De acordo com advogado, a cirurgia foi feita por médica sem especialidade em obstetrícia e a equipe não sabia sequer qual era o tipo sanguíneo da paciente. Caso aconteceu em hospital municipal, na Mooca, zona leste de São Paulo
Era para ser uma ocasião feliz para a família de Elane Pereira, 39 anos. Ela, que já era mãe de Ana Carolina, 15, e de Rebeca, 7, acabara de passar por um parto cesárea no Hospital Dr. Ignácio de Proença Gouveia (João XXIII), na Mooca, zona leste de São Paulo, em que trouxe ao mundo sua terceira filha, Isabella, no dia 3 de agosto deste ano. No entanto, 13 dias depois, ela morreu, deixando o marido, Maciel, e as três meninas.
De acordo com Ana Carolina, filha mais velha, Elane começou a sentir fortes dores abdominais depois da cirurgia. "Ela estava trêmula. Meu pai perguntou para ela se algum médico havia ido ver o seu estado e a resposta foi não", contou a estudante. Segundo Ana, foi somente no final da tarde do dia seguinte que os médicos resolveram realizar outro exame para saber o que acontecia. "Perceberam que ela estava com hemorragia. Só então decidiram tirar sangue para saber qual era seu tipo sanguíneo para receber a transfusão. Mas ela permaneceu no hospital por 13 dias e os médicos ainda não sabiam qual era seu tipo de sangue", disse a menina. De acordo com a assessoria de imprensa da Autarquia Hospitalar Municipal (AHM), Anelise Souza -- que realizou o parto, segundo a família -- é residente. "Meu pai está revoltado", disse Ana Carolina, em entrevista à CRESCER. "Minha mãe se foi deixando três meninas! O que me dói saber é que ela se foi sofrendo", escreveu em um post compartilhado por milhares de pessoas nas redes sociais.
Os laudos médicos em que constam todas as informações sobre o caso estão com o advogado Thiago Martins, procurado pelo marido de Elane para orientá-lo no processo contra o hospital. "Maciel quer justiça. A vida dele acabou. A vida da família acabou", disse Martins, por telefone, à reportagem.
Como tudo começou
Ana Carolina, primogênita de Elane e Maciel, contou que sua mãe foi ao Hospital Dr. Ignácio de Proença Gouveia no dia 23 de julho, quando estava com 7 meses de gestação. O exame detectou que ela estava com uma quantidade baixa de líquido amniótico e a médica pediu que ela ficasse internada por oito dias, até que o líquido chegasse ao ponto ideal, para que a gestação pudesse ser levada até o final. "Mas a médica adiantou o parto mesmo depois de ter dito para a minha mãe que o hospital não tinha suporte para prematuros. Achamos muito estranho. Se não havia suporte, e se a minha mãe já estava com a quantidade de líquido ideal, por que ela quis adiantar o parto?", questionou a adolescente. A justificativa da médica para o agendamento da cesariana, marcada para o dia 3 de agosto, teria sido o fato de Elane ter apenas um rim. No entanto, de acordo com especialistas em obstetrícia consultados pela reportagem, o órgão não tem relação com a via de parto.
"Ela fez a cesárea, a criança nasceu bem e tudo correu normalmente. O problema foi no pós-operatório. Houve negligência. Foi um erro médico", afirmou Martins. "Elane faleceu por uma hemorragia na trompa uterina. Ela sentia muita dor e eles diziam que estava tudo bem. Nem a coleta de sangue não foi feita antes da cirurgia", diz o advogado, que atestou ainda que todas as informações constam nos documentos fornecidos pelo próprio hospital.
"O hospital não tem estrutura para prematuros e a médica, Anelise Souza, não tem especialização. Ela é formada há dois anos. É residente. Nunca poderia atender a um parto e só ela tomou todas as decisões. Seria o mesmo que eu, como advogado, enviar um estagiário ao tribunal", compara Martins.
Hospital responde e médica não se pronuncia
Apesar das denúncias da família e dos documentos que estão com o advogado, a Autarquia Hospitalar Municipal enviou uma nota de resposta à CRESCER, por meio de sua assessoria de imprensa, informando que Elane foi "prontamente atendida pela equipe médica de plantão". O órgão confirma que a cesariana foi marcada por opção da equipe médica no dia 3 de agosto. O texto também nega a informação passada pela família, de que o sangue não teria sido coletado antes da cirurgia. "Quanto ao exame de tipagem sanguínea, a AHM informa que foi realizado no dia em que a paciente deu entrada no hospital. O exame de sangue colhido no dia em que houve a complicação pós-parto é conhecido como prova cruzada e realizado para que a transfusão de sangue que a paciente necessitava pudesse ser realizada com segurança." A nota também afirma que o parto foi realizado por um ginecologista/obstetra, que estava apenas acompanhado por dois residentes, mas sem citar os nomes.
Entramos em contato com a assessoria de imprensa mais uma vez para questionar sobre a informação de que o parto teria sido agendado e realizado por Anelise, mas a resposta foi a de que eles não poderiam dizer mais nada, além do que estava na nota.
Dias depois, o departamento jurídico da Associação Médica dos Residentes de São Paulo (AMERESP) e da Associação Médica Brasileira (AMB) entrou em contato com a reportagem, marcando uma entrevista presencial com Anelise Souza, com o defensor legal e com o assessor de imprensa. De acordo com a solicitação, a reunião seria para que, "ante a gravidade dos fatos ocorridos nos últimos dias", algumas "considerações relevantes" fossem realizadas. No entanto, no dia e horário marcados, CRESCER compareceu ao local combinado e Anelise, o advogado e o assessor não compareceram. Por telefone, o advogado afirmou que a médica "não estava em condições de falar".
Na nota, a Autarquia Hospitalar Municipal informou que o corpo de Elane foi encaminhado ao Serviço de Verificação de Óbito (SVO) para elucidação da causa da morte. "É importante ressaltar que todos os óbitos maternos são avaliados por uma junta de profissionais. São analisados todos os procedimentos realizados pela equipe de atendimento e também o histórico clínico da paciente, a fim de esclarecer as causas que levaram ao óbito", diz o comunicado.
O bebê passa bem
Segundo informações de Ana Carolina e de Thiago Martins, Isabella, a recém-nascida, está saudável, em casa, sob os cuidados da família. "Eu e meu pai estamos cuidando dela", disse Ana. Apesar de ter nascido com oito meses de gestação, ficou no berçário, com os outros bebês e não teve complicações.
Fonte: Globo.com/Crescer
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.