Processo
Numeração Única: 0017343-82.2016.4.01.0000
Relator
DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES
Data Decisão
11/04/2016
Publicação
14/04/2016
Decisão
Cuida-se de agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo, interposto por MARINA MYLENA SILVA TEIXEIRA, contra a decisão proferida pelo MM. Juízo da 18ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais que, em ação pelo rito ordinário ajuizada pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - EBSERH, pretendendo autorização judicial para realização de transfusão de sangue forçada, supostamente urgente e indispensável para preservação da vida da Agravante, deferiu a antecipação dos efeitos da tutela, a fim de autorizar a equipe médica da demandante, responsável pelo procedimento requerido, a impor à ré que se submeta de forma compulsória à transfusão de sangue prescrita, na forma com requerido na inicial.
Irresignada, pugna inicialmente a Agravante pelos benefícios da Justiça Gratuita (Lei nº 1.060/50 e pelo NCPC/15 - art. 99, caput e § 7º).
Esclarece a ré, ora agravante que se encontra internada nas dependências do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais desde 12/3/2015, sendo diagnosticada com Leucemia Linfoblástica Aguda - LLA, e que em razão do diagnóstico foi prescrita pela equipe médica a realização de quimioterapia. Diante da anemia apresentada pela paciente, também foi recomendada transfusão de sangue.
Aduz que após os devidos esclarecimentos a respeito de seu estado de saúde e das formas de tratamentos existentes para a sua enfermidade, por ser adulta e capaz, a agravante manifestou sua decisão de forma verbal e por meio de um documento de diretivas antecipadas, optando por um protocolo médico que dispensa a utilização de componentes sanguíneos. Tal decisão é pautada em suas convicções religiosas (paciente Testemunha de Jeová) e científicas (existência de opções terapêuticas sem sangue e riscos transfusionais).
Ressalta também, que ao contrário do alegado, há outros tratamentos que podem ser utilizados e estes já estão sendo ministrados desde o dia 15/3/2015, um dia antes do ajuizamento da ação.
Assevera ainda, que o tratamento médico contra decisão esclarecida de paciente adulto, lúcido e capaz fere até mesmo o próprio direito à vida, na medida em que, consoante entendimento atual do STF, este direito não envolve somente o aspecto biológico da pessoa, mas tudo o mais que lhe compõe, incluindo sua faceta moral e psíquica.
Desta forma é inafastável o risco de lesão grave e de difícil reparação, sendo certo que uma vez efetuada a transfusão de sangue não haverá volta. Nesse ponto, argumenta que os requisitos para concessão da decisão agravada não estão preenchidos devidamente de maneira a permitir a sua subsistência. Ressaltando que não há "fumus boni iuris", uma vez que a agravante não está abrindo mão de sua vida em razão de suas convicções religiosas. Não há qualquer ilicitude em escolher um tratamento médico em detrimento de outro.
No tocante ao "periculum in mora", destaca que a transfusão de sangue não é o único tratamento a ser utilizado no presente caso, pois mesmo após a concessão da tutela antecipada, a paciente ainda não foi transfundida e continua em tratamento.
É o sucinto relatório. Decido
De início, cumpre consignar, por necessário, que busca o presente agravo (I) o deferimento da gratuidade de justiça ; e (II) seja atribuído efeito suspensivo ao recurso para que sejam impedidas transfusões de sangue indesejadas.
Gratuidade de Justiça
Nos termos do inciso LXXIV, do artigo 5º, da Constituição Federal, "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos". Também nesse sentido, estabelece a Lei nº 1.060/50, em seu art. 4º, § 1º, que:
"Art. 4º. A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família. (Redação dada pela Lei nº 7.510, de 1986)
§ 1º. Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais. (Redação dada pela Lei nº 7.510, de 1986)."
O pedido feito no processo de origem encontra amparo legal na própria Lei nº 1.060/50, a qual estabelece em seu artigo 7º:
"Art. 7º. A parte contrária poderá, em qualquer fase da lide, requerer a revogação dos benefícios de assistência, desde que prove a inexistência ou o desaparecimento dos requisitos essenciais à sua concessão.
Parágrafo único. Tal requerimento não suspenderá o curso da ação e se processará pela forma estabelecida no final do artigo 6º. desta Lei."
