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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Limites entre o erro médico e a responsabilidade criminal

*Por Bruno Milanez

A medicina é, na atual e complexa sociedade em que vivemos, uma profissão eminentemente relacionada ao risco, motivo que tem cada vez mais desencadeado conflitos no campo jurídico. Há uma pluralidade de circunstâncias geradoras desta situação, sendo impossível indicá-las à exaustão. É inequívoco, contudo, que muitas questões jurídicas envolvendo o exercício da medicina transitam pela violação de deveres ético-jurídicos inerentes à profissão.

Outro fator que também contribui para com o acréscimo de demandas judiciais envolvendo o exercício da medicina diz com a má atuação de determinados profissionais, o que pode caracterizar o denominado erro médico. A responsabilização médica por atuação inadequada pode envolver mais de uma esfera jurídica. Assim, não é incomum que a prática de um único ato ilícito no exercício da medicina possa desencadear consequências nas esferas administrativa (ex.: cancelamento ou suspensão do CRM), cível (ex.: pagamento de indenização por erro médico) e criminal (ex.: punição por lesões corporais graves em uma cirurgia estética mal executada).

Contudo, o exercício da medicina é uma atividade meio, de modo que nem sempre a ineficácia no serviço prestado possui qualquer repercussão na esfera penal, sendo necessária a análise, em um primeiro momento, do nexo causal entre a conduta do profissional da medicina e o resultado típico – relevante para a esfera penal.

O nexo de causalidade consiste na relação de causa e efeito, sendo adotado o critério da imputação para atribuir um resultado típico a um cidadão – no caso em análise, ao profissional da medicina – como obra direta dele. Sendo assim, para que um resultado seja típico, deve ser causado e imputado ao médico.

Evidentemente – e conforme mencionado acima –, não se nega que a medicina é uma atividade meio, o que significa dizer que nem sempre os resultados esperados serão conseguidos através da intervenção médica. Em contrapartida, porém, espera-se que a atuação do profissional esgote todos os meios possíveis para que os fins sejam atingidos. Neste particular, tem-se reconhecido que

“o profissional da medicina está submetido à obrigação de meio, o que significa afirmar que tem de envidar toda diligência e utilizar-se de todos os recursos disponíveis para a melhor condução possível do caso clínico que será alvo de seus préstimos.” – g.n. – (TA/PR – ApCrim 217.186-0, Rel. Luiz Zarpelon, Julg. 12.8.2004)
A partir desta concepção, tudo o que não for compreendido dentro das possibilidades reais da atividade médica – ainda que possa ser causa direta e eficiente de um resultado típico –, não pode ser imputada ao seu ofício e, portanto, não é atribuível ao médico como obra dele. Assim, por exemplo,

“não caracteriza erro médico o diagnóstico de faringite em menor que vem a falecer, após a constatação de meningite, não só pela possibilidade de evolução de um quadro clínico para o outro, cujos sintomas se revelaram posteriormente, já no seio familiar, como, ainda, pela ausência de condições materiais do posto de saúde, de uma cidade do interior, para realização de exames mais detalhados” – g.n. – (TA/PR –ApCrim 189.649-9, Rel. Airvaldo Stela Alves, Julg. 5.9.2002)
Constatado o nexo causal entre a conduta do profissional da medicina e o resultado típico e podendo ser a ele imputado – e não à ausência de condições materiais – necessária a análise do dolo em sua conduta. Tema recorrente em artigos jurídicos – principalmente após decisões polêmicas do poder judiciário nos crimes cometidos na direção de veículo automotor – a doutrina divide o dolo (art. 18, I, CP) em três modalidades, quais sejam, o dolo direto de primeiro e segundo graus, bem como dolo eventual.

No dolo direto, o autor do delito deseja e direciona sua vontade à produção do resultado típico com a sua ação. No dolo direto de primeiro grau, o resultado delitivo é o fim principal do agente. O dolo direito de segundo grau, por seu turno, ocorre quando o agente pretende diretamente um resultado típico, porém, para a consecução deste resultado, utiliza-se de meio que sabe ser consequência necessária (condição sine qua non) para a ocorrência de outros resultados típicos, aceitando deliberadamente tais consequências secundárias, igualmente delituosas (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2006, p. 427/428).

Especificamente no que concerne ao tema do presente artigo, configura hipótese de dolo direto de primeiro grau o caso em que um médico, no exercício de sua profissão, ministra veneno, ao invés de medicamento, no intuito de causar a morte de um paciente hospitalizado, que é seu desafeto. O mesmo ocorreria no caso de se desligar deliberadamente os aparelhos de um paciente para desocupar uma vaga de UTI, sabendo que este fato acarretará, invariavelmente, o falecimento do paciente, que não morreria se os aparelhos permanecessem ligados.

O dolo direito de segundo grau ocorre se o médico insere veneno em todos os frascos de soro fisiológico que serão ministrados em determinada ala do hospital, pois, quer a morte do paciente que é seu desafeto, mas não sabe qual frasco será ministrado nele. Nesta hipótese, a morte dos demais pacientes é consequência necessária do meio escolhido para efetivar seu projeto delitivo (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2006, p. 427/428). Neste exemplo, o agente pretende diretamente a apenas a morte do seu desafeto (paciente), porém para concretizá-la, aceita a morte de todos os demais como consequência necessária dos meios empregados.

