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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Barriga de aluguer... a Ana e a Tatiana

PORTUGAL

*Por Isilda Pegado

A Tatiana afeiçoou-se cada vez mais ao bebé que tinha dentro de si. Mas... tudo voltou ao previsto. O bebé seria da Ana e do João


A Ana e a Tatiana são filhas do Sr. Pedro e da D. Odete. Duas irmãs muito amigas. A Ana casou-se e, passado algum tempo, teve um problema de saúde e, na cirurgia, retirou o útero. O João, seu marido, tinha pena de não ter um filho, mas depois da doença da Ana estava conformado. A vida realizava-se de muitas outras formas.

Porém, a lei da “gestação de substituição” foi aprovada e a Tatiana estava solteira, não pensava casar-se, e tinha 38 anos. Foram os pais Odete e Pedro quem sugeriu à Tatiana que num acto de generosidade se oferecesse à irmã e ao cunhado para lhes gerar um filho. A Tatiana primeiro disse que não. Mas, após as conversas dos pais (de que fugia), começou a pensar que esta sua recusa era um egoísmo. Afinal, ser “mãe portadora” seria um altruísmo. E nove meses até passam depressa. Além disso, fazia a experiência da maternidade... por nove meses. Nesse seu “voluntarismo” ofereceu-se à irmã, que também já tinha colocado essa hipótese. Iniciaram então o processo de fecundação.

A Ana foi submetida a estimulação hormonal ovária durante alguns meses, e o João foi várias vezes à clínica para recolha de sémen. O João quis desistir deste processo tão violentador da intimidade do casal. Mas não falava, para não magoar a Ana. Após várias penosas tentativas falhadas, como aliás é normal nestes processos de PMA [procriação medicamente assistida], um embrião foi finalmente implantado no útero da Tatiana.

A Tatiana, embora inicialmente sentisse que tudo lhe era estranho, a certa altura (a partir das seis ou sete semanas) começou a ter vómitos, muito sono e o corpo a modificar-se. Ia ao médico com a irmã e o cunhado. Vibrava com cada ecografia que ia fazendo. Mas ao olhar para a cara da Ana via nela uma tristeza que não sabia explicar. A protagonista era a Tatiana. A Ana era a espectadora e expectante da maternidade... A Tatiana fazia a medicação recomendada, aguentava as constipações sem “aspirina”, tinha a pele com manchas...

A dada altura, feito um exame colocou-se a hipótese de o bebé ter uma malformação congénita muito incapacitante. A Ana e o João disseram “se o médico recomenda a IVG [interrupção voluntária da gravidez], o melhor é seguir o conselho de quem sabe...” A Tatiana durante uns dias não foi vista, nem atendeu o telemóvel. E, quando confrontada, disse: “Eu não sou capaz de fazer mal a este bebé, seja o que for, virá!” A discussão foi acesa, porque o João e a Ana diziam que aquele bebé era fruto do sémen e do óvulo deles e não pertencia à Tatiana. Foram dias muito duros de desentendimento entre as duas irmãs, que tinham sido tão amigas. E, discussões entre a Ana e o João que imputavam um ao outro esta situação. Os avós (do bebé) choravam amargamente a situação a que também tinham dado causa.

Valeu a toda esta situação uma boa notícia vinda com a repetição dos exames médicos – afinal o bebé não sofria do tal problema ou, se existisse, era curável.

Entretanto, a Tatiana nessas últimas semanas afeiçoou-se cada vez mais ao bebé que tinha dentro de si. Era a única que o defendia. Mas... tudo voltou ao previsto. O bebé seria da Ana e do João.

A Ana fazia o enxoval. E a Tatiana contava o que sentia – as modificações do seu corpo, os “desejos” de “beterraba” ou de “sardinhas”... Era sempre com a cara no chão que a Ana ouvia estes relatos. A maternidade era da irmã e não sua.

A partir de certa altura, a Tatiana deixou de relatar os pontapés do bebé, o bebé que se mexe, os sonhos com o bebé, etc., etc. Deixou de se queixar das varizes nas pernas, das estrias na barriga, dos quilos que não controlava, etc., etc. Foi fazer ginástica para grávidas e, ali, junto das outras grávidas estava feliz, era a mãe daquele bebé, aqui partilhava esta sua nova vida.

O bebé nasceu. Era um belo rapaz – André, assim chamado.

A Tatiana tinha muito leite, mas a Ana e o João decidiram que o bebé não seria amamentado a peito. Agora, o André era deles. Só deles.

A Tatiana teve de “secar o leite” num processo clinicamente orientado. Com muitas dores (físicas e da alma) conseguiu livrar-se ao fim de dois meses de alguns caroços que ficaram no peito. Os (nove) quilos que lhe sobraram da gravidez exigiram longos meses de ginástica. E as estrias e as varizes que agora aos 39 anos tinha ficaram para toda a vida. Qual “coroa de glória” ou “fel de um acto” que chorava diariamente. O André era seu. Não o esquecia. De cada vez que olhava para um daqueles sinais (varizes, estrias, gordura) era o André que lhe vinha à cabeça. Corria para junto do sobrinho, mas a irmã hostilizava-a – “agora deixa-nos viver”.

O André não foi um bebé fácil. Noites difíceis, algumas doenças, médicos, banco de hospital, etc., etc. O João estava exausto. A mulher só tinha olhos para o filho. E ele, pai, cada vez mais cansado, foi-se afastando, até que quando o André tinha 15 meses o João pediu o divórcio. Afinal todos somos livres e tinha encontrado “outra pessoa”. Cumpriria com as suas obrigações de pai. Mas...

A Ana, agora divorciada, e afrontada pela presença da irmã que procurava o André, decidiu, ao fim de dois anos, emigrar para um país longe. Tinha o André quatro anos.

Foram reguladas as responsabilidades parentais e o menino vinha a Portugal no Verão, no Natal e na Páscoa. Nesses tempos, o André só queria estar com a tia e mal a via saltava-lhe para o colo, como não fazia com mais ninguém.

Foi sempre uma criança problemática, teve acompanhamento psicológico, pedopsiquiátrico, etc., etc. A adolescência foi muito revoltada com a mãe, com o mundo e com tudo o que o rodeava. A Tatiana ia sabendo das tristes notícias, com amargura.

Aos 18 anos, o André deixou a mãe no país estrangeiro e veio para Portugal, para casa dos avós maternos, para tentar acabar o secundário. Os avós, por vezes quando o olhavam, perguntavam – “Porque terão feito 'aquela lei'? Que drama nos bateu à porta? Quem imaginaria que as nossas duas filhas hoje não se possam ver? Porque está a Ana sozinha nos EUA, militante de uma ONG que 'luta contra as barrigas de aluguer e a favor dos direitos da mulher'?"

E o André cantava, de vez em quando, uma famosa cantiga de resistência ao Estado Novo, “Que eu nem sequer fui ouvido, no acto de que nasci”...

Fonte: www.publico.pt