Assim postas as premissas legais, firmou-se a jurisprudência deste Tribunal no sentido de que, para o deferimento da assistência judiciária gratuita, é necessário que a parte interessada afirme, de próprio punho ou por intermédio de advogado legalmente constituído, que não tem condições de arcar com as despesas processuais sem prejuízo do sustento próprio ou da família. De tal afirmação resultaria presunção juris tantum de miserabilidade jurídica a qual, para ser afastada, necessita de prova inequívoca em sentido contrário, o que não se verifica na espécie.
Neste sentido, vejam-se os seguintes julgados:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA. DECLARAÇÃO DO ESTADO DE HIPOSSUFICIÊNCIA. PRESUNÇÃO JURIS TANTUM. DEFERIMENTO.
I. O entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e desta Corte, em conformidade com a legislação que rege a matéria, é no sentido de que a simples afirmação da parte de que não tem condições de arcar, sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família, com as custas processuais e com os honorários advocatícios basta para o deferimento do pedido de justiça gratuita, incumbindo à parte contrária a demonstração de ausência do alegado estado de miserabilidade.
II. Agravo provido."
(AG 0055970-63.2013.4.01.0000 / MG, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAM MEGUERIAN, SEXTA TURMA, e-DJF1 p.855 de 05/06/2014)
No caso dos autos, ao deferir a antecipação dos efeitos da tutela, o magistrado de base alegou que a questão não demandava maiores reflexões jurídicas, mas a prática concessão da tutela de urgência, na medida em que urge a preservação do bem maior assegurado constitucionalmente, nos termos do art. 5º, caput, da Carta magna de 1988, o qual se sobrepõe ao direito de convicção religiosa, observando que o cotejo entre direitos constitucionalmente protegidos se faz mister, ante a impossibilidade de tratamento alternativo compatível com o quadro clínico da paciente, ora requerida, razão pela qual dirimiu a controvérsia em favor do bem maior a ser juridicamente tutelado.
Cinge a controvérsia dos autos em saber se seria possível invocar o direito fundamental da liberdade religiosa, princípio da dignidade da pessoa humana e direito de escolha de tratamento médico como fundamentos para impedir um tratamento médico com transfusão de sangue para salvar a vida de uma pessoa.
"O que deve fazer um patrão francês que sabe que sua funcionária natural da Argélia deverá se ausentar do trabalho nas próximas semanas para se submeter, a contragosto, a uma cirurgia de excisão imposta pelas autoridades tribais ligadas a ela? Podem animais, contrariamente à proibição do abate halal, serem abatidos sem narcótico se a religião assim o exigir? Como reagir após ter contratado um motociclista sikh que se recusa a usar o capacete pelo fato de sua religião exigir o uso de um turbante? Pode um advogado ser despedido por fazer as orações prescritas durante o horário de trabalho? Como agir diante da ausência do aluno por ocasião de um feriado religioso? Um detento de confissão mosaica tem que comer a comida da prisão, mesmo quando contiver alimentos proibidos? E se o pai recusar à sua família um tratamento médico por motivos religiosos? Podem os pais impedir suas filhas de frequentar escolas de nível médio porque a própria cultura reserva aos filhos homens o privilégio de uma educação superior? Deve ser permitido a um estrangeiro, aqui residente, a poligamia, quando esta é admitida em sua cultura de origem?" Questiona o jurista Alemão e ex-Juiz da Corte Constitucional Alemã Dieter Grimm, na obra Constituição de Política, Del Rey, 2006, páginas 107/108, traduzida para o Português por Geraldo de Carvalho.
O Professor Dieter Grimm, nos diz que [...] já há algum tempo, a opinião pública alemã está tomada pela questão de se nas escolas públicas também deve ser ministrada aula de religião islâmica junto da católica e da evangélica [...].
Os Estados Unidos discutiram a possibilidade de dispensar os amish do dever legal de enviar suas crianças a uma escola pública durante os dois últimos anos de obrigatoriedade escolar. Caso as crianças fossem educadas nessas escolas adquiririam valores e formas de vida que contrariariam os seus próprios valores. A Suprema Corte, apreciando o caso Wisconsin v. Yoder (1972), assegurou que os amish encerrassem seus estudos dois anos antes do tempo normal imposto a todos, ao argumento de que "a imposição de obrigatoriedade escolar geral teria, para o grupo, um peso que aniquilaria sua identidade".
