PORTUGAL
Equipa de português fez algo inédito até agora em laboratório: primeiro, parou o desenvolvimento de embriões de ratinhos durante um tempo recorde, depois retomou-o. Para tal, interferiu-se com a acção de uma proteína. Este trabalho pode ter inúmeras implicações na medicina.
E se o corpo humano ficasse em animação suspensa durante um mês? É só imaginar que teríamos um comando e carregaríamos no botão de stand-by. O metabolismo estaria a funcionar, mas tudo estaria muito lento. Já imaginou o que seria possível fazer? Pensando na medicina, poderiam fazer-se transplantes mais seguros ou tratamentos do cancro mais eficazes. Para já, nada disto é possível no ser humano. Mas há uma grande novidade: nos EUA, a equipa liderada pelo investigador português Miguel Ramalho Santos conseguiu suspender a actividade de embriões de ratinhos durante um mês.
Pormenor importante: até então, a suspensão do desenvolvimento de embriões de ratinhos só tinha acontecido, no máximo, até dois dias em laboratório. As experiências divulgadas esta quinta-feira, na revista Nature, foram realizadas principalmente pela investigadora Aydan Bulut-Karslioglu no laboratório de Ramalho Santos, na Universidade da Califórnia, em São Francisco.
Nada fazia prever que os embriões de ratinhos ficassem em animação suspensa durante um mês. Ou seja, o seu desenvolvimento não avançou, ficou parado no tempo.
A equipa estava a estudar a regulação do ADN nas células estaminais. Em concreto, investigava as células estaminais embrionárias pluripotentes. O que têm de especial estas células? Existentes nos embriões, são elas que vão dar origem a todos os tipos de células do organismo, desde as do fígado e da pele até às do sangue e coração.
As células estaminais estavam em cultura no laboratório e tinham sido recolhidas em blastocistos (embriões com cinco ou seis dias de desenvolvimento) de ratinhos. Esses embriões seriam depois transferidos para o útero de fêmeas. Inesperadamente, houve uma reviravolta no caminho da investigação, quando a equipa usou substâncias que inibiram uma proteína – a mTOR, que transmite informação aos nutrientes nas células, para que elas continuem a funcionar. “A mTOR afecta a actividade de transformação dentro do núcleo e vários aspectos do metabolismo”, diz-nos Miguel Ramalho Santos.
Foi nesta proteína que os cientistas usaram vários tipos de inibidores e conseguiram assim desacelerar a actividade das células. “A mTOR é um bonito regulador do tempo de desenvolvimento, que trabalha para ser um sensor de nutrientes. Não serve apenas para conduzir as células no seu crescimento a torto e a direito; serve para sintonizar o crescimento celular baseado no nível de nutrientes disponível no ambiente”, explica Miguel Ramalho Santos, num comunicado da Universidade da Califórnia.
“Foi surpreendente”
Perante este efeito inesperado, surgiu uma nova questão que mudou o rumo do trabalho: se essa suspensão ocorreu nas células estaminais embrionárias, por que não fazer a experiência mesmo em embriões? “Queríamos perceber se o efeito era o mesmo ou se tinha outra relevância no embrião”, conta Miguel Ramalho Santos.
O investigador e a sua equipa suspeitavam que esses inibidores da mTOR também teriam efeito nos embriões, mas pensavam que essa animação suspensa seria apenas de um dia ou dois. Até porque isso já tinha sido observado em laboratório, por outras equipas. Suspeita falsa: os embriões dos ratinhos estiveram em animação suspensa cerca de um mês.
O que significa isto? Quer dizer que não há morte cerebral, sublinha Miguel Ramalho Santos, mas que ocorre a manutenção da actividade. E, mais tarde, quando a equipa decidiu terminar essa suspensão, os embriões puderam ser transferidos para o útero das fêmeas. Desenvolveram-se e nasceram.
Para contextualizar, a gravidez nos ratinhos dura cerca de 20 dias. Fazendo um paralelismo com os humanos, nos quais uma gravidez dura cerca de nove meses, é como se um embrião ficasse em animação suspensa durante um ano.
Na natureza, a animação suspensa dos embriões também existe – é a chamada “diapausa”. Em mamíferos como os ratinhos o desenvolvimento dos embriões abranda durante um período. A fêmea continua activa e os blastocistos no seu útero é que ficam com o desenvolvimento suspenso. “A diapausa é uma estratégia fisiológica reprodutiva bastante utilizada no reino animal, incluindo nos mamíferos, mas é uma regulação que permanece pouco compreendida”, acrescenta o artigo científico.
