostas é a de que empresas financiem passagens só para profissionais que vão expor pesquisas ou debater em congressos.
Trazer garantias para os médicos, como a recomendação do consentimento informado por escrito, é outro objetivo. “Isso já existe, mas é feito de forma tácita”, diz D’Ávila. Por esse instrumento, o médico tem de explicar para os detalhes do procedimento, seus riscos e eventuais efeitos colaterais. Atualmente, a prática é adotada somente em procedimentos de grande porte. Feito em 1988, o código atual não fazia menção a técnicas de manipulação genética ou reprodução assistida.
Mudanças
Consentimento: paciente precisa autorizar procedimentos de maior risco, preferencialmente por escrito.
Reprodução assistida: manipulação genética é vetada; pesquisa terapêutica, liberada.
Pacientes terminais : é indicado evitar exames ou terapias desnecessárias .
Crianças: opinião de menores de idade tem de ser respeitada.
Obrigações: proibida relação de comércio com farmácias, receitar sem ver o paciente e uso de placebo em pesquisas quando há um tratamento eficaz.
Transparência: médico deve avisar sobre possível conflito de interesses comerciais.
‘Dupla porta’ poderá ser punida
Diretores de hospitais onde há tratamento diferenciado para usuários de planos de saúde e pacientes do sistema público estarão sujeitos a um processo disciplinar no Conselho Regional de Medicina, por discriminação. Também poderão ser punidos pela chamada “dupla porta” (que prevê filas distintas para pacientes do Sistema Único de Saúde e para os de planos privados) os médicos que trabalhem nas instituições.
“Antes do novo Código de Ética Médica, somente podiam ser punidos profissionais por irregularidades cometidas durante o exercício da atividade de médico. Agora isso foi ampliado: administradores de instituições, secretários de Saúde, professores também podem ser punidos por atividades que desrespeitem as normas éticas”, explica o presidente do Conselho Federal de Medicina, Roberto Luiz D’Ávila.
Com as novas regras, um secretário de Saúde que determine, por exemplo, que médicos tratem um número exagerado de pacientes em um curto espaço de tempo ou que não garanta condições adequadas de trabalho poderá ser alvo de um processo. D’Ávila esclarece, porém, que somente secretários de Saúde que sejam médicos podem ser processados.
O médico classifica a porta dupla uma das formas mais odiosas de discriminação existentes no setor da saúde.
“Em tese, assim que o novo código entrar em vigor, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, por exemplo, poderia ingressar com ações contra o atendimento diferenciado existente no Hospital das Clínicas”, diz o presidente do CFM. “Essa etapa seria uma medida mais drástica.”
Desde a década de 1990, parte dos hospitais públicos passou a adotar essa nova forma de atendimento. As instituições trabalham com duas filas: uma para pacientes de planos privados – geralmente com atendimento bem mais rápido – e outra para quem vem do Sistema Único de Saúde.
O argumento usado é de que, com recursos provenientes do pagamento de planos de saúde, é possível engordar o faturamento da instituição, o que traria benefícios para todos os pacientes. A tese, no entanto, sempre provocou críticas inflamadas, entre elas do ministro da Saúde, José Gomes Temporão.
Fonte: Jornal da Tarde
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.