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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Interação entre Justiça e academia criou Health Care Act

*Por Sérgio Antônio Ferreira Victor

No último dia 28 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos tornou conhecida sua decisão no caso NFIB v. Sebelius, que examinou a constitucionalidade do Health Care Act, a polêmica lei que criou o sistema público de saúde nos EUA. Apesar de recente, esse julgamento já é considerado um marco, seja pela repercussão do caso mesmo antes do pronunciamento da Supreme Court, seja pela solução engenhosa construída pelo Chief Justice John Roberts para as intrincadas questões constitucionais que dividiram a Corte e a opinião pública norte-americana.

Nos Estados Unidos não havia um sistema de saúde público abrangente. A cobertura era deficiente e restringia-se, basicamente, a casos de emergência. Somava-se a isso o fato de que grande parcela da população não tem condições ou prefere não arcar com o pagamento de planos de saúde privados. O resultado era um significativo déficit no que concerne à prestação de serviços de saúde à população em geral. A mudança desse cenário foi um dos principais pontos do programa de governo apresentado durante a campanha eleitoral do então senador Barack Obama. Ela se concretizaria por meio da aprovação de lei que veiculasse uma política pública ampla no setor.

Eleito presidente da República, Obama foi buscar na prestigiosa Harvard Law School a colaboração de Cass Sunstein, um dos mais célebres juristas do país na atualidade e antigo colega de Obama quando ambos ensinavam na Chicago Law School. Foi nesta instituição que Obama pôde conhecer a inovadora abordagem do Direito proposta por seu colega, muitas vezes baseada no que se denomina behavioral economics. Convidado pelo presidente eleito para trabalhar na Casa Branca como administrador-chefe do poderoso Office of Information and Regulatory Affairs (OIRA), Sunstein tomou posse no cargo e, desde o princípio, foi apelidado pela imprensa norte-americana de ‘Regulatory czar’.

Em uma de suas obras mais recentes — Nudge: o empurrão para a escolha certa —, escrita em parceria com o economista Richard Thaler, Sunstein pretende demonstrar que avanços significativos podem ser atingidos por meio de “cutucões” que direcionem as pessoas rumo às melhores escolhas. Com isso, querem dizer que não é preciso criar regras impositivas para obrigar os indivíduos a agir nesse ou naquele sentido mas apenas estabelecer normas de estímulo. No melhor estilo da tradição utilitarista dos anglo-saxões, essa abordagem contorna o problema do cerceamento da liberdade de escolha individual e ainda incentiva ações que contribuem para o bem comum.

Esse é o espírito por trás da concepção do Health Care Act. O diploma legislativo, aprovado pelo Congresso após calorosos debates entre republicanos e democratas, gerou especial polêmica ao criar o individual mandate, isto é, a obrigação de os indivíduos (com exceção de uma minoria) de escolher entre contratar um plano de saúde privado (comprovando-o na declaração anual de imposto de renda) ou arcar com uma multa em razão da não contratação. A Suprema Corte respaldou essa determinação da lei.

Mas a interação entre a Corte e a Academia no caso do Health Care Act vai além de sua gênese. Manifestações de professores de Direito de todo o país foram constantes no decorrer de toda a discussão. Antes de proferida a decisão, os docentes mais respeitados dos Estados Unidos escreveram diversos artigos — publicados em jornais, sites especializados, blogs, entre outros meios —, emitindo suas opiniões sobre o caso e ofertando à comunidade jurídica, à sociedade em geral e aos juízes da própria Suprema Corte as suas análises da matéria em debate, em um processo memorável de participação da Academia na vida político-jurídica do país.

De especial relevância foram as diversas intervenções de dois ícones da Academia jurídica norte-americana: Ronald Dworkin, professor de Filosofia e de Direito da New York University; e Jack Balkin, professor de Direito Constitucional da Yale Law School. Dworkin ocupou por mais de uma vez as páginas da New York Review of Books, enquanto Balkin mantinha um popular blog no qual frequentemente debatia as questões relativas ao Health Care Act além de publicar suas análises em diversos outros veículos.

Dois meses antes da prolação da decisão, Balkin escreveu um artigo intitulado The Health Care Mandate Is Clearly a Tax – and Therefore Constitutional. No texto, o professor afirma que o individual mandate enquadra-se à perfeição na definição de tributo de qualquer manual de Direito norte-americano: serve ao bem-estar geral, gera receita para o governo e não é uma pena no sentido criminal. Ademais, a disposição altera uma lei tributária (Internal Revenue Code) e cria taxa calculada com base na renda das pessoas, cuja sistemática de apuração se dá por meio da declaração de renda individual anual.

Assim como prometera melhorar o sistema de saúde, Obama também se comprometera a não criar ou aumentar impostos incidentes sobre pessoas de renda inferior a determinado valor. Por isso, o Partido Democrata sempre evitou enfatizar o caráter tributário do individual mandate, a ponto de o presidente chegar a reiterar, em entrevista, que o dispositivo não criava tributo. Apenas restava a alternativa, portanto, de embasar os poderes para criar o mandate na competência para regular o comércio (Commerce Clause).

Se por um lado, a solução proposta por Balkin (fundamentar a nova legislação no poder constitucional de tributação) evitava os inconvenientes do debate acerca da abrangência da cláusula que conferia ao Congresso o poder de regular o comércio (Commerce Clause), por outro lado, os Republicanos, opositores da medida, não queriam conceder a saída mais fácil ao governo e, portanto, firmavam posição no sentido da inconstitucionalidade do mandate, por violação à Commerce Clause.

