Onze pacientes teriam morrido em 2016 em unidade; clínica nega mortes.
Promotoria e Fundação Municipal de Saúde aguardam audiência na Justiça.
Pacientes amarrados em cadeiras ou na cama, colchões velhos e rasgados, banheiros em péssimas condições, gritos de socorro e até mortes por negligência. São muitas as denúncias contra uma unidade psiquiátrica em Niterói, na Região Metropolitana do Rio. O G1 teve acesso a fotos e dados sobre a Clínica de Saúde Alfredo Neves, que mostram que, apesar de problemas antigos, a unidade de saúde continua funcionando e em condições precárias para pacientes já fragilizados por sua condição psíquica.
Na sexta-feira (11), a clínica no bairro de Santa Rosa tinha 70 pacientes internados. O ano começou com 88. Onze morreram até o fim de outubro, segundo dados obtidos pela equipe de reportagem – seja na própria casa de saúde ou após serem transferidos para outras unidades –, outros quatro foram transferidos e três tiveram alta.
A clínica, por meio de seu advogado, negou a informação de que 11 pacientes da instituição morreram em 2016, mas não deu mais detalhes. Todas as informações sobre o estado dos pacientes, segundo George Vieira, foram passadas para a Fundação Municipal de Saúde e a Prefeitura de Niterói. Procurada para falar sobre as imagens registradas na unidade, a clínica não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Ainda segundo fontes ouvidas pelo G1, vários pacientes apresentavam quadro de desnutrição, feridas na pele e maus-tratos.
"Lá dentro, a vida dessas pessoas não vale nada", disse uma agente de saúde mental sobre a situação dos pacientes.
O Ministério Público entrou com uma ação civil pública contra a Fundação Municipal de Saúde, a Casa de Saúde Alfredo Neves, o Instituto Francisco Leomil, a Procuradoria Geral do Estado e a Prefeitura de Niterói, pedindo para que se iniciasse o processo de desinstitucionalização das duas unidades, e os pacientes pudessem ser transferidos.
Três foram transferidos para o Hospital Municipal Carlos Tortelly, também em Niterói, e outros três receberam alta desde que a Fundação Municipal de Saúde passou a fazer visitas ao local. Uma paciente foi transferida para outra unidade psiquiátrica em Niterói depois de o Ministério Público ter tomado ciência de seu caso.
A clínica pode ser descredenciada e parar de receber o repasse dos leitos disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo é que todos os pacientes saiam da unidade e sejam direcionados para Centros de Atenção Psicossociais (Caps), para suas próprias famílias. Em casos mais graves, é previsto que sejam internados em hospitais psiquiátricos como o de Jurujuba, também em Niterói.
A Prefeitura de Niterói afirma que os repasses vêm sendo feitos às instituições, sendo que o último foi realizado em outubro. No entanto, de acordo com o site do Fundo Nacional de Saúde, que repassa os recursos do SUS para unidades particulares que mantenham vínculos com o Ministério da Saúde, não houve pagamentos para as duas unidades em 2016. Elas possuem CNPJs diferentes, mas funcionam no mesmo endereço, na Rua Doutor Sardinha, número 164.
Relatos
Fontes que entraram em contato com o G1 mostraram as fotos e contaram que as condições do local incluem "camas de ferro enferrujadas, colchões velhos rasgados, banheiros imundos, teto com pedaços despencando exibindo a fiação elétrica e a tubulação hidráulica".
“Os pacientes têm traços claros de desnutrição, alimentação inadequada e negligência. Todos eles praticamente têm quase todos os dentes podres, problemas na pele. Um deles tinha um problema de profusão do reto, quando o ânus fica para fora do corpo. Questionados sobre isso, os profissionais disseram: 'Ah, ele sabe como botar no lugar'”, afirmou um agente de saúde mental que esteve no local.
O tratamento psiquiátrico, segundo outra fonte que esteve no local, também é deficiente.
“Hoje em dia é lei que haja uma equipe multidisciplinar. Mas não existe. Há uma terapeuta ocupacional que vai para lá uma vez por semana, quando vai. É muito raro. E não há qualquer encorajamento para levar os pacientes para casa. A maioria está lá há 15, 20 anos”, explica.
Moradores da região ouvidos pelo G1 contam que já ouviram gritos à noite dos pacientes da clínica. Muitos deles pedem socorro, segundo os relatos.
Histórico problemático
Em março, o Ministério Público Estadual entrou com uma ação pedindo a desinstitucionalização dos pacientes internados nas duas instituições – o caso está na 1ª Vara Cível de Niterói.
Apenas um mês depois, em 28 de abril, houve uma reunião entre os representantes das clínicas, da Secretaria Estadual de Saúde, da Fundação Municipal de Saúde e do subsecretário de Saúde de Niterói, Marcelo Ribeiro Alves de Faria. Na ocasião, ficou acertado que seria criado um plano de emergência para remover os pacientes do local.
O objetivo era retirar os pacientes e encaminhá-los às instituições de tratamento mental localizadas em seus próprios municípios. Atualmente, existem 70 pacientes internados nas duas clínicas, sendo que 24 são de Niterói.
