TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO
2ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS Nº
IMPETRANTE (ADVOGADO): RODRIGO BRITTO DE OLIVEIRA RIBEIRO (ATIVO)
PACIENTE:
AUTORIDADE COATORA: JUIZO DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE
PETROPOLIS
CORRÉU:
RELATORA: DES. KATIA MARIA AMARAL
HABEAS CORPUS. Artigo 121 c/c 61, II, g, na forma do artigo 13, §2º, a, todos do Código Penal. Imputação voltada a que, a ora Paciente e o corréu, livre e conscientemente, dirigindo sua conduta dolosa e finalisticamente, para a consecução do evento incriminado em lei, com animus necandi, por se tratarem de agentes garantidores, por exercerem a profissão de médicos, deixaram de prestar os exigidos cuidados à vítima, que veio a óbito devido a enfarto do miocárdio e edema pulmonar, tendo ambos violado dever inerente à profissão, pois, além de terem demorado a prestar atendimento à vítima, não efetuaram a correta interpretação do exame eletrocardiograma que, segundo ofício do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, aponta indiscutível configuração de infarto agudo do miocárdio, asseverando a denúncia que, os réus tinham obrigação de cuidado com a vítima, devendo mantê-la sob observação, ou requerer sua internação, até que os sintomas descritos viessem a sanar, a fim de impedir o resultado.
Denúncia inicialmente rejeitada, com base no artigo 395, III, do Código de Processo Penal, ao fundamento de que, em nenhum momento da investigação policial, cogitou-se que os denunciados tenham tido a intenção de matar a vítima, ou, ao menos, assumido o risco desse resultado, o que não teria, ainda, sido aventado pelos familiares dessa para quem, em sua perspectiva, os médicos teriam negligenciado tratamento de urgência de que aquela necessitava, confundindo, então, a denúncia, crime comissivo por omissão, com negligência, de modo que, ao imputar-se aos réus o delito de homicídio doloso, o teria feito sem lastro probatório mínimo. Decisão de rejeição que se submeteu a Recurso em Sentido Estrito do Ministério Público que, antes de ser recebido, foi reformada para ser admitida por outro Magistrado, seguindo-se decisão de um terceiro Juiz que, mesmo observando que o RSE não fora recebido, manteve o ato de admissão da denúncia, entendendo que esta descreve violação de dever “...inerente à profissão, descrição que se similariza com a modalidade imperícia, sendo esta uma das hipóteses de culpa”. Alegação de que, ou a decisão que recebeu a denúncia é nula, porque inobservou inteiramente que já existia uma decisão anterior, ou é nula porque violadora do artigo 589, do Código de Processo Penal, porque, em juízo de retratação, reformou a decisão que não recebeu a denúncia, antes que fosse admitido o RSE e intimados os réus para oferecer contrarrazões. Pretensão ao trancamento do processo penal, fundado em inépcia da denúncia, e ausência de justa causa. Liminar deferida para suspender o andamento da ação principal até o julgamento do presente Writ.
I – Não obstante o reconhecimento que se possa ter de que, o recebimento da denúncia foi proferido em juízo de retratação, decorrente da interposição de Recurso em Sentido Estrito regular e tempestivamente pelo Ministério Público, fora da fase processual adequada, ou seja, o Recurso sequer chegou a ser recebido e processado regularmente, com intimação dos recorridos para oferecerem contrarrazões, o que ensejaria a anulação da decisão então recorrida, no caso impõe-se a anulação do processo ab initio, desde o oferecimento da denúncia, inclusive, sanando eventual nulidade daquela decisão.