Na Corte, os quatro juízes liberais (Ruth Bader Ginsburg, Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan) declararam a constitucionalidade do individual mandate, pois entenderam que o Congresso apenas regulara o comércio, o que estaria autorizado pela Commerce Clause. Os conservadores (Antonin Scalia, Anthony Kennedy, Clarence Thomas e Samuel Alito), por sua vez, se opunham àquela interpretação, entendendo que o Congresso não estaria a regular comércio existente, mas a obrigar os indivíduos a comerciar, isto é, a contratar planos de saúde.

Surpreendentemente, o voto que garantiu a validade do mandate viria de John Roberts, magistrado tradicionalmente identificado com posições conservadoras. O voto do Chief Justice, coincidentemente ou não, foi na direção da solução proposta por Jack Balkin. Tido como conservador e indicado para o comando da Corte pelo ex-presidente George W. Bush, Roberts declarou a constitucionalidade do individual mandate, juntando-se, quanto ao resultado, aos quatro juízes liberais. Todavia, fundamentou seu voto de modo distinto, pois acatou a tese antecipada por Balkin ao afirmar tratar-se de um tributo. Roberts, no entanto, não passou ao largo da interpretação da Commerce Clause. Afirmou expressamente que a Constituição atribuiu ao Congresso o poder de regular o comércio, não de obrigá-lo. Isso significaria uma licença para que o Legislativo federal regulasse o que as pessoas não fazem, incrementando sobremaneira sua autoridade.

Ultrapassada a questão e fixada a interpretação restritiva da Commerce Clause, Roberts prosseguiu afirmando que o Congresso goza de legitimidade democrática e que o Judiciário está obrigado a considerar todas as interpretações possíveis, desde que razoáveis, para evitar declarar a inconstitucionalidade de uma lei federal. Dessa forma, ainda que admitisse não se cuidar da interpretação mais comum ou natural, o Chief Justice assentou ser o mandate um imposto e, portanto, protegido pela cláusula da Constituição que confere ao Congresso poderes para criar tributos.

Proferida a decisão, o debate acadêmico ganha novo ânimo com uma análise de Ronald Dworkin, que publicou um artigo intitulado Why did Roberts Change His Mind?. Esse texto parte do pressuposto de que, a princípio, o Chief Justice não votaria, como terminou por acontecer. Essa assertiva é corroborada por vários professores que analisaram o voto de Roberts, os quais afirmam que, até mesmo por algumas características do texto e da linguagem utilizada, pode-se perceber que o juiz teria alterado sua posição na última hora.

Dworkin, procurando entender as razões pelas quais o conservador Roberts salvara a essência do programa de Obama — o individual mandate —, afirma que, na condição de presidente da Suprema Corte, Roberts teria agido em prol da respeitabilidade e legitimidade da instituição. Informa ainda que pesquisas de opinião concluíram que a população vem se convencendo (por conta da série de decisões prolatadas por placar de 5x4, em razão da divisão político-ideológica) de que a Suprema Corte não é propriamente um Tribunal de Justiça, mas apenas outra instituição política, não merecedora de especial respeito. Tomado por essa preocupação, Roberts teria aproveitado esse caso, de grande repercussão, e decidido contra suas próprias convicções políticas. Agindo assim, pretenderia dar mostras de independência e de que a Suprema Corte não é apenas mais uma instituição política.

O fato de, por um lado, o voto de Roberts declarar a constitucionalidade do mandate, ponto essencial da principal peça legislativa da administração de Obama, e, por outro, conferir interpretação restritiva à Commerce Clause levou Dworkin a acreditar que sua intenção, a par de preservar a Corte de possível desconfiança por parte da opinião pública, foi abrir caminho para uma série de decisões de viés conservador que o Tribunal deverá editar neste e nos próximos anos. O professor afirma que a Corte Roberts tentará eliminar ou restringir a política de cotas raciais para ingresso nas universidades, proibir avanços relativos à questão do casamento homossexual, bem como restringir ou abolir o aborto naquele país. O Chief Justice Roberts teria feito uma concessão ao governo e à opinião pública visando reforçar a legitimação da Corte para futuras decisões conservadoras.

O Health Care case, considerado em sua amplitude, ficou marcado por uma grande interação entre professores de Direito e a Suprema Corte. A peça legislativa, tal como pensada e redigida, transparece a grande influência que Cass Sunstein exerceu em sua concepção, na qualidade de membro importanteda administração de Obama. Ressalte-se que Sunstein, logo após a prolação da decisão da Corte, resolveu deixar o governo e voltar à docência na Harvard Law School. Deve-se salientar também que Jack Balkin antecipou em grande medida, a solução engendrada por Roberts, bem como o fato de que Ronald Dworkin, além de críticas pertinentes, fez previsões interessantes e polêmicas concernentes aos prováveis próximos julgamentos da Corte, cujos resultados podem reforçar seu ponto de vista sobre a posição adotada pelo Chief Justice Roberts. Que essa profícua interação nos sirva de exemplo e nos estimule ao diálogo.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

*Sérgio Antônio Ferreira Victor é assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal, professor de Direito Constitucional do Centro Universitário de Brasília (UniCeub), mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

Fonte: Consultor Jurídico