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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Aborto está no bojo da discussão da reforma do Código Penal

Quem se submete ao procedimento pode ser detida, mas a verdadeira prisão está na culpa e nas sequelas físicas

“Não tinha estrutura para ter um filho. Estava com 18 anos e trabalhava em casa de família. Arrumei uma enfermeira, indicada por uma amiga, que me levou para a casa dela. Fui sedada e, quando acordei, ela disse que, na minha barriga, tinha gêmeos. Chorei muito. Engravidei de novo e tentei abortar com a tal borrachinha, uma espécie de tubo que eles enfiam na gente. Não deu certo. Cinco anos depois, tive um mioma no útero e o médico disse que poderia ter sido causado pelo primeiro aborto. Perdi o útero. Durante seis anos, não saí de casa. Tive depressão e desenvolvi o transtorno bipolar. Tentei suicídio duas vezes porque o aborto sempre vem na minha cabeça. Quando você se arrepende, dói mesmo. Pedi perdão a Deus, mas nunca mais fui a mesma”
M.S.A, 41 anos

Belo Horizonte — Em silêncio, 300 mulheres morrem anualmente no Brasil por cometerem um crime: o aborto ilegal. Estima-se que de 800 mil a 1 milhão de brasileiras façam o procedimento por ano, muitas delas em condições desumanas, com o uso de talo de couve, de agulha de crochê e até de aspirador de pó para a retirada do feto. São em média 2,7 mil abortos por dia. Por hora, cerca de 115. Ricas ou pobres, elas encontram na clandestinidade o apoio para dizer não a uma gravidez indesejada. São, perante as leis brasileiras, criminosas, com risco de pena pelo delito de um a três anos de detenção. Para muitas, a prisão está na culpa carregada pelo resto da vida ou nas sequelas sentidas pelo corpo, entre elas, a perda do útero. Polêmico, o assunto é questão de saúde pública e o Brasil começa a dar seus passos para retirá-lo do Código Penal e torná-lo um direito da mulher.

O gatilho para a discussão vem com a reforma do Código Penal, para qual o Conselho Federal de Medicina (CFM) manifestou apoio à autonomia da mulher em abortar até a 12ª semana de gestação. Ou seja, a entidade defende que o Brasil não considere o procedimento como crime, garantindo estrutura médica para o ato. O órgão, que representa 400 mil médicos, fez votação entre os conselhos regionais e outras entidades, compostas por médicos, juristas e até padres, e o resultado, divulgado em março, jogou luz sobre o tema. Antes disso, o Conselho Federal de Psicologia já havia se manifestado a favor da descriminalização do aborto, em junho de 2012. Atualmente, o procedimento é permitido em casos de risco de vida para a mãe, de estupro comprovado ou em caso de fetos anencéfalos.

“Não queremos que o problema seja de polícia, mas que seja encarado como de saúde pública. São 300 mulheres por ano que poderiam estar vivas se morassem em Portugal, por exemplo, onde o aborto não é crime, assim como na maioria dos países europeus. Quando feito em hospital, o procedimento é mais seguro. Fora dele, elas correm 100 vezes mais riscos”, defende o obstetra e vice-presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Olímpio Morais.

Professor da Universidade de Brasília (UnB), o sociólogo e economista Marcelo Medeiros observa que a decisão de recorrer à ilegalidade para interromper a gravidez é tomada por mulheres de diferentes classes sociais. “Até os 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já usaram o método clandestino. Basta olhar ao lado e contar até cinco: uma dessas mulheres pelo menos fará um aborto ao longo da vida. E elas têm o perfil de uma mulher comum: pode ser sua vizinha, sua filha, sua irmã. Casadas ou não, com ou sem religião”, comenta Medeiros, um dos responsáveis pela Pesquisa Nacional de Aborto, premiada, no ano passado, pela Organização Pan-Americana de Saúde.

No estudo, ele e a antropóloga Debora Diniz, professora do Departamento de Serviço Social da UnB e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, apontam que a maior parte das mulheres no Brasil aborta usando o abortivo misoprostol, comercialmente conhecido como Cytotec. “O problema é que nem sempre elas têm acesso ao medicamento com qualidade e na dose certa, e muitas não têm acesso à higiene pós-aborto para evitar complicações, uma das principais causas de internação feminina no país. Trata-se de um problema de saúde pública, mas tratado como caso de polícia”, diz Medeiros.

