Redução dos valores repassados pelas operadoras a médicos e estabelecimentos faz com que usuários sofram com a deficiência dos serviços
Os precursores dos planos de saúde surgiram na década de 1940, no interior de empresas e órgãos públicos, sob a forma de associações, com o intuito de garantir o acesso de funcionários à assistência médica particular. Com o tempo, empreendimentos privados entraram em cena. Enxergaram o potencial de vender convênios a uma parcela da classe média desejosa de escapar da dependência da saúde pública deficiente, mas cuja renda era insuficiente para pagar exames, internações e consultas em dinheiro vivo.
Hoje, planos individuais e a modalidade cooperativa ou coletiva coexistem. Assegurando uma carteira numerosa de pacientes a profissionais da saúde, clínicas e hospitais, os planos podem pagar barato pelos serviços. Para cobrir esses gastos e angariar lucro, cobram de seus conveniados um preço mensal fixo, mediante o qual toda a necessidade por atendimento deveria ser suprida. Parecia o melhor dos mundos, mas algo deu errado no meio do caminho. Usuários insatisfeitos, médicos reclamando dos ganhos e até filas de espera caracterizam, atualmente, a chamada saúde suplementar. Qualquer semelhança com o serviço estatal não é mera coincidência.
Desembolso
Algumas horas no interior de um hospital privado do Distrito Federal são suficientes para constatar as dificuldades enfrentadas por usuários de planos de saúde. Foi na sala de espera de um consultório que a reportagem encontrou a funcionária pública Terezinha de Fátima Silveira, 47 anos. A família dela é beneficiária de um plano ligado ao trabalho do marido. Mesmo rateado com os demais funcionários da empresa, o gasto mensal com o convênio para todos chega a R$ 500. O preço compensaria, se Terezinha não tivesse, com frequência, que pagar à parte pelas consultas. No dia em que conversou com o Correio, ela havia acabado de desembolsar R$ 200 para ser atendida por um neurologista.
“Você liga para marcar consulta pelo plano e só tem vaga dali a um mês. Se ligar no mesmo lugar dizendo que é particular, arrumam para o outro dia”, queixa-se. Segundo Terezinha, arcar com consultas de R$ 200 a R$ 300 — preço médio cobrado no DF — é uma constante no orçamento da família. A despesa se acumula à da mensalidade do plano. Mesmo assim, o convênio é mantido. Ainda é útil na realização de exames para diagnósticos, e pode ser necessário em uma situação de emergência, que exija, por exemplo, cirurgia e internação. É a chamada saúde armada, no jargão da área.
Laboratórios e profissionais que usam instrumental e equipamentos caros ainda conseguem receber um valor maior das operadoras para cada atendimento. Médicos que não realizam procedimentos no consultório e aqueles cujo trabalho é focado na análise de sintomas, solicitação de exames, diagnóstico e prescrição de tratamento ganham, dos planos, de R$ 35 a R$ 40 por paciente.
No mesmo local em que Terezinha aguardava atendimento de um neurologista, a também servidora pública Juliana Nunes de Almeida, 34 anos, estava angustiada. O filho Mathias, 8 meses, que se recuperou de uma pneumonia há pouco tempo, apresentava sintomas de uma possível recaída. Ela estava ali para fazer uma radiografia dos pulmões do bebê e reclamava do atendimento.
Juliana, apesar de ter um plano de saúde no modelo autogestão (administrado pelo órgão público onde trabalha), pagou R$ 200 por uma consulta com uma pediatra que atende fora do hospital. “Desde a greve dos pediatras(1), é impossível achar um que atenda convênio em Brasília”, explica. A médica pediu a radiografia para Mathias e solicitou urgência na entrega do resultado, ou seja, a mãe deveria tê-lo em mãos em até três horas.
Juliana Almeida levou o pedido de exame ao hospital. Ficou indignada quando funcionários lhe disseram que, para que o diagnóstico fosse entregue no prazo, ela teria que levar o filho a um médico que trabalhasse no estabelecimento. “Por que exigem que seja com o médico deles? Vou ter que esperar mais ainda para tratar meu filho? Ficam querendo tirar dinheiro da gente”, reclamou.
Depois de discutir com atendentes do laboratório, em um clima de tensão, a mãe obteve a promessa de que o diagnóstico seria entregue no prazo solicitado. Ao fim de tudo, ela desabafou. “A gente só consegue o que é certo no grito. Não pode ser assim.”
