*Por Otavio Luiz Rodrigues Junior
O direito fundamental à informação genética ou ao conhecimento das próprias origens é um tema particularmente representativo na jurisdição exercida pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Na coluna da semana passada, apresentou-se a diferente visão do problema no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Constitucional português. No Brasil, há recente e boa literatura sobre o tema, com enfoques diferenciados, mas, em regra, com amplo favorecimento à tese do caráter irrestrito desse direito informativo.[1]
A jurisprudência da CEDH apresenta um “grupo de casos” envolvendo pretensões de paternidade de pais biológicos, que desejam ter reconhecida a parentalidade jurídica. É um campo particularmente novo para a realidade jurisprudencial clássica no Brasil, mais focada na pretensão dos filhos de conhecerem seus pais. Vejam-se alguns interessantes exemplos desse contencioso na Europa:
1. Ahrenz v. Alemanha, n. 45071/09, julgado em 22 de março de 2012
O senhor Ahrenz manteve um relacionamento com uma mulher, que vivia na época com outro homem. A mulher engravidou e teve uma filha em 2005. Em outubro de 2005, o senhor Ahrenz ingressou em juízo para se ver declarado como pai da criança, dado ser biologicamente o responsável pela concepção. O pai legítimo contestou e afirmou assumir integralmente as responsabilidades parentais, fosse ele ou não o pai biológico. O caso foi julgado em primeiro grau favoravelmente ao senhor Ahrenz, após realização de perícia hematológica, que o apontou como pai da menina.
Em grau de recurso, o Tribunal de Justiça anulou o julgamento, por considerar a prevalência da paternidade jurídica e social em detrimento da paternidade biológica. As relações familiares seriam profundamente abaladas com esse reconhecimento de paternidade. A matéria foi levada ao Tribunal Constitucional, que não conheceu da reclamação.
O senhor Ahrenz alegou que a decisão ofendeu os artigos 14[2] e 8º[3] da Convenção Europeia de Direitos Humanos e recorreu à CEDH. O tribunal europeu rejeitou o recurso. Na fundamentação, concorreram dois fundamentos: a) não há uma posição unânime nos Estados europeus sobre o conflito de direitos entre o pai biológico e o pai jurídico; b) haveria uma margem de apreciação para as jurisdições locais, conforme os ordenamentos internos; c) o tribunal alemão fez uma escolha legítima pela precedência das relações familiares e pela manutenção dos vínculos entre a filha e seu pai jurídico, no que não ofendeu o artigo 8º da Convenção.
2. Schneider v. Alemanha n. 17080/07, julgado em 15 de setembro de 2011
O senhor Schneider manteve, entre maio de 2002 e setembro de 2003, uma relação amorosa com uma mulher casada. O filho dessa mulher nasceu em março de 2004. O senhor Schneider ajuizou uma ação alegando ser o pai biológico dessa criança. Os cônjuges optaram por não realizar o exame de paternidade em ordem a preservar o interesse da família, que seria fortemente abalado acaso se provasse a parentalidade de Schneider.
O suposto pai biológico requereu ao juízo de primeiro grau que se lhe deferisse o direito de visitas à criança e que recebesse informações regulares sobre seu desenvolvimento. A Justiça rejeitou o pedido, entendendo que a mera alegação de paternidade biológica não inseria o senhor Schneider no rol de pessoas autorizadas pelo Código Civil alemão a ter o direito por ele pretendido em relação ao menor. As cortes superiores mantiveram esse entendimento, sempre levando em conta a primazia do interesse da criança e a preservação dos laços familiares.
O senhor Schneider recorreu à CEDH, com alegações de que foi violado o artigo 8º da Convenção. Na CEDH, entendeu-se que o senhor Schneider e a mãe da criança, apesar de nunca terem vivido sob o mesmo teto, mantiveram uma longa relação amorosa (de um ano e quatro meses), o que não se constituía em algo meramente casual. Além disso, o comportamento do suposto pai biológico denotou interesse extremo pela criança, ao acompanhar a futura mãe em exames pré-natais e ao demonstrar disposição em assumir a paternidade antes mesmo do nascimento do filho. Desse modo, reconheceu-se a ofensa ao artigo 8º, porquanto os tribunais alemães não prestigiaram os interesses de todos os envolvidos e não deram tratamento equilibrado à pretensão do suposto pai biológico, o que poderia se traduzir em julgamento de conteúdo discriminatório.
3. Krušković v. Croácia, n. 46185/08, julgado em 21 de junho de 2011
Um homem foi interditado em fevereiro de 2003, após padecer de problemas mentais decorrentes de longo período de drogadição. Em 2006, sua mãe foi designada como sua curadora e, posteriormente, seu pai e um empregado de um centro de apoio social. Em 2007, o curatelado, com a anuência de sua mãe, assumiu a paternidade de uma criança nascida em junho desse ano. O pretendido registro foi denegado por conta de sua incapacidade civil.
