*Por DEBORA DINIZ - Antropóloga e professora da UnB
Uma viagem ao Uruguai pode ser a saída para um grave problema de saúde pública no Brasil. Em vez de se submeterem a clínicas clandestinas ou a remédios adulterados, as mulheres brasileiras podem tomar um ônibus ou avião e realizar um aborto seguro naquele país. O Senado da nação vizinha aprovou a lei que descriminaliza o aborto até a 12ª semana de gestação. Nos próximos dias, o presidente Jose Pepe Mujica assinará a lei, o que já é dado como certo, pelo extenso debate público que antecedeu a decisão do Congresso. O Uruguai será o primeiro país da América Latina a reconhecer o aborto legal e seguro como uma necessidade de saúde das mulheres. Muito embora as mulheres uruguaias ainda tenham que se submeter a um extenso protocolo de avaliação antes de ter acesso ao serviço, é um grande avanço na região.
O vanguardismo uruguaio tem raízes históricas e políticas. A mais importante delas é o espírito secular da vida política — assim como a França é um exemplo de laicidade para os países europeus de tradição cristã, o Uruguai sofreu a dureza da ditadura militar e se redemocratizou à luz de princípios laicos. Sim, religião é matéria de ética privada para a ordem política uruguaia, o que não significa que a disputa política no Senado Federal tenha sido simples. Foram 17 votos favoráveis contra 14 contrários à nova lei. Mas a democracia laica saiu vitoriosa. Mulheres que, por razões filosóficas ou religiosas, se creem contrárias ao aborto serão livres para professar suas crenças. O que o Estado uruguaio agora protegerá é o direito das outras mulheres a fazerem suas escolhas livremente.
A decisão não foi ato de voluntarismo solitário dos parlamentares. Ao contrário, foi um importante exemplo de como as instituições democráticas devem funcionar na América Latina. Há quase uma década, movimentos sociais, organizações médicas e acadêmicos defendem o que ficou internacionalmente conhecido como “modelo uruguaio de redução de danos”. O aborto era proibido no Uruguai, mas o acesso à informação, um direito fundamental. Médicos e enfermeiras eram proibidos de auxiliar mulheres a abortar de maneira segura, mas se sentiam no dever de informá-las sobre riscos e seguranças de cada método. Esse dever era garantido com o programa de redução de danos que vigorou no país antes da aprovação da lei agora em 2012. Há uma fronteira tênue entre praticar um aborto contra a lei e proteger as mulheres, informando-as sobre como reduzir os danos de um aborto clandestino. O modelo uruguaio desafiou o tabu do aborto, rompendo o cerco do silêncio, primeiro, sobre como proteger as mulheres na clandestinidade e, agora, sobre como oficialmente proteger suas necessidades de saúde como um direito reprodutivo.
As leis se aplicam aos indivíduos nos territórios que eles habitam. Mas as leis não habitam os corpos como uma identidade de nacionalidade que os acompanha além das fronteiras, exceto para crimes contra a humanidade, como foram os deixados pelos regimes totalitários. Uma mulher que aborte no Brasil será punida com prisão, seja ela brasileira ou uruguaia. Uma mulher que aborte no Uruguai será, em breve, protegida pelo Estado, seja ela brasileira ou boliviana, desde que residente. Essa perturbação da moral entre lei e corpo é uma estratégia de longa data utilizada pela organização não governamental Women on Waves (Mulheres sob as Ondas), que neste momento provoca a lei marroquina sobre aborto. Atracada na fronteira entre mares internacionais e locais, a bandeira holandesa do barco autoriza as mulheres a se deslocarem entre países para um aborto legal. O que separa o Marrocos da Holanda são alguns minutos de barco. Sem barcos, mas com uma passagem de ônibus ou avião, o Uruguai será um país acolhedor às mulheres que, hoje, se escondem e temem a lei penal pela clandestinidade do aborto no Brasil. Mesmo que a lei seja somente para mulheres uruguaias ou estrangeiras residentes, o próprio mercado privado se encarregará de oferecer alternativas para o acesso das estrangeiras ao serviço. Basta esperar.
Quero crer que o exemplo do Uruguai provoca a ordem conservadora vigente no Brasil. Mesmo sob o temor da lei penal, há saídas para as mulheres que necessitam de um aborto — o uso do medicamento misoprostol foi uma descoberta feminina que diminuiu a mortalidade materna nas últimas duas décadas no Brasil. Mas o misoprostol é vendido sem regulação, sem controle de procedência ou segurança. A verdade é que as mulheres nem sequer sabem se o misoprostol que usam é mesmo o medicamento prometido para o aborto. Uma viagem ao Uruguai é a mais nova saída. Muitas delas sairão do Piauí para Montevidéu para usar o mesmo medicamento. A diferença será que não mais temerão a polícia, estarão protegidas por médicos e enfermeiras que não as julgarão e, o mais importante, não arriscarão suas vidas por uma necessidade de saúde ignorada por uma ordem moral que insiste em sobrepor democracia e religião.
Fonte: Correio Braziliense
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.