As surpresas não ficaram por aqui. Normalmente, as células estaminais embrionárias dos ratinhos têm cerca de 6000 genes activos. Mas aplicando os inibidores da mTOR, verificou-se também a supressão da actividade genética em quase todos os genes das células dos embriões. “Com excepção de umas poucas dezenas de genes, todos tinham a actividade diminuída nas células pausadas”, explica-nos o investigador. “Atenção, que a actividade reduzida não quer dizer que os genes estão desligados, estão apenas menos activos.”
Ao certo, Miguel Ramalho Santos não tem presente agora quantos ratinhos foram usados neste estudo. Faz uma estimativa: “Talvez entre 100 a 200. Precisamos de ratinhos para obter os embriões e depois para os transferir para as fêmeas.”
E quantos blastocistos em pausa de ratinhos nasceram? No total, foram 15. E tiveram um crescimento normal, a nível do aumento de peso, e são férteis. “Até agora, não lhes detectámos nenhum problema, não quer dizer que não os tenham”, aponta.
“Foi uma descoberta surpreendente! É a primeira vez que se descobre em laboratório a maneira de suspender o blastocisto, em ratinhos”, resume o investigador. Mas este é apenas um primeiro passo. “Suspeitamos que este desenvolvimento se aplique a outras células estaminais [não só as dos embriões, mas também as que existem no organismo adulto]. E aí esta suspensão, se funcionar, poderá facilitar o estudo da função dessas células e ser mais uma ferramenta para as controlar.”
Afinal, que aplicações pode ter este estudo? Miguel Ramalho Santos suspira, e começa por falar do seu lado de apaixonado pela ciência: “Foi uma alegria e deu-me um enorme gozo, porque gosto de fazer ciência básica e dar azo à criatividade.” Ainda há algo mais: “Há a sua aplicação, que pode acontecer só daqui a uns anos. Ou pode até nem acontecer.”
Seja como for, esta descoberta “acidental”, como destaca, desencadeia já algumas reflexões sobre as implicações que ela poderá ter na medicina. Por exemplo, após um transplante de órgãos há um período crítico em que as células se podem multiplicar mais rapidamente. “A nossa especulação é que se poderá suspender a actividade das células e o transplante ser efectuado”, comenta Miguel Ramalho Santos.
Ou ainda suspender o desenvolvimento dos embriões na fertilização in vitro. “A animação suspensa pode adiar a transferência do blastocisto [para o útero], para coincidir com a melhor altura do ciclo da mulher.” Com isto, poderia ganhar-se mais tempo para realizar diagnósticos genéticos antes da transferência do embrião. Assim como na medicina regenerativa a animação suspensa poderia atenuar a actividade das células estaminais: “Pode ajudar a sincronizar populações celulares e/ou evitar o crescimento descontrolado em situações de regeneração ou de transplante de células geradas in vitro.”
O caso do cancro já se apresenta agora como mais problemático. Já estão já a decorrer ensaios em pessoas, usando a inibição da mTOR, embora noutros laboratórios. A inibição da mTOR pode ser teoricamente útil, mas tem riscos. Poderia travar-se a multiplicação das células cancerosas, só que não as estaríamos a matar. “Os nossos resultados sugerem que os inibidores de mTOR podem desacelerar o crescimento do cancro e encolher os tumores, mas podem deixar para trás células estaminais do cancro dormentes que podem voltar a espalhar-se depois da interrupção do tratamento. Teríamos de usar uma segunda ou terceira linha de fármacos especificamente para matar as restantes células dormentes”, diz Miguel Ramalho Santos, no comunicado.
Ainda como hipótese, talvez até se pudesse atrasar o envelhecimento usando a animação suspensa. “Só será possível obter resultados daqui a uma ou várias décadas.”
A equipa já está a ver se o mesmo efeito que observou nas células estaminais e embriões de ratinhos também acontece em células humanas. “Estamos a fazê-lo”, diz Miguel Ramalho Santos.
Novas perguntas norteiam agora a investigação: como vão as células humanas sobreviver em suspensão? Ou que outros tipos de células estaminais podem ser suspensas? “Vamos perceber isso e depois talvez surjam outras surpresas como esta.”
Fonte: PUBLICO.pt
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.