Internação no SUS

Por ser considerado crime, não há números oficiais sobre os abortos provocados no país. Mas, ao se submeterem a condições inseguras para o ato, muitas mulheres, de acordo com especialistas, passam mal e são socorridas em prontos-socorros e maternidades, onde, por medo, não informam o motivo de estarem ali. São internadas e submetidas à curetagem.

Sem distinguir quantos casos foram provocados ou de aborto natural, os órgãos públicos divulgam a quantidade de curetagens uterinas pós-aborto, procedimento médico para a retirada de material placentário ou endometrial da cavidade uterina. De acordo com especialistas, de cada 100 gestações, 20 evoluem para o aborto espontâneo, a maioria não precisa de curetagem. “Do total de curetagens feitas por ano pelos estados, 60% são para socorro às mulheres que fizeram aborto ilegal”, estima Olímpio.

Levantamento de 2010 do Instituto do Coração, da Universidade de São Paulo (USP), feito pela médica Pai Ching Yue e coordenado por Debora Diniz mostrou que a curetagem depois do aborto foi a cirurgia mais realizada no SUS entre 1995 e 2007. O procedimento foi responsável pelo maior número de internações em todos anos, com mais de 238 mil registros/ano.

A maioria dos casos decorre da interrupção provocada da gravidez. Além disso, a pesquisa de Debora com Marcelo Medeiros apontou que 15% das brasileiras já abortaram e 55% delas foram internadas por complicações decorrentes do procedimento.

Depoimento
Feto entregue em saco de lixo

“Era meu nono filho. Eu e meu marido não tínhamos mais condições de ter mais uma criança dentro de casa. Com cinco meses de gravidez e aos 27 anos, tomei coragem e abortei. Injetei 12 comprimidos do remédio que aborta e outros dois. Passei muito mal. Tive uma hemorragia intensa. Achei que ia morrer. Fui levada a um hospital e tive uma parada cardíaca. Os médicos me salvaram e retiraram ‘o resto’ do feto de mim. Ele foi embrulhado em um saco de lixo e entregue ao meu marido. Foi a cena mais triste da minha vida. Não tive problemas depois. Hoje, tenho 12 filhos.”
m. a. d., 40 anos

Quarta causa de morte

O abortamento é a quarta causa de morte materna no país, segundo a ginecologista e professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Alamanda Kfoury. Ela explica que, quando se faz um aborto por medicamento abortivo, o remédio provoca uma contração contínua no útero. “É intensa, faz com que o colo uterino abra e elimine o embrião. Em maternidades e hospitais, ele (o remédio) é usado, por exemplo, em casos de morte embrionária. A paciente é internada e toma a dose certa. Pode ser usado via oral ou intravaginal”, explica.

Na clandestinidade, a medicação, vendida até pela internet, costuma ser usada em doses exageradas. “Sem acompanhamento médico, elas tomam (o abortivo) de forma excessiva e, na maioria das vezes, apresentam hemorragia ou ruptura do útero, podendo até perdê-lo”, alerta a médica.

Outro método é a curetagem ou aspiração ultrauterina. “São procedimentos cirúrgicos com internação, sedação e raspagem do útero”, explica Kfoury. A ginecologista diz que, em clínicas clandestinas, o procedimento, muitas vezes, é feito com a introdução no útero de um tubo de plástico, chamado cânula. “Dão um analgésico à mulher e o risco é de hemorragia. Muitas vezes, não houve a perda do feto. Então, há infecções, elas recorrem aos hospitais e muitas não falam o motivo do sangramento”, conta Alamanda, lembrando que o risco de morte, nesses casos, é alto.

“Quando elas buscam socorro, temem ser punidas pela ilegalidade e se calam. Quando uma mulher morre, morre a família inteira”, lamenta o coordenador da Atenção da Saúde da Mulher da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Virgílio Queiroz.

Fonte: Correio Braziliense / Luciane Evans