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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Lei não prevê crime para venda de óvulos

*Por Brunello Stancioli

Cada geração tem sua especificidade. Cada uma, problemas impensáveis há 30, 60 anos. E todas devem buscar as suas próprias soluções.

Um dos maiores problemas da chamada geração "X" tem sido a postergação da maternidade.

É sabido que a melhor idade para terem-se filhos, observando-se exclusivamente a qualidade dos óvulos, está entre 19 e 24 anos. Chega a assustar. Ter filhos nessa idade soa quase despropositado.

Os casais, então, têm recorrido, cada vez mais, à fertilização in vitro.

Mas o problema não se esgota aí.

A partir dos 40 anos de idade, os óvulos da mulher caem vertiginosamente de qualidade. Restam, então, duas opções: a adoção ou a ovodoação. Se adotar soa quase virtuoso, não se pode negar, à mulher, o direito de gestar.

Conseguir um óvulo doado, no entanto, não é nada fácil. Doar um óvulo não é como doar sangue. É procedimento muito mais complexo. Para tanto, em uma situação próxima ao ideal, uma jovem de 19 a 24 anos precisa: a) ir a uma clínica especializada; b) fazer vários exames psicológicos e físicos (DSTs, genéticos, etc.); c) tomar uma grande quantidade de medicamentos, especialmente hormônios; d) ter um procedimento cirúrgico.

Todas essas etapas devem ser feitas sem nenhuma contrapartida. Haja altruísmo!

É preciso ter em mente que não há bancos de óvulos, pois sua criopreservação ainda não gerou resultados satisfatórios — tornando tudo bem mais complexo. Não à toa, conseguir um óvulo doado é bem difícil.

Faz-se, então, a pergunta: seria possível comprar um óvulo?

A Constituição de 1988 afirma, no artigo 199, parágrafo 4º, o seguinte:


Artigo 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

[...]

Parágrafo 4º — A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

Bem, os óvulos não são órgãos, nem tecidos, nem sangue ou derivados. Talvez sejam "substâncias humanas". O termo é absolutamente impreciso, quase pré-moderno. Apesar de significar "suporte", seu uso é maior na teologia (natureza essencial de algo). Só por derivação seria utilizado para definir elementos químicos ou biológicos. Incluir-se-iam aí cabelos? Unhas? Saliva? Suor?

Além disso, vários produtos de origem biológica humana são comercializados. Citem-se os hormônios humanos vendidos pela indústria farmacêutica, como a eritropoietina, a vasopressina, o hormônio do crescimento, a dopamina, a adrenalina, o hormônio da tireóide, e dezenas de outros.

Outro documento legal a tratar do assunto é a Lei 11.105/2005, a Lei de Biossegurança. Alvo de grandes controvérsias, dispõe, em seu artigo 5º:


Artigo 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

[...]

Parágrafo 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

Duas são as conclusões.

Primeiramente, o crime refere-se à comercialização de embriões, conforme dispõe o caput do artigo. Em segundo lugar, o parágrafo 3º remete à Lei 9.434 (de transplantes de órgãos e tecidos), a qual destaca, já no parágrafo único do seu artigo 1º:


Artigo 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.

Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo.

Logo, não há crime previsto para a venda de óvulos!

A única disposição clara a respeito da proibição da venda de óvulos não está na Lei.

A Resolução 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina, que trata da fertilização in vitro, afirma que a doação de gametas não terá fins lucrativos ou comerciais.

Curioso. Pode-se pagar (e paga-se bem!) pelos remédios associados ao processo. Pela fertilização in vitro. Pela qualidade do embrião (Diagnóstico Genético Pré-Implantatório). Pelo implante dos embriões. Pelo acompanhamento da gestação. Pelo parto. Quem não pode receber nada por esse processo? A doadora.

Não há coerência.

Parece haver um medo de "comercialização do humano", talvez induzido por distopias futuristas ingênuas, como Gattaka.

A comercialização de óvulos é permitida em alguns países, como a Espanha. E vai muito bem.

Toda essa argumentação aponta para um processo inexorável: a dessacralização do corpo humano. Na linha histórica de um processo que vem desde o Renascimento, a "redescoberta" do corpo como sendo elemento fundamentalmente bio-físico-químico coloca novas possibilidades de uso de elementos biológicos humanos.

Comercializar óvulos parece ser um bom começo para promover a maternidade em tempos de "Geração X".

Brunello Stancioli é professor na Faculdade de Direito da UFMG, mestre e doutor pela UFMG e Pós-Doutor pela Universidade de Oxford

Fonte: Revista Consultor Jurídico