Miguel Reale Júnior, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
O levantamento demográfico da medicina no Brasil publicado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em fevereiro, indicou que no nosso país o número de médicos cresceu 74%, na relação por 1.000 habitantes, de 1980 a 2012. Hoje se conta com 2 médicos para cada 1.000 habitantes, enquanto em 1980 a proporção era de 1,15. A meta proposta pela Frente Nacional de Prefeitos é de 2,75 por 1.000 habitantes no prazo de dez anos, o mesmo índice da Inglaterra. Esse crescimento desejado será conseqüência natural em face do número de inscrições nos Conselhos Regionais de formados pelas 201 faculdades existentes: de outubro de 2011 a outubro de 2012 se inscreveram 16.227 novos médicos.
Como destaca o censo demográfico da medicina, o problema não reside no número de médicos, mas na sua distribuição desigual pelas diversas regiões e, muito especialmente, na falta de outros profissionais de saúde, de instalações e equipamentos essenciais ao correto atendimento.
Malgrado esse quadro, o governo Dilma Rousseff, de modo demagógico, visando a satisfazer os objetivos de diminuirá carência de médicos em regiões prioritárias e as desigualdades regionais, criou, por medida provisória (MP), duas frentes: inovou o currículo do curso e permitiu o exercício da medicina aos formados no exterior, sendo a estes desnecessária a revalidação do diploma.
Quanto à primeira medida, inventou-se no currículo de Medicina um segundo ciclo a se realizar após os normais seis anos de curso - como se tal fosse necessário à formação do médico -, consistente na prestação obrigatória de atendimento médico a título de treinamento em serviço, exclusivamente, na atenção básica à saúde e em urgência e emergência no âmbito do SUS. Ignora-se que grande parte dos estudantes, sob orientação de seus professores, já presta, no 5.º e no 6.° anos, assistência a pacientes do SUS.
Essa imposição, da qual consta ter-se desistido, vigoraria a partir de 2021, pois aplicável aos estudantes que ingressassem na faculdade de 2015 em diante. Quem completasse o primeiro ciclo, os seis anos de curso, receberia inscrição provisória do Conselho Regional de Medicina ao se matricular no segundo ciclo, um meio médico, porque autorizado a atuar unicamente na atenção básica à saúde, em urgência e emergência no âmbito do SUS. Depois de cumprido o segundo ciclo receberia o estudante, então, o diploma de médico.
Prevê-se também que caberá ao estudante do segundo ciclo receber a necessária supervisão de sua instituição de ensino, como se isso pudesse ser feito pelas faculdades nos locais para onde será enviado o seu antigo aluno, no atendimento de emergência do SUS.
Trata-se de efetiva chantagem com o formando em Medicina: ou presta serviços ao SUS ou não recebe o diploma de médico - fazendo-se de conta que, depois do curso normal, trabalhar para o SUS seja essencial para a formação médica, para sua qualificação profissional. Viola-se a Constituição, ao se impor um serviço obrigatório admitido pela nossa Carta apenas com relação ao serviço militar. Afronta-se o disposto no artigo 5.º, XIII, pois não constitui, evidentemente, qualificação profissional para o exercício da medicina a prestação de serviços de emergência no SUS.
Caberá ao Conselho Nacional de Educação regulamentar o segundo ciclo, mas este já se manifestou no sentido de transformar em residência médica os anos de trabalho obrigatório no SUS, ideia agora aceita pelo governo. Conforme editorial deste jornal, a residência não poderá ser feita, em geral, na rede do SUS por falta de qualificação para tanto, de vez que a residência, como aperfeiçoamento, apenas é factível em hospital-escola ou de referência. Eufemisticamente se chama de residência o trabalho obrigatório.
Mais grave ainda a segunda medida: elimina-se a necessidade de avaliação de médicos, brasileiros ou estrangeiros, formados no exterior, dispensando o exame de revalidação do diploma. Entrega-se a saúde pública, com cegueira deliberada, a uma aventura. Estudantes mal sucedidos em vestibulares no Brasil, esses médicos formados na Bolívia, na Argentina e em Cuba, em cursos reconhecidamente sofríveis, não precisam do segundo ciclo nem de comprovar preparo técnico.
Quanto ao ensino cubano, basta o relato de ex-presidente do CFM Edson de Oliveira Andrade, que após visita à ilha assinalou: ``Os médicos recém-fomrados em Cuba não conseguem aprovação nas provas de revalidação de diplomas no Brasil porque a sua formação é deliberadamente limitada, com ênfase nos cuidados básicos - importantíssimos por certo, porém insuficientes para o exercício de uma medicina plena, como precisamos e exercemos no Brasil``.
Recebem os estrangeiros visto temporário de trabalho. Já os brasileiros, e são 20 mil a estudar Medicina na Bolívia, se livraram do vestibular e agora se livram também de revalidar o diploma, pois a MP exclui de incidência as normas do artigo 48, § 2.0, da Lei de Diretrizes e Bases, impositiva da revalidação, e do artigo 17 da Lei n.° 3.268/57, que exige para o exercício da medicina o registro do diploma no Ministério da Educação.
Deve-se lembrar ao ministro Lewandowski, do STF, que não viu urgência na concessão de liminar em ação interposta pela Associação Médica Brasileira contra a MP, poder tomar-se cúmplice da entrada de médicos mal formados, não avaliados, oriundos de cursos insuficientes em países latino-americanos. Urgente é impedir que a saúde seja entregue a profissionais despreparados, buscando magicamente suprir a desigual distribuição de profissionais nas regiões do País.
A demagogia não deve entrar na sensível área da saúde. Certo seria criar plano de carreira para médicos e iniciar ação conjunta com Estados e municípios para dotar de meios a rede pública de saúde. O mais é demagogia.
Fonte: O Estado de S.Paulo
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.