Por Dra. Abigail Zuger / The New York Times
Já não se ouve mais tanta coisa sobre a Aids nos Estados Unidos. As poucas manchetes são reservadas para relatos do mundo em desenvolvimento, onde os jovens morrendo ainda têm apelo de partir o coração.
Mas a Aids persiste bem aqui nos Estados Unidos: nossas clínicas estão explodindo de pacientes e novos casos aparecem diariamente. Um milhão de histórias não são contadas, mas elas não são as tragédias gregas com as quais nos acostumamos.
Em vez disso, como ilustra o relatório da semana passada sobre um atleta da Flórida acusado de transmitir deliberadamente o HIV, o vírus causador da Aids, essas são fábulas sutis e complicadas, com questões morais que vão além da própria doença.
O atleta, Darren Chiacchia, cavaleiro que ganhou medalha olímpica de bronze, foi acusado, alguns meses atrás, de algo considerado crime capital de primeiro grau na Flórida: expor repetidamente um parceiro sexual ao HIV. Chiacchia recebeu seu primeiro teste positivo para o vírus em 2008, e seu parceiro, diz-se, tinha recebido resultado negativo quando a relação deles começou, no começo de 2009.
O relacionamento acabou com muita hostilidade, seis meses depois, e o parceiro entrou com uma queixa junto ao xerife, alegando que Chiacchia nunca tinha revelado sua infecção – que o parceiro só descobriu quando viu papéis médicos confirmando a doença. Não se sabe se o parceiro realmente contraiu HIV durante esse tempo. Mas o julgamento de Chiacchia começa em junho.
A maioria dos Estados decretou legislação punitiva nos dias de histeria em relação à Aids, um período que durou aproximadamente de 1981, quando os primeiros relatos sobre a síndrome foram publicados, até 1996, quando os “coquetéis” de drogas se mostraram notavelmente eficazes contra o HIV. Na época, transmitir a doença para um parceiro sexual que não sabia era considerado equivalente a tentativa de assassinato.
Esses estatutos inda estão em livros antigos, mas a ciência por trás deles mudou radicalmente. As pessoas ainda morrem de Aids nos Estados Unidos – o índice de mortalidade, depois de cair no final da década de 1990, tem permanecido constantes, em 16 mil por ano. Mas, para uma pessoa infectada em 2009 morrer de Aids no futuro, provavelmente seria necessária uma grande quantidade de insensatez ou falta de sorte: os medicamentos, se adequadamente prescritos e adequadamente tomados, parecem quase infalíveis.
Se fosse apenas uma questão de ciência, todos esses estatutos envolvendo a Aids seriam anulados amanhã mesmo. Mas a ciência foi apenas uma pequena parte do pânico criado. E o tratamento eficaz não alterou o resto dessa poderosa mistura emocional: o vírus ainda espalha terror, incertezas, vergonha e complicações infindáveis, seja a infecção escondida ou revelada.
Todos nós, não importa o grau de instrução, carregamos uma criatura eternamente primitiva no cérebro: é um homúnculo que sempre irá reagir a doenças – qualquer doença – com raiva, descrença e a busca por um culpado. Séculos atrás, queimamos bruxas e infiéis por envenenarem nossos poços; as doenças eram culpa dos inimigos (no século 15, a sífilis era considerada uma doença italiana na França e uma doença francesa na Itália).
Agora achamos que sabemos mais... Mas será que sabemos mesmo? Culpamos aquela mulher que tossiu no metrô por nossa gripe, a gigante produtora de carne por nossa intoxicação alimentar, todos os tipos de químicos e radiação eletromagnética por nosso câncer, e cadeias de fast-food por nosso diabetes e doença cardíaca. Não conseguimos ficar doente sem procurar um culpado.
Ao mesmo tempo, acreditamos profundamente na prevenção. Obviamente, se observamos nossa dieta e fizermos nossas mamografias e colonoscopias, lavarmos as mãos, tomarmos a vitamina mais badalada e comermos nossos hambúrgueres bem-passados, podemos evitar coisas ruins. Gerações inteiras cresceram sabendo que gente sensata “não se arrisca”, com a implicação de que, você pegar uma doença sexualmente transmissível, o único culpado é você mesmo.
Assim, de quem é realmente a culpa por uma nova infecção por HIV? É minha, por transmiti-la para você, ou sua, por ser estúpido e arrogante o suficiente para pegá-la?
O tribunal vai acabar resolvendo o caso da Flórida, onde, apesar das particularidades, o caso envolve menos infecção do que o velho lamento “Eu confiei em você e você me traiu”.
Mas as questões mais amplas perduram e eu desconfio que esses estatutos obsoletos sobre HIV também persistam. A Aids é apenas uma de centenas de infecções que podem ser transmitidas de uma pessoa para outra. Algumas viajam pelo ar, como a tuberculose; algumas pelo contato, como estafilococo. O ar que respiramos e as mãos que apertamos nunca serão seguros, assim como o sexo seguro não é inteiramente seguro. Enquanto formos seres humanos falíveis e litigiosos, alguns de nós irão para os tribunais e citarão uma lei de saúde pública bem antiga para satisfazer àquele primitivo monstrinho da culpa que mora na nossa cabeça.
Quanto à Aids, o fato é que, no caso da maioria das novas infecções, a linguagem da culpabilidade simplesmente não se aplica mais. Como Dr. Wafaa El-Sadr, vencedor do MacArthur e especialista em Aids da Columbia University, escreveu com colegas no “The New England Journal of Medicine” do mês passado, novas infecções por HIV estão hoje cada vez mais concentradas em bolsões específicos dos Estados Unidos. Elas são transmitidas entre os mais pobres, as pessoas sem direitos civis e socialmente marginalizadas, onde a educação abaixo do padrão significa que não há escapatória. Nesses locais, a prevalência da doença é tão alta (Washington tem índices tão altos quanto alguns países africanos) que só estar vivo já traz um risco de infecção.
Em outras palavras: se você é uma mulher que mora em determinado CEP, se apaixona e casa, e não tem nenhum parceiro sexual a não ser seu próprio marido, você tem risco de contrair HIV. Vemos essas mulheres em nossas clínicas, cada vez mais, mas não as vemos nos tribunais. Quem elas deveriam processar?
Fonte: Uol / New York Times News
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.