O comerciante aposentado José Ruber Sardinha, 75 anos, também possui um plano de autogestão, originário do órgão público onde a mulher trabalhou. Beneficiário do convênio há mais de 10 anos, ele diz que sempre considerou bem empregados os R$ 400 pagos pela família pela cobertura, porque nunca teve problemas ao usar a rede conveniada. Ele relata, entretanto, que de alguns anos para cá tem notado que a rede está encolhendo. “Estou com dor na coluna e procurei o ortopedista de sempre. Descobri que ele não atende mais por nenhum convênio”, contou.
Menos profissionais
Em julho do ano passado, os pediatras do DF suspenderam o atendimento por convênios. Eles, que recebiam entre R$ 24 e R$ 40 por consulta, reivindicavam R$ 90. A regional da Sociedade Brasileira de Pediatria no DF (SBP-DF) alegava que era cada vez maior o descredenciamento de profissionais em razão do baixo valor pago pelas operadoras. A paralisação terminou só em janeiro deste ano. Boa parte dos convênios passou a pagar entre R$ 60 e R$ 80 pela consulta. Segundo a SBP-DF, no entanto, mesmo com os acordos, atualmente é baixo o índice de pediatras vinculados a planos em Brasília e região.
Honorários são o gargalo
Mas, afinal, qual é o cerne do problema dos planos de saúde? Por que eles se tornaram complemento em lugar de garantia de acesso à saúde privada? As operadoras de saúde não podem pagar valores maiores aos profissionais credenciados? Arlindo de Almeida, presidente da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), não considera baixa a média de R$ 40 paga aos médicos credenciados aos planos. “Se ele atende quatro pacientes por hora, são R$ 160 em uma manhã. Juntando manhã e tarde, são R$ 320 em atendimentos. Se consideramos um mês de 20 dias, temos 600 consultas. Dá para tirar R$ 2,5 mil por mês”, diz. Ele reconhece, entretanto, que existem empresas que remuneram melhor os profissionais. “O que ocorre é que 80% da população, hoje, tem planos coletivos, aqueles oferecidos a empregados de empresas, ou contratados via formação de cooperativas. São os mais baratos. Há planos top de linha que pagam R$ 100, R$ 150, R$ 200 pela consulta, e credenciam bons profissionais”, afirma.
Almeida acredita ainda que o número baixo de médicos credenciados a planos é uma realidade mais específica da capital federal, que tem uma quantidade menor de profissionais do que a Região Sudeste. “Em um estado como São Paulo, há filas de médicos querendo se vincular.” O presidente da Abramge classificou como errada a prática de discriminação contra pacientes de planos nos consultórios denunciada pelos usuários. Segundo ele, quem for vítima desse tipo de atitude deve entrar em contato com a operadora, que pode desvincular o médico ou adverti-lo.
José Cechin, presidente do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), uma outra entidade que congrega operadoras acredita que a própria democratização do acesso aos planos de saúde contribuiu para que os usuários, hoje, tenham opções mais restritas. “A operadora que cobrava mensalidade alta podia disponibilizar melhores atendimentos. Hoje, muitas vendem a preços mais baixos. Se você vendeu para gente de menor renda, não tem como oferecer a mesma rede”, avalia. Procurada, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável por regular a atuação das operadoras e delimitar os reajustes das mensalidades, não se pronunciou até o fechamento desta matéria.
Irresponsabilidade
Para o médico Gilvan Ferreira Alves, presidente da regional do DF da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD-DF), o valor reduzido pago pelas operadoras aos médicos pode levar a comportamentos que beiram a irresponsabilidade. “Os profissionais estão insatisfeitos com o plano porque têm que atender muita gente, têm que correr com a consulta. Se ele ganha entre R$ 35 e R$ 45 e abate Imposto de Renda, despesas com a secretária, condomínio do prédio, sobra para ele de R$ 10 a R$ 15. O convênio é ótimo no início de carreira para encher a agenda do profissional. Depois, muitos abandonam”, analisa.
Para José Marco Andrade Resende, pediatra à frente do Departamento de Defesa Profissional da Sociedade Brasileira de Pediatria no DF, a saúde suplementar precisa de reformulação. “Só estão felizes com o funcionamento da ANS os fornecedores de equipamentos e próteses, e as operadoras. Médicos, hospitais e pacientes não estão gostando”, dispara.
Fonte: Mariana Branco - Correio Braziliense
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.