*Por Laura Ferreira dos Santos
Debater com seriedade seria problematizar as questões que aqui coloco, e não oferecerem-me manuais de Direito.
No dia 9 de Junho deste ano, o PÚBLICO fez sair um artigo meu — Proteger a santidade da vida, mas não a dignidade de quem morre — a propósito da petição “Toda a vida tem dignidade”. A 14 de Julho saía neste mesmo jornal um artigo de José Seabra Duque [JSD], signatário da Petição, tendo-me por alvo principal, mas não as razões que eu invocara no meu texto. Estupefacta e com muitos problemas, foi o meu amigo João Ribeiro Santos [JRS], médico nefrologista aposentado, co-fundador do Movimento Direito a Morrer com Dignidade, a responder-lhe em artigo aqui publicado em 25 de Julho. Em 13 de Agosto o mesmo JSD volta ao assunto, atacando JRS e não deixando de referir que o primeiro alvo do primeiro artigo tinha sido a minha pessoa. Aqui vão umas pequenas notas.
1. JSD afirmou que o meu artigo tinha como “único objectivo atacar a Petição” que subscreveu. Não é verdade. Se o motivo imediato para escrever o artigo foi a Petição, o que pretendi foi, mais uma vez, ir ao âmago do tema. Daí que rapidamente tenha abandonado a Petição, enveredando por recorrer de novo à distinção notável que o reconhecido Ronald Dworkin, filósofo do Direito, fizera em tempos entre dois modos de entender a inviolabilidade ou sacralidade da vida humana, um enfatizando apenas a vida biológica, outro dando mais atenção à vida biográfica. Esforcei-me ao máximo por dar clareza a esta distinção, mas JSD nem sequer se lhe referiu, preferindo dizer de modo fácil que nem eu nem os que concordam comigo sabemos o que qualquer estudante do 1.º ano do curso de Direito sabe sobre a inviolabilidade e indisponibilidade da vida humana, que é o que vem na Constituição e no Código Penal. Oferecia-se mesmo para nos dar o nome de manuais que poderiam ilustrar a nossa ignorância. Estranhamente, JSD acrescentava, em contramão, que um aluno do 1.º ano de Direito “também aprende que sobre qualquer assunto do Direito a doutrina diverge”, mas nada concluía daí.
JRS disse-lhe que tais manuais também deveriam ser recomendados aos especialistas do Direito José Faria da Costa, Jorge Reis Novais, Luísa Neto e Teresa Beleza, ouvidos na Assembleia da República (as audições estão on-line) e tão ignorantes quanto nós, mas nenhuma referência a estas audições existe no seu último artigo, “Eutanásia: um debate que exige seriedade”.
2. JSD acusa-me de ter neste campo uma “visão pré-concebida” derivada “de uma qualquer obsessão com a Igreja Católica”. Tão-pouco esta é uma afirmação séria: embora neste momento não saiba situar-me religiosamente, durante mais de trinta anos fui católica. E, como disse no artigo inicial, há várias pessoas católicas que apoiam a despenalização da morte assistida, como Hans Küng ou Desmund Tutu. Sobre isto, JSD nada diz.
3. No seu último artigo JSD não acrescenta nada de novo, embora já não nos remeta para os seus preciosos manuais. Aliás, se tivesse lido pelo menos o meu livro Ajudas-me a morrer?, daria conta de que eu sei e problematizo há muito o que diz a Constituição e o nosso Código Penal sobre estas questões.
4. No seu primeiro artigo, JSD perguntava: “pode o estado ajuizar o momento em que uma vida deixa de ser digna? Mais, pode depois o Estado, através de um qualquer profissional de saúde, matar uma pessoa?”.
Por acaso terá ouvido algum de nós dizer que o Estado devia determinar a dignidade ou não de uma vida humana? É sério dizê-lo? No dia em que o Estado queira determinar a não-dignidade da vida de uma pessoa terá declaradamente a minha oposição. Diferente é o Estado permitir que uma pessoa esclarecida e em estado grave e irreversível queira ser ajudada a terminar de vez com o seu sofrimento.
5. Repito-me: considerar que o valor da vida humana possui um valor cósmico impessoal e objectivo é algo que define uma crença religiosa, mesmo que sustentada por pessoas que se consideram alheias ao religioso. Logo, é em nome da liberdade religiosa que os estados democráticos deverão impedir-se de tentar obrigar os cidadãos a optar entre interpretações distintas do valor da vida humana.
6. E recorro de novo a Dworkin: “Porque valorizamos a dignidade, insistimos na liberdade, e colocamos a liberdade de consciência no seu centro, de modo que um governo que nega esse direito é totalitário, por mais que nos deixe livres em escolhas que têm menos importância. Porque honramos a dignidade, exigimos democracia, e definimo-la de tal modo que uma constituição que permita a uma maioria negar a liberdade de consciência é inimiga da democracia, não a sua autora”.
7. Seria conveniente que o jurista JSD, quando quiser escrever com seriedade sobre estes temas, em vez de oferecer títulos de manuais, problematize estas questões.
Professora Aposentada da UMinho, co-fundadora do Movimento Direito a Morrer com Dignidade
Fonte: PUBLICO.pt
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.