Evidentemente que decisões como essa acima suscitam críticas, principalmente no meio daqueles mais apegados às doutrinas antiquadas de uma separação cerrada dos Poderes. Pode-se dizer, no caso dos amish, que o Judiciário legislou ao criar uma exceção não contemplada na legislação. Também é possível acusar a decisão de estabelecer um tratamento diferenciado a um dado grupo sem qualquer razão consistente para tal. Argumentos como esses são usados no caso da concessão do salário-maternidade às índias Maxakali com menos de 16 anos. Como veremos no desenvolvimento desse texto, são argumentos inconsistentes.
No caso dos amish, nos Estados Unidos, o Professor Michael Walzer, Professor de Ciência Social no Instituto de Estudos Avançados em Princeton, afirma que [...] em casos de outra natureza, em que os valores morais da comunidade mais ampla - a maioria nacional ou a coalização de minorias - não são desafiados de forma tão direta, é possível aceitar a desculpa da diferença cultural ou religiosa (e da 'escolha privada'), respeitar a diversidade e tolerar práticas incomuns relativas ao gênero [...].
Ele exemplifica exatamente com o caso de [...] minorias muito restritas ou sectárias como os amish ou os hasidim norte-americanos, a que as autoridades do Estado às vezes se predispõem a oferecer (ou os tribunais a mediar) arranjos conciliatórios - a separação de sexos em ônibus escolares e até em salas de aulas, por exemplo [...]. A França discutiu se alunas muçulmanas poderiam usar o véu, aprovando, inclusive, lei que proíbe o uso ostensivo de símbolos religiosos nas escolas públicas.
A discussão que tomou conta da Suíça foi sobre se alunas muçulmanas deveriam ser dispensadas da aula de natação, já que na sua religião proíbe que se mostrem desnudas diante dos outros.
Em Israel o assunto nacional de maior intensidade foi acerca de se uma rua de trânsito muito movimentada em um bairro de Jerusalém, habitado predominantemente por judeus ultraortodoxos vindos do Oriente, deveria ser fechada durante o shabat5.
Um derradeiro caso, apreciado em tribunais estrangeiros imersos no compromisso de adequação constitucional às diferenças trazidas por grupos minoritários, vem da África do Sul. Trata-se da apreciação da conduta de uma escola que proibiu a utilização de um piercing nasal por uma aluna. A instituição tinha um Código de Conduta que repreendia o uso desse tipo de adereço. A mãe da aluna, ao fazer sua matrícula, assinou um termo comprometendo-se a seguir o código6.
Sunali Pillay era aluna de uma elitizada escola feminina de nível médio da cidade de Durban (Durban Girls' High School), na África do Sul. Por usar um piercing nasal, foi acusada de violar a disciplina exposta no código de conduta da escola. Ela compunha uma comunidade sul-africana originária de imigrações da região sulina da Índia cuja marca distintiva era a mistura de características religiosas, linguísticas, geográficas, étnicas e artísticas de origem hindutamil.
Após a primeira menstruação, as mulheres da comunidade passam a usar um piercing nasal esquerdo, simbolizando a fertilidade feminina e anunciando a caminhada em direção à vida adulta, com a liberdade para o casamento.
A aluna não aceitou deixar de usar o adereço na escola. Para ela, a atitude corresponderia à grave ofensa à sua identidade cultural e religiosa, na qualidade de pessoa componente da mencionada comunidade. Segundo Sunali, o uso do piercing não era por moda, mas por razões culturais e religiosas.
Verificou-se uma injusta discriminação na recusa da direção da escola em não excetuar a estudanteà vedação disciplinar relativa ao uso de adereços corporais. No caso de Pillay, o uso do piercing nasal correspondia à decoração corporal de motivo cultural e religioso, prática do hinduísmo do qual é seguidora.
A Corte determinou que o corpo diretivo da escola, em conjunto com os alunos, pais e professores, em tempo razoável, realizasse emendas ao código de conduta, em vista a providenciar razoáveis conciliações do código a aspectos religiosos e culturais, além de estabelecer exceções que possam ser garantidas.
Todos estes aspectos foram por mim abordados em artigo que escrevi denominado "O salário-maternidade às índias Maxakali e a teoria da tolerância" para a Revista Jurídica do TRF da 1ª Região em, dezembro de 2014, onde analisei o marco teórico trazido por Michael Walzer, Professor de Ciência Social no Instituto de Estudos Avançados em Princeton, na sua obra "Da tolerância", tradução de Almiro Pisetta, São Paulo, editora Martins Fontes, 1999.