Sob alegada ofensa ao artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, o caso foi levado à CEDH, que o acolheu sob o fundamento de que a criança tem o direito à informação genética, que lhe permite conhecer “a verdade sobre um importante aspecto de sua identidade pessoal, que é a identidade de seus pais biológicos”.
4. Chavdarov v. Bulgária, n. 3465/03, julgado em 21 de dezembro de 2010
Em 1989, o senhor Chavdarov passou a viver sob o mesmo teto com uma mulher casada que, no entanto, se encontrava separada de fato de seu marido. A mulher deu a luz a três crianças nos anos de 1990, 1995 e 1998, durante sua união com o senhor Chavdarov. O interessante é que o marido da mãe foi indicado nas certidões de nascimento como pai das três crianças, as quais receberam seu sobrenome. No final de 2002, o senhor Chadvdarov e sua companheira terminaram a união estável. Sua ex-companheira passou a viver com outro homem, levando consigo os filhos.
Em 2003, o senhor Chavdarov consultou um advogado com intenção de ajuizar uma ação de reconhecimento de paternidade. O advogado disse-lhe que, com base na legislação búlgara, não era possível arguir essa tese, aconselhando-o a propor diretamente uma reclamação à CEDH, com base no artigo 8º da Convenção, o que terminou por ser feito.
Ao julgar o caso, a CEDH considerou que há uma margem de apreciação aos Estados-membros para definir, em suas legislações locais, os limites da relação parental, o que, até agora, se converte em algo muito relevante, em face da ausência de um padrão comum. Declarou-se que, a despeito da necessidade de se preservar os vínculos familiares, não ficou bem estabelecida a responsabilidade do Estado búlgaro no caso, o que levou à declaração de não ofensa ao artigo 8º da Convenção.
Não é possível sintetizar a orientação da CEDH sobre o tema. Parece haver um certo constrangimento em se invadir a esfera dos direitos locais sobre a questão da paternidade biológica em oposição à paternidade legítima, como de resto, em muitos pontos sensíveis das relações familiares. As críticas à invasão da soberania dos Estados europeus pelos juízos da CEDH, a despeito de sua posição mais cautelosa aqui, avolumam-se em face da ausência de princípios ou de um “sistema”, quando se examina mais a fundo alguns de seus julgados. Particularmente no Direito Civil, que é uma província muito ciosa da observância desses cânones, essa deficiência argumentativa é ainda mais notável.
A Bioética e suas conexões com o Direito de Família, até pela seriedade dos bens imateriais envolvidos, devem merecer um exame metodologicamente mais rigoroso, sob pena de se transformar a apreciação dessas situações em mera tópica. Nesse aspecto, a insuficiência dos standards normativos é igualmente nítida, embora seja muito oportuna a advertência de Silmara Juny de Abreu Chinellato, uma das grandes especialistas sobre o tema no Brasil (e não apenas), no sentido de que: “Sem pretender exaurir o exame das intrincadas questões da Biomedicina e da Genética que trazem relevantes reflexos jurídicos, podemos concluir que há nítida preocupação da Doutrina e, depois, da Legislação com as novas conquistas, sendo natural e compreensível que o denominado ‘vazio legislativo’, expressão muito cara aos franceses, diminua gradativa e comedidamente”.[4]
Na próxima Coluna, deve-se fazer um confronto entre as recentes decisões da CEDH e alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça.
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[1] LAVOYER, Luciano Castilho. Genoma humano : Há necessidade de um código de bioética? Revista do Tribunal Regional Federal: 1ª Região, v. 16, n. 9, p. 48-54, set. 2004; HAMMERSCHMIDT, Denise. Alguns aspectos da informação, intimidade e discrimação genética no âmbito jurídico internacional. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 94, n. 837, p. 11-42, jul. 2005; ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro; ROCHA, Ludiana Carla Braga Façanha. Discriminação genética no ambiente de trabalho: perspectivas do direito comparado. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região, v. 30, n. 30, p. 123-134, jan./dez. 2007; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. São Paulo: Atlas, 2010; GOZZO, Debora; LIGIERA, Wilson Ricardo (Orgs). Bioética e direitos fundamentais. São Paulo:Saraiva, 2012.
[2] “Artigo 14.º (Proibição de discriminação)
O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação” (versão oficial: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhregionais/conv-tratados-04-11-950-ets-5.html. Acesso em 27-8-2012).
[3] “Artigo 8º (Direito ao respeito pela vida privada e familiar).
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”. (versão oficial: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhregionais/conv-tratados-04-11-950-ets-5.html. Acesso em 27-8-2012).
[4] CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Pessoa natural e novas tecnologias. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo: Nova Série, v. 14, n. 27, p. 45-53, jan./jun. 2011.
*Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Fonte: Revista Consultor Jurídico
Espaço para informação sobre temas relacionados ao direito médico, odontológico, da saúde e bioética.
- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.