A comunidade médica é unânime ao defender a necessidade de observância às restrições de uso de medicamentos que podem causar danos à saúde. Ainda assim, erros provocados pelos próprios médicos ou pelos pacientes acabam provocando sérios problemas e transformando o que seria a solução do mal em um vilão ainda mais perigoso. Mesmo quando não há falha desses dois agentes principais, o medicamento, em si, pode assumir um protagonismo letal. Um produto aparentemente inofensivo, o óleo mineral, usado há décadas como laxante por adultos e crianças, quase tirou a vida de um bebê de apenas oito meses de idade. A vítima é filha de um casal de médicos cardiologistas, de Salvador, na Bahia, que ajuizou ação na Justiça Federal e obteve decisão favorável, confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
No processo, o laboratório farmacêutico fabricante do medicamento foi condenado a indenizar em R$ 50 mil a família da criança acometida de pneumonia lipoídica. Entre as causas da doença está a aspiração interna do óleo mineral já ingerido – numa espécie de refluxo –, que acaba penetrando os alvéolos e comprometendo o funcionamento dos pulmões, podendo levar o paciente a um quadro grave de insuficiência respiratória. A União e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foram condenadas no processo, também no valor de R$ 50 mil, por não fiscalizar a comercialização do produto sem a divulgação de informações claras sobre os riscos para determinados grupos, entre eles as crianças menores de um ano e os portadores de refluxo gastroesofágico.
O laboratório havia sido condenado, em primeira instância, pela 3ª Vara Federal em Salvador/BA, com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC), na Lei 6.360/76 e no Decreto 79.094/77, que disciplinam o conteúdo do rótulo e da bula dos medicamentos. “Todo produto deve ter a informação de forma clara e precisa para o consumidor”, explica a advogada especialista em Direito do Consumidor, Helena Lariucci. “O CDC diz que o consumidor tem que ter a plena e total ciência do que ele está adquirindo (…) para usar aquele produto de uma forma mais segura”, completa.
Ao proferir a sentença, o juiz federal responsável pelo caso se valeu de um exame anatomo-patológico realizado pela Universidade de São Paulo (USP), de parecer técnico da Anvisa sobre o óleo mineral, do depoimento da médica que atendeu à criança e de matérias de fontes especializadas para identificar a relação direta entre o remédio e a pneumonia, para concluir pela culpa objetiva do laboratório: situação em que a culpa pelo dano decorre do próprio risco da atividade desenvolvida pela empresa (na hipótese, a fabricação de medicamentos). O laboratório, a União, a Anvisa e os pais do bebê recorreram da sentença ao TRF1 – estes buscando o aumento do valor da indenização, por considerarem que a doençA poderia deixar sequelas, não comprovadas no processo, no sistema respiratório criança.
Recurso
No recurso apresentado ao TRF1, o laboratório alegou que a sentença foi irregular porque o juiz teria se baseado, também, em informações extraoficiais que apontam a contraindicação do remédio para recém-nascidos. O estudo da Anvisa, citado pelo magistrado, contrário à indicação do óleo mineral em bebês, seria inconclusivo, segundo a defesa, e voltado apenas à comunidade científica. O laboratório também defendeu não haver provas de que o produto seja prejudicial aos recém-nascidos nem de que cause pneumonia lipoídica. Dessa forma, asseverou que o juiz “assumiu o papel de órgão fiscalizador”, com base, também, no que chamou de “simples alerta” da Anvisa sobre os riscos do medicamento.
Já a União tentou afastar sua responsabilidade no conflito, alegando que só poderia ser responsabilizada de forma subjetiva, o que iria requer a comprovação de dolo ou de culpa por parte da Administração. A Anvisa, por sua vez, questionou sua omissão culposa e afirmou que o exame pericial não demonstrou nexo de causalidade entre uso do produto e a pneumonia lipoídica e sustentou que a doença também poderia ter sido causada por outros fatores, como a aspiração do leite em vez do óleo mineral. O órgão atribuiu a culpa exclusivamente aos pais da vítima pela escolha do médico que prescreveu “dose excessiva” do remédio. Também alegou não haver responsabilidade solidária entre a União e a Anvisa, por falta previsão legal nesse sentido ou de contrato firmado entre as duas partes.