II - A denúncia que não descreve precisamente as circunstâncias de tempo e lugar, já que não detalha hora e local dos fatos, não há que ser tida como inepta, se de documentos que a instruem, tais como Auto de Exame Cadavérico e Laudos de atendimento hospitalar, se pode extrair a data do óbito da vítima e as demais circunstâncias referidas. Por outro lado, se o delineamento da conduta imputada revela incongruências conceituais que inviabilizam a defesa dos réus, tornando difícil a classificação da natureza do crime que lhes foi imputado e, em consequência, viciada a acusação, impõe-se o reconhecimento da inépcia da peça acusatória, ensejando sua nulidade. Com efeito, não há como se exercer defesa eficaz em relação a condutas ora ditas culposas, ora dolosas, que configurariam, em conjunto, um único crime doloso contra a vida (artigo 121, caput, do Código Penal). No caso, da narrativa da denúncia observa-se que, esta imputa aos réus, efetivo dolo direto, já que teriam agido com animus necandi, até porque, em nenhum momento afirma-se que assumiram o risco de produzir o resultado, ou seja, teriam dirigido sua conduta dolosa e finalisticamente, para a consecução do evento criminoso, por se tratarem de agentes garantidores, já que exerciam a profissão de médicos, do que se poderia concluir que, teriam agido com dolo direto, em razão deste fato. Na hipótese, ao aceitar a deflagração da ação penal, o Juízo reconheceu a figura do crime de homicídio doloso, por dolo eventual, decorrentes da violação de dever de ofício dos agentes garantidores, entretanto, ainda que, a responsabilidade criminal de indivíduos que assumem a posição de garantidores possa decorrer de conduta culposa ou dolosa, com base no artigo 13, §2º, do Código Penal, mister se faz delinear a tipicidade da conduta. O exame da peça acusatória indica que, a conduta de ambos decorreu de omissão - não atendimento a tempo, da vítima -, que em razão da qualidade de garantidor é classificada como conduta comissiva por omissão, vislumbrando-se, pois, acusação de crime doloso, por aplicação da figura do “dolo eventual”, e de ação - porque resultante de interpretação errônea de exame complementar, portanto erro de avaliação de exame médico -, ato imperito, configurando crime culposo, que não se coaduna com o dolo eventual.
III – Não há, porém, amparo ao pretendido trancamento do processo penal, se eventualmente existe justa causa para a deflagração de ação penal, mesmo que por delito diverso do descrito em denúncia que ora se anula. Na hipótese, não se discute que o óbito ocorreu e que parentes da vítima, teriam entendido que os médicos denunciados, agiram de forma negligente em seu atuar, circunstâncias que, então, deverão ser analisadas pelo Promotor Natural da causa para, se entender, promove a adequação ação penal, ou o arquivamento dos autos.
ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº , em que é Impetrante Dr. Rodrigo Britto de Oliveira Ribeiro e Paciente, em Sessão realizada em 22 de setembro de 2015, ACORDARAM, À UNANIMIDADE, os Desembargadores que compõem a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em CONCEDER PARCIALMENTE A ORDEM, nos termos do voto da Desembargadora Relatora.
RELATÓRIO
Trata-se de Habeas Corpus, com pedido de liminar de sobrestamento do feito instância até o julgamento do presente Writ, pretendendo, no mérito, o trancamento do processo penal a que responde a ora Paciente, pelo reconhecimento da inépcia da denúncia.
Sustenta que, a ora Paciente é médica cardiologista em atuação na cidade de Petrópolis e, há pouco mais de uma década, em janeiro de 2005, um paciente, com 46 anos de idade, por ela atendido, assim como por outro médico (codenunciado) na véspera, veio a falecer por infarto e edema pulmonar, no dia seguinte ao atendimento.
Alega que, o fato foi considerado um possível erro médico, tendo sido instaurado um Inquérito em julho daquele ano para apuração, sendo o delito capitulado no artigo 121, §3º, do Código Penal (homicídio culposo). Assevera que, passados 7 anos do fato, o Ministério Público apresentou uma denúncia absolutamente sem justa causa, que veio a ser rejeitada pelo Juiz de 1º grau.
Salienta que, após tantos anos de investigação esperava-se que fosse, no mínimo, lastreada em algum indício, por mais raquítico que fosse, sendo a inicial acusatória devidamente rejeitada, entretanto outro Juízo aportou em seu lugar, e procedeu a uma ilegal revogação da decisão anterior.
Argui que, a denúncia é inepta, não chegando a situar o fato imputado no tempo e no espaço, havendo erros em relação à data e ao local do óbito, prejudicando, assim, o exercício da Ampla Defesa.
Anota ainda que, a definição do dolo eventual e da imprudência consciente são conceitos simultaneamente excludentes e complementares e, se por um lado o dolo eventual constitui decisão pela possível lesão do bem jurídico protegido do tipo (há uma conformação com a eventual produção desse resultado, no nível da atitude emocional), a imprudência consciente representa leviana confiança na levitação do resultado de lesão do bem jurídico (confiando na ausência desse resultado, pela habilidade, atenção, ou cuidado na realização concreta da ação).
