No Brasil, não basta apenas a existência de leis. É preciso validá-las com o devido apoio de toda a nação
A Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal aprovou, por meio de projeto de lei (PL), um novo capítulo na Lei Orgânica de Saúde (LOS), que prevê uma série de exigências ao Estado para garantir tratamento médico e fornecimento de medicamentos aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Todos os medicamentos e procedimentos deverão ser devidamente aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Disciplinar o processo de aquisição de novas tecnologias é uma iniciativa louvável, mas o processo, que agora segue para tramitação na Câmara dos Deputados, merece uma análise mais profunda e cuidadosa.
Com o apoio do governo federal, a iniciativa é uma tentativa do Congresso de frear o fenômeno chamado de judicialização da saúde, no qual pacientes, diante da carência de remédios, entram com ações judiciais para garantir o acesso ao medicamento. Caso o Estado não providencie uma solução, o resultado costuma ser mandados de prisão do secretário de Saúde ou bloqueio das contas públicas. Ações de pouco efeito imediato para o doente, mas de grande impacto social, que resultam em uma imagem negativa para o político. No fim, tudo se resolve ainda na base do grito – assim tem sido nos últimos anos. Portanto, mudar essa realidade, apesar do grande desafio, é uma necessidade emergencial. Se aprovado, o PL obriga o SUS a atualizar todos os anos a lista de remédios que não é alterada há quase uma década. Ao longo desse período, o sistema de saúde foi sendo sucateado e o orçamento para o Ministério da Saúde não acompanhou o crescimento e o envelhecimento da população brasileira, exigindo-se gastos maiores com a saúde.
Do ponto de vista do paciente, o acesso à tecnologia da saúde – exames complementares, procedimentos e medicamentos – deve ser amplo e sem restrições. Para uma sociedade que prevê no texto constitucional (artigo 196) que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado”, os governantes deveriam ter o compromisso de nunca usar como desculpa a falta de dinheiro público para prestar a assistência. Trata-se, claramente, de uma questão de prioridade de investimentos. E a saúde há muito tempo ficou de lado na agenda política.
Um dos argumentos que levou a discussão ao Congresso foi o desequilíbrio nas contas públicas da União, estados e municípios, gerado pelo processo de judicialização da saúde. A pergunta é: como, então, o dinheiro vai aparecer para comprar esses medicamentos? E os pacientes que precisam deles já? Por que não recebem o devido respeito e atenção, precisando entrar na Justiça para garantir o acesso ao tratamento adequado? Ocorre que, na forma pela qual se realiza o custeio do SUS, o elo mais fraco, o município, acaba por arcar com a parte mais pesada do orçamento da saúde. Isso porque os repasses da União e dos estados nunca são suficientes para fechar a conta.
A LOS estabelece que o financiamento da saúde será uma coparticipação da União, estados e municípios. Desde a Norma Operacional Básica (NOB), de 1996, seguida de diversas outras normas, chegando ao Pacto pela Saúde, o financiamento da saúde foi baseado em séries históricas de produção de procedimentos e de valores pagos décadas atrás. Assim, o repasse da União para os 5,5 mil municípios é baseado em uma tabela de procedimentos completamente defasada em termos de custo para a realização do procedimento, mesmo tendo sido atualizada recentemente. Isso proporciona, nos municípios, um rombo em suas contas, pois eles têm que completar a diferença com o próprio orçamento. Considerando que a maioria dos municípios brasileiros tem baixa receita em arrecadação, aqueles que são mais pobres são punidos mais uma vez, pois recebem pouco repasse e não têm orçamento para complementar. O jogo continua perverso: os mais ricos têm mais e os mais pobres, muito pouco. Por mais que a União alegue realizar compensações no repasse financeiro, elas não passam de maquiagemm, sempre atrelada a conchavos políticos.
Temo que este vire mais um PL que “não pegue” e, mais uma vez, teremos um bom texto legislativo que de nada servirá na prática. Por isso, tão importante quanto novas leis é a sociedade criar instrumentos de pressão que assegurem a prestação do atendimento de qualidade à população e fazer valer os direitos que já lhe estão assegurados. No Brasil, não basta apenas a existência de leis; é preciso validá-las com o apoio de toda a nação. Em ano de eleição, é importante que o eleitor fiquei atento aos debates dos pré-candidatos e às suas respectivas propostas para a área de saúde, pilar fundamental, junto com a Educação, para o crescimento sustentável de um país.
Fonte: Paulo Sá - Estado de Minas
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.