No dolo eventual, o agente prevê a ocorrência de um resultado típico e não o deseja, mas se conforma com a sua eventual ocorrência (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2006, p. 428). O Supremo Tribunal Federal entendeu haver indícios de dolo eventual em hipótese na qual o único médico plantonista de um posto de saúde se recusou, reiteradas vezes, a atender uma criança que veio a falecer, sob a escusa de que não era pediatra. No caso, restou consignado que

“para a configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente [em relação ao resultado], nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. (…) descreveu-se a conduta do médico haver se recusado, por duas vezes, em dias consecutivos, a atender a vítima que já apresentava sérios problemas de saúde, limitando-se a dizer para a avó da vítima que a levasse de volta para casa, e somente retornasse quando o médico pediatra tivesse retornado de viagem. Em tese, o único médico plantonista, procurado mais de uma vez durante o exercício de sua atividade profissional na unidade de saúde, cientificado da gravidade da doença apresentada pelo paciente que lhe é apresentado (com risco de vida), ao se recusar a atendê-lo, determinando o retorno para casa, sem ao menos ministrar qualquer atendimento ou tratamento, pode haver deixado impedir a ocorrência da morte da vítima, sendo tal conduta omissiva penalmente relevante devido à sua condição de garante.” (STF – HC 92.304, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. 5.8.2008)
Para além dos casos citados, de dolo direto de primeiro e segundo graus e dolo eventual, como regra geral, os erros médicos penalmente relevantes acarretam crimes culposos. Nestes crimes, o sujeito ativo (autor do fato) também pode representar para si a hipótese da produção de um resultado através de sua conduta, porém, rejeita-o, crendo levianamente que irá evitá-lo ou que o resultado não ocorrerá por outras circunstâncias.

É perceptível, portanto, que a linha distintiva entre dolo eventual e culpa consciente é bastante tênue, sendo que em ambos, há a representação do resultado, entretanto, se o médico representa e aceita a possibilidade de causação do resultado, caracteriza-se dolo eventual e se, por outro lado, o resultado é previsto (representado), mas rejeitado, através da crença leviana na sua não ocorrência ou ainda na possibilidade de sua evitação, caracteriza-se culpa consciente.

A discussão sobre a existência de dolo eventual ou culpa consciente pode ocorrer, no direito penal médico, em hipóteses de complicações previsíveis em cirurgias, nas quais a equipe médica não se cerca das devidas cautelas para evitá-las e, por esta circunstância, o paciente operado sofre lesões corporais ou falece.

Nestes casos, a jurisprudência (veja aqui) reconhece a distinção entre o risco inerente ao ato cirúrgico (circunstância atípica que exclui a responsabilidade criminal) e a existência de riscos previstos e previsíveis inerentes à cirurgia, cujas consequências demandam as cautelas inerentes ao exercício da profissão:

“O ato cirúrgico é fator de preocupação para o médico. Nele, a concentração, a capacitação, a integração entre a equipe, são fundamentais para o êxito do procedimento. Por mais simples que possa parecer, contém riscos previsíveis, havendo, por conseguinte, obrigação de evitá-los.” – g.n. – (MARTINS, 2008, p. 54)
Os delitos culposos envolvem, necessariamente, a lesão a um dever objetivo de cuidado. Esta violação pode assumir três feições distintas: (a) imprudência: é a culpa em sua forma ativa, como por exemplo, o médico que acelera os procedimentos de uma cirurgia, por estar atrasado para outro compromisso e causa o resultado morte ou lesão; (b) negligência: é a culpa que deriva da inobservância/omissão em relação à observância de uma regra de cuidado, como uma falta de cautela do médico, que durante uma cirurgia utiliza instrumentos cirúrgicos não esterilizados, que são causa de infecção e morte de um paciente e; (c) imperícia: é a falta de habilidade ou competência técnica no exercício da profissão, que pode acarretar consequências delitivas (SOUZA, 2009, p. 26).

“Existe negligência quando o agente reconhece em laudo a existência de feto único, quando na verdade a gestação era de gêmeos, e recusa-se a realizar outro exame. Já a imperícia se verifica quando o agente, mesmo tendo conhecimento técnico, confirma diagnóstico equivocado de gestação e não se utiliza de todos os meios de que dispõe para aferi-la com precisão, uma vez que de acordo com o estado gestacional de 08 (oito) meses aproximadamente, seria possível detectar a existência de dois fetos, o que foi constatado através de parecer idôneo, indicando a baixa qualidade técnica do exame realizado.” – g.n. – (TJ/PR – ApCrim 653.743-9, Rel. Oto Luiz Sponholz, Julg. 4.11.2010)

No direito penal médico, a lesão ao dever objetivo de cuidado é caracterizada principalmente pela inobservância de regras técnicas inerentes à profissão, gerando um risco não permitido à saúde/integridade do paciente. A partir desse critério, o Supremo Tribunal Federal reconhece como homicídio culposo a conduta de médico que não observa regras técnicas inerentes à profissão e que geram a morte de um paciente:

“a conduta típica do crime de homicídio, praticada pelo médico na forma culposa, consistiu em deixar de praticar atos que poderiam evitar a morte da vítima, ou seja, por não ter observado os cuidados objetivos necessários, que seriam aptos a evitar o resultado morte. (…) a prova pericial constatou falha técnica do profissional que impediu que a vítima recebesse, em tempo hábil, o tratamento adequado, fazendo com que o trauma acidental evoluísse ao óbito.” (STJ – HC 220.120, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe. 15.8.2012.)

REFERÊNCIAS
ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal: parte geral. vol. 1. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. A responsabilidade penal por erro médico. In: Revista Jurídica da FURB, nº 3, jun. 2008.
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito Penal Médico. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
SANTOS, Juarez. Cirino dos. Direito Penal: parte especial. 3. ed. Lumen Juris, 2008.

Fonte: Canal Ciências Criminais