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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Opinião: Médicos de pés descalços

*Por Wanderley M. D. Fernandes - Correio Braziliense

A importação de médicos estrangeiros sob pretexto da escassez de profissionais brasileiros no interior do país relembra a memorável conferência ``Assistência médica e sociedade``, de agosto de 1974, proferida no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, sob o patrocínio da Unesco e a presidência do oncologista americano Alfred Gelhorn (1914-2008). À época, Gelhorn disse: ``Achando impossível a melhoria das condições de saúde da população sem uma reforma estrutural socioeconômica, recomendo a implantação no Brasil do sistema dos ``médicos de pés descalços``.

Sucesso na China revolucionária de Mao Tsé-Tung (1949-1976), nas áreas rurais da República Democrática do Congo (1960-1964) e em outras regiões conflagradas da África, recebia apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS). Era o pressuposto do exercício da tal medicina básica, coincidentemente a mesma atual opinião utilizada pelo governo para a vinda dos médicos estrangeiros, segundo o ministro Alexandre Padilha. Trata-se de uma concepção reducionista da suma importância assistencial da medicina primária e, principalmente, ignorar as recentes descobertas a respeito das origens contemporâneas dos males humanos.

Ser é mente; o corpo, mero porta-voz. Não existe doença básica. O indivíduo é um complexo biopsicossocial. Institucionalizar simples organicismo ao ato do atendimento médico é confundir sintoma com doença, é negar a importância da escuta qualificada, da competência em reconhecer o que escapa ao óbvio da história clínica. Uma consulta serve a vários propósitos. Uma queixa pode ser uma pergunta ou uma resposta.

Bilhões anuais são gastos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em milhões de exames de imagens corporais, sendo que mais de 86% deles têm laudos normais. É o sobrediagnóstico do cotidiano, quando milhares de pessoas diariamente fazem da sua identidade a doença, o que um bom médico precisa saber reconhecer.

Pesquisas de David Van Heel, da Universidade de Queen Mary, de Londres, publicadas na revista Nature de 22 de maio último, sobre patologias que até recentemente atribuía-se causas predominantes as heranças genéticas, exemplo as autoimunes — como psoríase, diabetes tipo 1, esclerose múltipla e outras —, atualmente emitem sinais inconfundíveis de suas naturezas também emocional e socioambiental, exatamente como acontece com a maioria das demais.

O conhecimento sensível, de profissionais bem formados, é imprescindível para os diagnósticos diferenciais e a redução drástica dos custos desnecessários na saúde pública. Howard Barrows (1928-2011), em seu livro Developing clinical problem — Solving skill, de junho de 1991, afirmava que ``um médico preparado, após história e exame físico bem realizados, tem chance de chegar à hipótese diagnóstica correta em 90% dos casos``.

Organicismo simplório como parte da solução importada para atender as populações interioranas do país apenas revive modelos assistencialistas eleitoreiros. Redes de tevê, internet e todas as outras mídias assemelham à complexidade psicossomática dos brasileiros, sejam urbanos, rurais, sertanejos ou indígenas. Medicina primária, principalmente em regiões isoladas, é função para médicos experientes, generalistas vividos, não recém-formados, muito menos estrangeiros com limitações até da língua falada. Verdadeiramente interior, independentemente da região ou lugar, é a subjetividade humana.

Quanto à segurança do atendimento prestado, há anos que espaços de atuação médica vêm progressivamente sendo perdidos para enfermeiras que ocupam funções assistenciais e na gestão pública; soldados, cabos e sargentos bombeiros militares têm substituído centenas de passados empregos e salários de médicos civis nos atendimentos pré-hospitalares; as chefias de equipes das emergências nos hospitais regionais do Distrito Federal, antes cargos de médicos, hoje são ocupadas por outros profissionais e até por leigos semialfabetizados e, após a aprovação do Projeto de Lei das Drogas nº 7.663/2010, no Senado, os atingidos serão os psiquiatras e afins. Em seus lugares, pastores e obreiros evangélicos no trato com dependentes químicos, nas ditas ``comunidades religiosas terapêuticas``.

Então, o que estabelecer como qualidade do atendimento? Em O princípio vida, reflexões do filósofo naturalista Hans Jonas (1903-1993) sintetizam as formulações ardilosas e evasivas da indiferença soberba, do que faz que ignora o certo e o necessário. Médicos de pés descalços, pusilânimes e ideológicos, certamente a população brasileira nem precisa nem merece, com ou sem revalida.

Fonte: Wanderley M. D. Fernandes - Correio Braziliense