Aduz que, o Magistrado Carlos André Spielmann ao analisar a admissibilidade da denúncia, houve por bem em rejeitá-la, entretanto o Parquet interpôs Recurso em Sentido Estrito, sendo então proferida decisão genérica recebendo a denúncia, sem nenhuma menção a qualquer elemento do processo. A liminar foi deferida pela decisão contida no Doc. 00034, para determinar a suspensão da Audiência de Instrução e Julgamento, até o julgamento do presente Writ.
As informações estão no Doc. 00036, afirmando o douto Juízo a quo, ter havido a instauração de Inquérito Policial para apurar fato delituoso doloso de agentes garantidores, que vieram a provocar a morte da vítima José de Araújo Pereira.
Ressaltou S. Exa. que, a denúncia sugere que tenha havido dolo eventual, pro violação de dever de ofício e assunção do risco de produzir o resultado morte, associado ao exercício da medicina, acrescentando que, houve oitiva de testemunhas, juntada de múltiplos documentos, sendo, em tese, admissível a ação penal, pois como houve o resultado morte, há suspeitas razoáveis e factíveis de que tenha havido assunção do risco.
Asseverou que, o CREMERJ sugere que deve ter havido infração ética, do ponto de vista técnico, atribuível à ora Paciente.
Afirmou que, rejeitada a denúncia, foi interposto Recurso em Sentido Estrito e, em sede de juízo de retratação, a decisão foi reconsiderada e a denúncia recebida, diante das fundadas suspeitas (justa causa), não havendo como cercear o acusador que produz em contraditório, e sob a ampla defesa, a prova que leve ao enfrentamento da acusação.
O parecer da douta Procuradoria de Justiça, é pela concessão da ordem para trancamento da ação penal, diante da inépcia da denúncia ofertada (doc. 00042).
VOTO
À ora Paciente e ao corréu foi imputada a prática do crime previsto no artigo 121 c/c 61, II, g, na forma do artigo 13, §2º, a, todos do Código Penal.
A imputação volta-se a que, a ora Paciente e o corréu, livre e conscientemente, dirigindo sua conduta dolosa e finalisticamente, para a consecução do evento incriminado em lei, com animus necandi, por se tratarem de agentes garantidores, por exercerem a profissão de médicos, deixaram de prestar os exigidos cuidados à vítima, que veio a óbito devido a enfarto do miocárdio e edema pulmonar, tendo ambos violado dever inerente à profissão, pois, além de demorarem a prestar atendimento à vítima, não efetuaram a correta interpretação do exame eletrocardiograma que, segundo ofício do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, aponta indiscutível configuração de infarto agudo do miocárdio.
Assevera a denúncia ainda que, os réus tinham obrigação de cuidado com a vítima, devendo mantê-la sob observação, ou requerer sua internação, até que os sintomas descritos viessem a sanar, a fim de impedir o resultado.
Os autos revelam que, a denúncia inicialmente foi rejeitada, com base no artigo 395, III, do Código de Processo Penal, ao fundamento de que, em nenhum momento da investigação policial, cogitou-se que os denunciados tenham tido a intenção de matar a vítima, ou, ao menos, assumido o risco desse resultado, o que não teria, ainda, sido aventado pelos familiares dessa para quem, em sua perspectiva, os médicos teriam negligenciado tratamento de urgência de que aquela necessitava.
Nesse contexto, há que se concluir que a denúncia confunde crime comissivo por omissão, com negligência, e desse modo, ao atribuir aos réus a prática de crime de homicídio doloso, o teria feito sem lastro probatório mínimo.
Da decisão de rejeição, o Ministério Público interpôs Recurso em Sentido Estrito, mas antes que este fosse recebido, aquele decisum foi reformado para que a denúncia fosse admitida por outro Magistrado, seguindo-se decisão de um terceiro Juiz que, mesmo observando que o RSE não fora recebido, manteve o ato de admissão da denúncia, entendendo que esta descreve violação de dever “...inerente à profissão, descrição que se similariza com a modalidade imperícia, sendo esta uma das hipóteses de culpa”.
Entende, então, a impetração que, ou a decisão que recebeu a denúncia é nula, porque inobservou inteiramente que já existia uma decisão anterior, ou porque é violadora do artigo 589, do Código de Processo Penal, já que, em juízo de retratação, reformou a decisão que não recebeu a denúncia, antes que fosse admitido o RSE e intimados os réus para oferecer contrarrazões.