Decisão
Ao analisar o caso, o relator do recurso na Sexta Turma, desembargador federal Daniel Paes Ribeiro, considerou correta a sentença no que diz respeito ao pagamento da indenização. O magistrado frisou que, para formar sua convicção sobre determinado tema, o juiz não precisa se valer unicamente do laudo pericial, podendo utilizarse de outros elementos e Depois do ajuizamento da ação judicial, o fabricante do óleo mineral passou a informar, na bula do remédio, as contraindicações para: fatos constantes no processo, conforme previsto no artigo 436 do Código de Processo Civil. “Na espécie, constam dos autos elementos suficientes a demonstrar o nexo de causalidade entre o uso de óleo mineral e o padecimento a que foram submetidos o menor e seus genitores”, frisou o relator.
O magistrado esclareceu que o laudo da perícia, por si só, já indica a ocorrência inequívoca da doença, considerada grave pelos pediatras. “Não se trata de confusão diagnóstica a partir da biópsia – a qual comprova que houve pneumonia lipoídica – mas, sim, da possibilidade de uma infecção respiratória, em adição à pneumonia lipoídica, suspeita esta que nasce da análise global do caso, incluindo a observação de que a vítima, antes do uso do óleo mineral, era já uma criança com sintomas respiratórios, apresentando-se com resfriados frequentes e persistentes”, concluiu a perita. “Como se vê, não foi afastado o quadro de pneumonia lipoídica, mas acrescentada, a este, a possibilidade de ter ocorrido infecção respiratória conjuntamente”, afirmou o relator.
A relação entre a enfermidade e o óleo mineral foi apontada pela médica que atendeu a criança assim que ela apresentou os primeiros sintomas. Mesmo diante de uma doença de difícil diagnóstico, por se apresentar de forma semelhante a várias outras patologias, a médica explicou, em depoimento, que há diferenças entre a aspiração do óleo e de outras substâncias, como o leite, por exemplo. “O leite materno, quando é aspirado, não é visualizado nos raios X, a não ser que a criança faça uma pneumonia secundária bacteriana”, afirmou a pediatra. “Já a inflamação decorrente do óleo mineral produz imagem radiológica”, completou. A médica informou, ainda, que o exame radiológico “jamais poderia ser sugestivo de infecção viral”, como defendia o laboratório.
Falta de informações
O desembargador federal Daniel Paes Ribeiro citou, ainda, o parecer elaborado pela Anvisa indicando o remédio como provável causador da pneumonia. Isso porque a criança já apresentava um quadro de Refluxo Gastro Esofágico (grau III), e outros fatores de risco podem, apenas, ter contribuído para o agravamento do quadro clínico. A Anvisa esclareceu que, apesar de à época dos fatos ser comum entre os médicos a ideia de que o óleo mineral era inofensivo à saúde – e livre de prescrição –, seria necessária a divulgação da informação de que o uso do produto deve ser evitado em crianças pequenas.
Em agosto de 2001, a Anvisa divulgou um alerta terapêutico, na internet, informando os riscos do óleo para menores de dois anos (administração retal), crianças de até seis anos (por via oral) e idosos. Já a perita designada pelo juiz de primeira instância opinou pela manutenção do medicamento no mercado desde que os usuários fossem advertidos de suas restrições. Somente depois do ajuizamento da ação, ocorrido em 2002, o laboratório passou a emitir as informações na embalagem e na bula do remédio.
Diante dos fatos e do conjunto probatório sobre o qual se baseou a sentença, o relator do caso no TRF1 manteve a condenação imposta ao laboratório, que deverá pagar R$ 50 mil de indenização por dano moral, sendo R$ 25 mil para a criança e R$ 25 mil para os pais. A União e a Anvisa também deverão indenizar a família no mesmo valor e nas mesmas condições, mas o desembargador afastou a responsabilidade solidária entre os dois entes públicos ao acolher o argumento da agência reguladora de que não há previsão legal ou contrato firmado entre as partes que justifique a solidariedade.
Por fim, o pedido de revisão do valor da indenização, feito pelos pais da criança – que inicialmente haviam pedido uma condenação total de R$ 2 milhões –, foi negado pelo magistrado, que teve o voto seguido integralmente pelos outros dois julgadores da Sexta Turma. “Os valores fixados a título de indenização por danos morais atendem aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, não havendo razão para que sejam modificados”, finalizou Daniel Paes Ribeiro.
*Informações do TRF1
Fonte: SaúdeJur
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.