Na mesma esteira, protagonizando este entendimento, o professor e Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso quando da elaboração do parecer intitulado "Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade Humana, liberdade religiosa e escolhas", analisou a colisão entre o Direito à Vida e Liberdade de Religião, fazendo as seguintes ponderações:
"A liberdade de religião é um direito fundamental, uma das liberdades básicas do indivíduo, constituindo escolha existencial que deve ser respeitada pelo Estado e pela sociedade. 2. A recusa em se submeter a procedimento médico, por motivo de crença religiosa, configura manifestação da autonomia do paciente, derivada da dignidade da pessoa humana. 3. A gravidade da recusa de tratamento, sobretudo quando presente o risco de morte ou de grave lesão, exige que o consentimento seja genuíno, o que significa dizer: válido, inequívoco, livre e informado."
Ao analisar o aspecto da vida como direito fundamental e como valor objetivo ressaltou que:
"(...)
Em suma: o valor objetivo da vida humana desfruta de uma posição preferencial no ordenamento jurídico, podendo o direito à vida ser considerado indisponível prima facie. Nada obstante, não se trata de um direito absoluto, havendo hipóteses constitucionais e legais em que se admite a sua flexibilização. A assunção do risco de morte poderá ser legítima quando se trate do exercício de outras liberdades básicas pelo titular do direito. Impõe-se, nesse ambiente, uma análise caso a caso, na qual se possam analisar os diferentes elementos em jogo, com destaque para a repercussão das restrições sobre o conceito do próprio indivíduo acerca de sua dignidade. A discussão sobre a recusa de tratamento médico por fundamento religioso insere-se nesse contexto e será abordada em tópico próprio."
Já quanto ao aspecto liberdade religiosa, o eminente constitucionalista asseverou que:
"(...)
Em conclusão: a liberdade religiosa é um direito fundamental, que integra o universo de escolhas existenciais básicas de uma pessoa, funcionando como expressão nuclear da dignidade humana. O Poder Público, como consequência, não pode impor uma religião nem impedir o exercício de qualquer delas, salvo para proteger valores da comunidade e os direitos fundamentais das demais pessoas. A pergunta que resta responder é a seguinte: pode o Estado proteger um indivíduo em face de si próprio, para impedir que o exercício de sua liberdade religiosa lhe cause dano irreversível ou fatal? Este é um caso-limite que contrapõe o paternalismo à autonomia individual. A indagação não comporta resposta juridicamente simples nem moralmente barata.
No que diz respeito à legitimidade da recusa de tratamento médico por fundamento religioso, esclareceu que:
"As testemunhas de Jeová professam a crença religiosa de que introduzir sangue no corpo pela boca ou pelas veias viola as leis de Deus, por contrariar o que se encontra previsto em inúmeras passagens bíblicas. Daí a interdição à transfusão de sangue humano, que não pode ser excepcionada nem mesmo em casos emergenciais, nos quais exista risco de morte. Por essa razão, as testemunhas de Jeová somente aceitam submeter-se a tratamentos e alternativas médicas compatíveis com a interpretação que fazem das passagens bíblicas relevantes. Tal visão tem merecido crítica severa de adeptos de outras confissões e de autores que têm se dedicado ao tema, sendo frequentemente taxada de ignorância ou obscurantismo. Por contrariar de forma intensa o senso comum e por suas consequências potencialmente fatais, há quem sustente que a imposição de tratamento seria um modo de fazer o bem a esses indivíduos, ainda que contra sua vontade. Não se está de acordo com essa linha de entendimento. A crença religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida, uma liberdade básica da qual o indivíduo não pode ser privado sem sacrifício de sua dignidade. A transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade humana, que é um dos fundamentos da República brasileira (CF, art. 1º, IV).
(...)
Relembre-se, como já assinalado, que a ordem jurídica respeita até mesmo decisões pessoais de risco que não envolvam escolhas existenciais, a exemplo da opção de praticar esportes como o alpinismo e o paraquedismo, ou de desenvolver atuação humanitária em zonas de guerra. Com mais razão deverá respeitar escolhas existenciais. Por tudo isso, é legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue por parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade.".
