Editorial Folha de S.Paulo
Divulgadas nos últimos dias, duas notícias no campo da reprodução assistida mostram, a um só tempo, o avanço da sensatez na sociedade e a inabalável omissão do Congresso em relação ao tema.
Na última quinta-feira, esta Folha mostrou que a Justiça tem facilitado o registro de bebês fruto de ``barriga de aluguel``. Obtendo sentenças favoráveis, casais que ficarão com a criança conseguem emitir certidão de nascimento da qual conste apenas os seus nomes, sem menção à gestante.
No dia 3, soube-se que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) considera inconstitucional o teto de 50 anos fixado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para mulheres que desejem implantar embriões.
Há bom senso, sem dúvida, por trás dessas decisões, mas seu conteúdo chama menos a atenção do que sua forma. A matéria está sendo disciplinada pelo Judiciário e por órgãos reguladores, que carecem de legitimidade política para legislar ou de competência para regulamentar os aspectos jurídicos.
A culpa dessa desconjuntura é do Congresso. Bebês de proveta existem desde 1978, quando veio à luz na Inglaterra Louise Brown, o primeiro ser humano gerado por fertilização ``in vitro``. Hoje, estima-se que, a cada ano, nasçam 250 mil crianças com o auxílio de técnicas da reprodução assistida.
As implicações éticas, médicas e jurídicas decorrentes da possibilidade de fecundar óvulos fora do corpo, gerar e armazenar embriões, manipulá-los e implantá-los em qualquer útero funcional são muitas. Os possíveis dilemas vêm sendo discutidos há 36 anos.
Não obstante, os congressistas brasileiros não foram capazes de aprovar uma lei. Não é por falta de projetos. Vários foram sugeridos, debatidos e apensados. O mais maduro deles leva o número 1.184/03. Aprovado pelo Senado, tramita há mais de uma década na Câmara.
Em comum, tanto o projeto de lei 1.184 como as resoluções do CFM têm o fato de se pautarem por uma visão de mundo com doses de conservadorismo, temperada com pitadas de religiosidade. O exemplo maior dessa mentalidade é a proibição, sem motivos razoáveis, da escolha do sexo do bebê.
Na bioética, contudo, a melhor solução quase sempre passa pela maior autonomia. Os casais, devidamente orientados, são os mais aptos a ponderar riscos e benefícios de sua escolha. Ao legislador cabe apenas definir os princípios gerais da reprodução assistida e regular as questões jurídicas --que não são poucas nem fáceis.
Fonte: Folha de S.Paulo
Espaço para informação sobre temas relacionados ao direito médico, odontológico, da saúde e bioética.
- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.