O juiz Jesseir Coelho de Alcântara, da 1ª Vara Criminal de Goiânia, determinou o encaminhamento dos autos do inquérito que apura o envolvimento de Raquel Policena Rosa e Fábio Justiniano Ribeiro na morte de Maria José Medrado de Souza à Procuradoria Geral da Justiça de Goiás. O magistrado discordou do posicionamento do representante do Ministério Público do Estado de Goiás, que se manifestou pela redistribuição para outra vara criminal de Goiânia. A 1ª Vara Criminal é uma das que atuam em processos envolvendo crimes dolosos contra a vida.
O inquérito policial foi instaurado para apurar a morte de Maria José Medrado de Souza, ocorrida em 25 de outubro de 2014, no Hospital Jardim América, após ela ter sido submetida a procedimento estético, denominado bioplastia glútea, com aplicação de Hidrogel Aqualift, em uma clínica de estética. Segundo o inquérito policial, a vítima conheceu a Raquel Policena em uma rede social, onde anunciava o procedimento estético. A investigada, que morava em Catalão, veio até Goiânia e se hospedou em um hotel no Setor Oeste, no dia 12 de outubro de 2014, onde realizou, na companhia do namorado Fábio Justiniano, aplicações de Hidrogel nos glúteos de Maria José e de outras mulheres. Foi cobrado o valor de R$ 3,5 mil.
A primeira aplicação não alcançou o resultado e foi preciso realizar uma nova sessão. Maria José queixava-se de dores e de inchaço na região. Foi marcado outro encontro, no dia 24 de outubro, em uma clínica de estética no Setor Parque das Laranjeiras. A vítima teria sido orientada a usar cola para estancar o vazamento no orifício deixado pela agulha usada para introduzir o Hidrogel no glúteo. Após a segunda aplicação, segundo o inquérito policial, a mulher já saiu da clínica de estética sentindo mal-estar, especialmente falta de ar.
Ao chegar à casa, o estado de saúde foi se agravando e ela foi levada ao Centro de Assistência Integrada à Saúde (Cais) do Setor Vila Nova. Como o seu quadro se agravou, Maria José foi encaminhada para o Hospital Jardim América e morreu na madrugada do dia seguinte. A Polícia Civil instaurou inquérito policial e indiciou Raquel Policena e Fábio Justiniano por homicídio com dolo eventual, pois realizaram procedimento de bioplastia glútea sem habilitação, pois “criaram o risco da ocorrência do resultado morte” e “assumiram o risco de produzir o resultado morte na vítima.”
Ao opinar pela redistribuição do inquérito, o representante do MPGO explicou que assumir o risco não se confunde com previsibilidade do resultado. “Assumir o risco é mais, é assentir no resultado. É identificar o elemento subjetivo. É identificar o animus que conduziu os agentes ao crime”, afirmou. De acordo com o MPGO, em que pese a conduta do dois indiciados merecer severa censura moral, por aventurarem-se na prática de procedimentos estéticos sem qualificação técnica, a inabilidade, por si só, não basta para a configuração do dolo.
O representante do MPGO, em seu parecer, fez a diferenciação de dolo eventual e culpa consciente. Para ele, no dolo eventual o agente assume o risco de causar o resultado, ou seja, “não se importa se tal resultado ocorrer e vitimar pessoas”. Na culpa consciente, o infrator não aceita a ocorrência do resultado e atua com confiança nas próprias habilidades, na certeza de que nada acontecerá. Segundo ele, a diferença é sútil, o que leva a prestigiar “um dos mais importantes princípios do direito penal, do in dubio pro reo, razão pela qual não se pode, sem elementos concretos e seguros de prova, imputar ao agente o dolo eventual “apenas para satisfazer sentimentos particulares de justiça”.
Sob esse argumento, o representante ministerial entendeu que Raquel Policena e Fábio Justiniano não praticaram crime doloso contra a vida, devendo ser processados por exercício ilegal da medicina – artigo 282 do Código Penal Brasileiro (CPB) – e utilização e comercialização de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais – artigo 272, parágrafo 1º do CPB –, bem como por homicídio culposo.
Jesseir de Alcântara (foto) afirmou que o MP é o titular da ação penal e quando recebe os autos de inquérito policial pode oferecer denúncia contra o indiciado, requerer novas diligências à autoridade policial, imprescindíveis à investigação ou pedir o arquivamento da pela investigativa. “A princípio, há uma deducação lógica de que nenhuma das hipóteses ocorreu. Entretanto, tanto a doutrina como a jurisprudência têm o entendimento de que a manifestação ministerial configura-se como arquivamento indireto”, afirmou o magistrado.
Segundo Jesseir de Alcântara, o arquivamento indireto ocorre quando membro do MP se vê sem atribuição para oficiar em um determinado feito e o magistrado se diz com competência para apreciar a matéria. Para ele, analisando os autos, extrai-se indícios de que Raquel Policena e Fábio Justiniano assumiram o risco de provocar eventual morte de Maria José já que não estavam aptos para exercerem a função de médico e, mesmo assim, atenderam a vítima, por duas vezes, realizando procedimento estético do tipo invasivo, privativo de profissional da medicina, que provocou embolia pulmonar, causando-lhe a morte.
O magistrado afirmou também que Raquel Policena e Fábio Justiniano sabiam que a aplicação do hidrogel é de atribuição exclusiva da área médica. “Vejo que os indiciados agiram com indiferença à morte de Maria José, porque tinham consciência de que o procedimento estético invasivo tem capacidade para provocar abalos à saúde da paciente, pois deve ser feito somente com amparo médico. Qualquer leigo sabe que não se pode aplicar líquido ou fluído no corpo humano, sob pena de desencadear problemas na corrente sanguínea. Nesse diapasão, verifica-se claramente a figura do dolo eventual. Os suspeitos assumiram o risco e produzir o resultado morte e insistiram em sua conduta ao realizar pela segunda vez a palicação do hidrogel para correção”, escreveu Jesseir de Alcântara.
*Informações de João Carlos de Faria do TJGO
Fonte: SaúdeJur
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.