No ponto, não obstante o reconhecimento que se possa ter de que, o recebimento da denúncia foi proferido em juízo de retratação, decorrente da interposição de Recurso em Sentido Estrito regular e tempestivamente pelo Ministério Público, fora da fase processual adequada, ou seja, o Recurso sequer chegou a ser recebido e processado regularmente, com intimação dos recorridos para oferecerem contrarrazões, o que ensejaria a anulação da decisão então recorrida, no caso entende essa relatoria que a questão posta sub judice nesses autos, enseja a anulação do processo ab initio, desde o oferecimento da denúncia, inclusive, sanando eventual nulidade daquela decisão, pelo que se rejeita a alegação.
No que se à denúncia, não se discute que, deve descrever todas as circunstâncias do crime, de modo a permitir a ampla defesa, adequando-se aos termos do artigo 41, do Código de Processo Penal.
No caso, a peça acusatória não descreve precisamente as circunstâncias de tempo e lugar, já que não detalha hora e local dos fatos, porém não há que ser tida como inepta, se há documentos que a instruem, tais como Auto de Exame Cadavérico e Laudos de atendimento hospitalar, dos quais se pode extrair a data do óbito da vítima e as demais circunstâncias referidas na impetração.
Por outro lado, como bem sustentou a douta Procuradoria de Justiça, o delineamento da conduta imputada revela incongruências conceituais, que inviabilizam a defesa dos réus, tornando difícil a classificação da natureza do crime que lhes foi atribuído e, em consequência, viciada a acusação, impondo o reconhecimento da inépcia da peça acusatória, e ensejando sua nulidade.
Evidentemente, não há como se exercer defesa eficaz em relação a condutas ora ditas culposas, ora dolosas, que configurariam um único crime doloso contra a vida, o do artigo 121, caput, do Código Penal. A descrição da denúncia revela imputação de efetivo dolo direto aos réus, já que teriam agido com “animus necandi”, até porque, em nenhum momento o Ministério Público afirma que, eles assumiram o risco de produzir o resultado, ou seja, teriam dirigido sua conduta dolosa e finalisticamente, para a consecução do evento criminoso, por se tratarem de agentes garantidores, já que exerciam a profissão de médicos, do que se poderia concluir que, teriam agido com dolo direto, em razão deste fato.
Ao aceitar a deflagração da ação penal, o Juízo reconheceu a figura do crime de homicídio doloso, por dolo eventual, decorrentes da violação de dever de ofício dos agentes garantidores, entretanto, ainda que, a responsabilidade criminal de indivíduos que assumem a posição de garantidores possa decorrer de conduta culposa ou dolosa, com base no artigo 13, §2º, do Código Penal, mister se faz delinear a tipicidade da conduta. O exame da peça acusatória indica que, a conduta de ambos decorreu de omissão - não atendimento a tempo, da vítima -, que em razão da qualidade de garantidor é classificada como conduta comissiva por omissão, vislumbrando-se, pois, acusação de crime doloso, por aplicação da figura do “dolo eventual”, e de ação - porque resultante de interpretação errônea de exame complementar, portanto erro de avaliação de exame médico -, ato imperito, configurando crime culposo, que não se coaduna com o dolo eventual.
Por outro lado, não há amparo ao pretendido trancamento do processo penal, se eventualmente existe justa causa para a deflagração de ação penal, mesmo que por delito diverso do descrito na denúncia que ora se anula. Na hipótese, não se discute que o óbito ocorreu e que, parentes da vítima, teriam entendido que os médicos denunciados, agiram de forma negligente em seu atuar, circunstâncias que, então, deverão ser analisadas pelo Promotor Natural da causa para, se entender, promover a adequação ação penal, ou o arquivamento dos autos.
Por todo o exposto, voto pela CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM, para anular o processo desde o oferecimento da denúncia, inclusive, estendendo essa decisão ao corréu.
Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2015.
(data do julgamento)
Rio de Janeiro, 24 de setembro de 2015.
(data da entrega)
DESEMBARGADORA KATIA MARIA AMARAL
RELATORA
Espaço para informação sobre temas relacionados ao direito médico, odontológico, da saúde e bioética.
- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.