Ao assentar a possibilidade de recusa de tratamento pelas testemunhas de Jeová, o Ministro da Suprema Corte lembra que a questão da validade e da adequação da manifestação de vontade requer o consentimento genuíno, sustentando que para que ele se caracterize, é imperativo verificar a presença de aspectos ligados ao sujeito do consentimento, à liberdade de escolha e à decisão informada nos seguintes termos:
"O sujeito do consentimento é o titular do direito fundamental em questão, que deverá manifestar de maneira válida e inequívoca a sua vontade. Para que ela seja válida, deverá ele ser civilmente capaz e estar em condições adequadas de discernimento para expressá-la. Portanto, além da capacidade, o titular do direito deverá estar apto para manifestar sua vontade, o que exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição. Para que se repute o consentimento como inequívoco, ele deverá ser, ainda, personalíssimo, expresso e atual. Personalíssimo exclui a recusa feita mediante representação, somente se admitindo que o próprio interessado rejeite a adoção do procedimento. A decisão, ademais, haverá de ser expressa, não se devendo presumir a recusa de tratamento médico.
Ainda que essa exigência possa não ser absoluta, ela certamente é recomendável, inclusive para resguardo do médico e do Estado. Por fim, a vontade deve ser atual, manifestada imediatamente antes do procedimento, e revogável.
Para que seja considerado genuíno, o consentimento precisará também ser livre, fruto de uma escolha do titular, sem interferências indevidas. Isso significa que ele não deve ter sido produto de influências externas indevidas, como induções, pressões ou ameaças. Por derradeiro, o consentimento tem de ser informado, o que envolve o conhecimento e a compreensão daquele que vai consentir acerca de sua situação real e das consequências de sua decisão. Nessa linha, os elementos relevantes devem ser transmitidos em linguagem acessível ao indivíduo, conforme indicado na Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (Portaria MS nº 675/2006), em seu Terceiro Princípio, item IV, e na Lei Estadual (RJ) nº 3.613/2001.".
Há relevante fundamentação nas razões de agravo de maneira a ensejar a concessão do efeito suspensivo, visto que envolve direitos constitucionais fundamentais como a Dignidade da Pessoa Humana e Liberdade (art. 1º, III, CF), bem como o direito de escolha de tratamento médico é firmemente apoiado na legislação brasileira, especialmente no art. 15 do Código Civil que assim dispõe:
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
Ademais, o Consentimento Informado determina que, antes de uma intervenção, o médico deve esclarecer ao paciente os benefícios e riscos da terapia (bem como alternativas), deixando que o enfermo expresse seu consentimento para o que considera ser o mais adequado aos seus interesses.
Todavia, em que pese a relevância e a riqueza do debate que se pode travar acerca do tema, verifico que, ao contrário do que alega a Agravada e aduz a decisão impugnada, há outro tratamento médico que poderá ser dispensado ao paciente - que não implique em transfusão de sangue -, como no caso do medicamento consentido pela paciente para a correção da anemia, que é a Eritropoetina (hormônio que atua na medula óssea para a produção de células sanguíneas. O medicamento referido está sendo administrado desde o dia 15/3/2015, um dia antes do ajuizamento da ação pela Agravante , conforme relatório médico acostado.
Nesta hipótese, fica diferida a aludida discussão doutrinária para outra ocasião, uma vez que não há no caso dos autos, ao meu sentir, colisão do direito invocado com o direito à vida.
Assim, diante dos elementos dos autos, verifico a possibilidade da Agravante eleger o tratamento que lhe aparenta mais pertinente e adequado à sua pronta recuperação, direito esse constitucionalmente assegurado, independentemente de crença religiosa.
Dispositivo
Em face do exposto, configurado nos autos os pressupostos para a concessão da tutela de urgência, mediante a existência de "elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo", na forma preconizada art. 300, caput, do Código de Processo Civil em vigência, defiro o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso para sustar os efeitos da decisão interlocutória que autorizou a transfusão de sangue forçada na agravante.
Justiça gratuita deferida.
Oficie-se o Juízo de origem, com urgência (art. 1.019, I, do novo Código de Processo Civil).
Intime-se a parte agravada para oferecer resposta.
Publique-se.
Brasília, 11 de abril de 2016.
DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES
Relator
Espaço para informação sobre temas relacionados ao direito médico, odontológico, da saúde e bioética.
- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.