No entanto, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, as direções das duas instituições têm dificultado que as equipes da Fundação Municipal de Saúde (FMS) prestem atendimento aos pacientes de forma adequada, com acesso restrito aos pacientes e a prontuários médicos. Por conta disso, a instituição enviou o caso à Justiça. Tanto a promotoria quanto a FMS aguardam a audiência que vai tratar do caso.
A psiquiatra Ana Paula Guljor, especialista em saúde mental, afirmou que os problemas na unidade já vêm de longa data. Ela viu as imagens às quais o G1 teve acesso.
"Estas fotos apresentam o que todos que buscam transformar o modelo de cuidado em saúde mental já sabem: violações de direitos humanos sempre aconteceram nos hospitais psiquiátricos. Desde questões ligadas à higiene, às práticas de isolamento, torturas físicas até a manutenção destas pessoas em algo semelhante à prisão perpétua", disse a pesquisadora, atualmente no laboratório de estudos e pesquisas em saúde mental e atenção psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) da Fiocruz.
"Espero que sejam adotadas medidas drásticas no sentido de potencializar as redes de cuidado em liberdade em Niterói", ressaltou a PHD em saúde mental, que já foi diretora do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, referência em Niterói, entre 2013 e 2015.
Em nota, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) disse que realizou fiscalização na Casa de Saúde Alfredo Neves em 2015 e, em razão das inúmeras irregulares constatadas, entrou com uma representação junto ao Ministério Público, para que fossem tomadas as devidas providências, e abriu sindicância para apurar as irresponsabilidades. O Cremerj afirmou ainda que, diante de novas denúncias apresentadas, realizará nova fiscalização na unidade.
Caso de homicídio arquivado
A mãe de um paciente que morreu dentro da unidade em 2006 abriu um processo contra a direção da unidade, formada por Arídio Sérgio Martins, Vitor Henrique Gagliardo, Jonas Wagman e Francisco Juvenal Furtado e Silva. Segundo ela, JR (nome fictício) estava inicialmente internado em Jururjuba.
Enquanto ele almoçava, a direção pediu à família que levasse sandálias para que ele permanecesse no local. Quando voltaram com o calçado, descobriram que JR havia sido transferido para a Casa de Saúde Alfredo Neves, sem a autorização da família.
Quando a família, enfim, conseguiu visitar JR, ele estava "amarrado pelas mãos e pés, deitado sobre um plástico que cobria o colchão, todo urinado e com mau cheiro". Após 13 dias internado, o paciente foi levado para o Carlos Tortelly, onde morreu em 10 de novembro daquele ano. A causa da morte foi uma pneumonia, juntamente com uma septicemia. JR também tinha sinais de escara infectada – úlcera na pele.
Sentença extinta
Na primeira sentença, publicada em abril de 2014, o juiz, ao condenar Vítor e Jonas por homicídio culposo, diz "evidente negligência de Vitor contribuiu para o desfecho trágico da morte de um paciente que tinha apenas problemas psiquiátricos, mas não físicos, e que acabou falecendo por uma sucessão de erros administrativos e médicos". A suposta negligência de Jonas, médico da instituição, também foi citada na decisão da 1ª Vara Cível de Niterói.
Outro citado na decisão, Francisco foi condenado por homicídio culposo e por falsidade ideológica, por ter citado em documento "declaração falsa de que o ofendido dera entrada naquela unidade com subnutrição e características de fragilidade salutar, o que não consta do prontuário do paciente, que, ao contrário, descreveu ausência de lesões e higiene regular do mesmo", como diz o texto do juiz.
Francisco, Vitor e Jonas tiveram pena fixada em um ano, transformadas em prestação de serviços comunitários e pagamento de cestas básicas. Arídio Sérgio Martins foi absolvido de todas as acusações.
Em setembro de 2014, no entanto, a mesma vara julgou extinta a punibilidade dos três condenados, e o caso foi definitivamente extinto pela Justiça.
Paciente transferida
Uma paciente de 54 anos, ex-assistente social e que estava na clínica há pelo menos 20 anos, foi recém transferida para o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, também em Niterói, na Região Metropolitana. Segundo a coordenação de saúde do hospital, ela chegou com uma situação clínica "bastante complicada". Até a transferência, a paciente estava com cerca de 30 quilos e utilizando fraldas o dia inteiro. Ela comia amarrada à cama.
"Ela me dizia: 'Me tira daqui. Me dá comida'", contou um dos agentes que teve contato com a paciente.
Outro caso chocou as equipes que foram para o local. Um paciente de Itaboraí de 62 anos passou mal durante um dia inteiro, com quadro de vômito e enjoos. Ele ficou na enfermaria até morrer. Devido a procedimentos burocráticos, o corpo da vítima ficou na enfermaria da unidade durante dois dias. "O rosto dele era irreconhecível", disse um agente.
A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Niterói foi alertada sobre a situação das duas unidades.
"Esse problema já se arrasta há anos e é uma vergonha para a cidade que continue. As administrações municipais mudam e aquelas pessoas continuam abandonadas lá. Nem monstros mereceriam o tipo de tratamento. Já denunciei várias vezes na Câmara Municipal, mas nem prefeitura, nem a Justiça parecem se sensibilizar com essa situação" , disse o vereador Renatinho (PSOL) – presidente da Comissão.
Fonte: Globo.com
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.