O Ministério Público Federal apresentou recurso em sentido estrito para que o Tribunal Regional Federal revise a decisão da 9ª Vara Federal de São Paulo que rejeitou a denúncia da Procuradoria da República contra os médicos legistas aposentados Harry Shibata (ex-diretor do Instituto Médico Legal), Abeylard de Queiroz Orsini e José Gonçalves Dias. Eles são acusados de falsidade ideológica por terem, em 1976, durante a ditadura, fraudado o laudo da morte do dirigente do PCdoB, Pedro Pomar, uma das três vítimas fatais do episódio conhecido como a Chacina da Lapa.
Na decisão em que rejeitou a denúncia, o juiz Silvio César Arouck Gemaque reconheceu que a morte de Pomar e as fraudes realizadas no IML para ocultar os verdadeiros autores do crime são crimes contra a humanidade. O magistrado afirma que sua decisão revela seu “entendimento pela possibilidade de punição dos crimes indicados na denúncia, eis que praticados contra a humanidade e imprescritíveis”, mas que o Supremo Tribunal Federal, ao não revisar a lei de Anistia, ao julgar a ADPF 153, em 2010, o deixa sem “alternativa senão rejeitar a denúncia”.
Para Gemaque, “ainda que em dissonância com o que tem sido decidido no âmbito dos Tribunais Internacionais (…) não há como não garantir o cumprimento das decisões tomadas pela Suprema Corte”. O juiz também afirma na decisão que os acusados têm idade elevada e que “talvez não haja mais tempo hábil para a responsabilização penal”.
Para o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, responsável pelo caso e autor do recurso, o juiz decidiu corretamente ao entender que a morte de Pomar e as fraudes realizadas após seu assassinato são crimes contra a humanidade e imprescritíveis, mas o mesmo não pode ser dito quando o magistrado aplicou a decisão do STF na ADPF 153 que validou a Lei de Anistia, pois esta lei “não é um documento jurídico válido” perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil é vinculado.
Segundo Mendonça, “a anistia brasileira é um típico exemplo de autoanistia, criada justamente para beneficiar aqueles que se encontravam no poder. Tal forma de anistia é claramente reprovada pelo Direito Internacional, que não vê nela qualquer valor. Não bastasse, o Congresso Nacional não possuía (em 1979, quando a lei foi aprovada) qualquer autonomia e independência e seria pueril crer que havia, àquela altura, uma oposição firme que pudesse se opor à aprovação da Lei de Anistia. Os opositores estavam, em sua imensa maioria, mortos, presos ou exilados. Foi, assim, criada apenas para privilegiar e beneficiar os que se encontravam no poder, buscando exatamente atingir o escopo ainda persistente: não haver a punição dos crimes praticados pelos agentes estatais, quando estes saíssem do poder. E até a presente data, infelizmente, estão plenamente atingindo seus objetivos.”
A Chacina da Lapa – Os dirigentes do PCdoB Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar e Ângelo Arroyo, que contavam 63 e 48 anos de idade, respectivamente, foram mortos a tiros, sem possibilidade de defesa, após um cerco policial com 40 homens do Doi-Codi do II Exército e da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, na manhã de 16 de dezembro de 1976, à casa localizada na Lapa, utilizada pelo partido, para reuniões restritas a membros do partido, que ainda estava na clandestinidade. Na madrugada de 16 de dezembro, no Doi-Codi, em consequência de torturas, morreu João Batista Franco Drummond (preso na noite anterior).
O MPF não conseguiu identificar agentes que participaram ou comandaram a ação que ainda estejam vivos para serem denunciados pelo assassinato, mas foi possível identificar as fraudes cometidas no laudo necroscópico de Pomar (o caso de Arroyo é tratado em outro procedimento) pelo então diretor do IML de São Paulo, Harry Shibata, e pelos legistas aposentados Abeylard de Queiroz Orsini e José Gonçalves Dias. Por isso, os três foram denunciados por falsidade ideológica.
Shibata foi requisitado para o serviço por Sérgio Fernando Paranhos Fleury, chefe do Dops, e a ordem era clara: que o laudo confirmasse a versão de resistência à prisão e “legalizar a morte”. Entretanto, Maria Trindade, que estava na casa e sabia que Pomar e Arroyo estavam desarmados, e o jornalista da TV Bandeirantes, Nelson Veiga, que chegou ao local antes do IML, viu que não havia armas junto aos corpos, conforme a cena montada pouco depois pelos agentes, que providenciaram dois revólveres e uma espingarda Winchester enferrujada para criar a cena de resistência ao cerco policial.
Empenhado em fazer a fraude dar certo, Shibata compareceu ao local e determinou que Dias e Orsini assinassem o laudo. Não contava, contudo, com o trabalho de dois peritos da Polícia Civil de São Paulo, que em um laudo demonstraram que não houve disparos de dentro para fora da casa.
No laudo necroscópico de Pomar, constou a versão policial que “o examinado faleceu ao manter tiroteio com a polícia após receber voz de prisão”. Uma análise posterior do laudo feita pelo médico Antenor Chicarino demonstrou, contudo, que diversas lesões na vítima foram omitidas no laudo, inclusive lesões típicas compatíveis com “zona de tatuagem”, a marca de queimado que indica pelo menos um tiro de execução, desferido bem próximo ao corpo, na região temporal.
Para o MPF, os legistas agiram conscientes da simulação e da finalidade de ocultar as verdadeiras circunstâncias da morte de Pomar. Na denúncia e na cota introdutória, o MPF esclarece que o crime se insere num contexto de graves violações de direitos humanos, crimes contra a humanidade, ocorridos num ataque sistemático do governo ditatorial contra opositores, armados ou não.
Não prescrevem – Segundo o MPF tem insistido em todas as denúncias oferecidas à Justiça desde 2012, os crimes cometidos pelos agentes da repressão não são passíveis de anistia e não prescrevem por três motivos: por terem sido cometidos num contexto de ataque sistemático à população civil brasileira para manter o poder tomado ilegalmente pelos militares em 1964; porque o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund, cuja sentença aponta que interpretações jurídicas que resultem em impunidade devem ser ignoradas; e porque o direito penal internacional prevê que crimes contra a humanidade não estão sujeitos a regras domésticas de anistia e prescrição.
Esta foi a quarta denúncia do MPF contra Harry Shibata, ex-diretor do IML de São Paulo, pelo crime de falsidade ideológica, envolvendo a produção de laudos necroscópicos inverídicos. No final dos anos 70, médicos brasileiros denunciaram o caso ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo que o julgou e condenou em 1988. Contudo, a condenação foi revertida 5 anos depois no Conselho Federal de medicina.
Autos nº 0011715-42.2016.4.03.6181. Para consultar a tramitação, acesse http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais/
*Informações da Procuradoria da República no Estado de S. Paulo
Espaço para informação sobre temas relacionados ao direito médico, odontológico, da saúde e bioética.
- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.