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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A história do odontólogo que passou a mutilar pacientes em busca de fortuna

Silvio Carlos Beltrami, de Capão da Canoa, sedava pacientes e causava danos aos dentes com o objetivo de lucrar com implantes dentários

Aos pacientes, o cirurgião-dentista Silvio Carlos Beltrami Gonçalves garantia:
– Sou designer de dentes e vou de te deixar com sorriso de artista de TV.
Por quase duas décadas, ele honrou a palavra, tornando-se um badalado dentista de Capão da Canoa. O prestígio se espraiava a outros Estados com a mesma velocidade em que Beltrami dirigia sua Mercedes-Benz conversível importada SLK 200 – talvez a única do Litoral Norte.

Tratando dentes a peso de ouro, o dentista nascido há 44 anos, em Farroupilha, na Serra, e graduado em 1991 pela PUCRS, em Porto Alegre, ganhou dinheiro suficiente para erguer na própria moradia uma das mais modernas clínicas da região.
Instalado em um prédio de dois andares com quartos e suítes de internação como se fosse um hospital, o Centro de Saúde Beltrami ficava aberto até aos sábados e domingos.

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O carro-chefe eram os implantes, média de 60 por mês, número considerado altíssimo para os padrões da cidade. O dentista era auxiliado pela mulher, que conheceu quando morava e surfava em Torres – uma estudante de Odontologia seis anos mais jovem, que se formaria em 2013 e com a qual Beltrami viveu durante quase uma década. No Natal de 2010, ela foi à polícia dizer que estava saindo de casa, “por desentendimentos entre o casal”. Nessa época, começaria a derrocada profissional de Beltrami.

A clínica amanhecia apinhada de pacientes do Litoral Norte, de Porto Alegre, de Santa Catarina. Para dar conta, Beltrami atendia de segunda a segunda das 7h até altas horas da noite. Segundo relatos de amigos e pacientes, suportaria o cansaço à base de analgésicos de uso restrito em ambiente hospitalar. A família chegou a interná-lo para tratamento desintoxicante. Como dentista, Beltrami tinha acesso livre a medicamentos especiais.

Diagnósticos assustadores para cobrar mais

Em 2012, a Vigilância Sanitária de Capão da Canoa suspendeu o fornecimento de talonários para prescrição de morfina e dolantina – utilizados para aliviar dor intensa, inclusive de doentes terminais. O dentista Silvio Carlos Beltrami vinha tentando obter mais receitas, mas, por suspeita de uso indevido, constatado por reclamações de drogarias, foi exigido que o dentista justificasse a necessidade.

O consumo de remédios controlados teria transtornado Beltrami. Para uma paciente que reclamava de dor, teria oferecido morfina.

– Eu não quero isso – retrucou a mulher.

O dentista teria respondido:

– Eu já tomei.

Assim, a promessa de sorriso perfeito logo se transformaria em choro, dor e sofrimento para os pacientes – com dentes estragados, dificuldade para mastigar, cuspindo e babando ao falar – além de prejuízos financeiros.

Beltrami teria causado lesões em 51 pacientes. Teve registro profissional cassado por causa de 16 queixas ao Conselho Regional de Odontologia (CRO). Uma das reclamações dos pacientes era de que cobrava por serviços não combinados.

– Queria trocar uma ponte móvel superior e ele disse: vamos colocar implantes. Aceitei, mas ele desgastou quatro dentes inferiores para fazer implantes e tive de pagar R$ 4 mil a mais – lembra uma microempresária de 56 anos.

O dentista também atemorizava os pacientes com diagnósticos assustadores, para cobrar por tratamentos desnecessários, como lembra um oficial da Brigada Militar aposentado.

– Depois de fazer um Raio-X, falou que minha mulher tinha uma bactéria que causaria a perda da visão. Cortou um pedaço da gengiva e cobrou R$ 14 mil. Um estelionato.

A mais grave das acusações contra o dentista: ao invés de embelezar os dentes, Beltrami os estragava. Para isso, colocava os pacientes para dormir, ainda na sala de espera. Certa vez, ao dar Dormonid (sonífero) para um homem, teria dito, em tom de brincadeira:

– É o boa noite cinderela.

Referia-se a um sonífero que golpistas colocam na bebida das vítimas. E o pior: conforme consta em processo ético do CRO, aplicaria injeções intravenosas, sem acompanhamento de anestesista, fazendo os pacientes adormecerem por longas horas na clínica e colocando-os em risco de morte.

– Cheguei no sábado e só acordei no domingo, ao meio-dia, com minha família e meus vizinhos batendo na porta da clínica – narrou à polícia uma das pacientes.

A mulher coletou sangue cinco dias depois, e o exame detectou opiáceos (derivados do ópio, como morfina e dolantina). O apagão na cadeira do dentista permitia que ele extraísse ou estragasse dentes saudáveis. Depois, diante do desespero de pacientes banguelas, Beltrami se desculpava, alegando que era a única alternativa para evitar doenças.

– Só eu posso salvar teus dentes – garantiu a uma paciente.

Em alguns casos, a clientela ficava internada por até uma semana para seguir o “tratamento”. À medida que pacientes reclamavam de infecções e dores terríveis, o dentista reagia com indignação. Por vezes, nem preenchia receita: imprimia bulas tiradas da internet ou mandava uma auxiliar anotar o nome do remédio no verso de cartões de visita.

Há relatos de que Beltrami costumava trabalhar com uma pistola sobre a mesa do consultório, levando pacientes a se sentirem sob ameaça. Em audiência no CRO, alegou que era colecionador, tinha armas por questões decorativas e guardava armas em outro ambiente da clínica, longe do alcance dos pacientes. Uma noite, nervoso, ao ouvir um barulho na recepção, o dentista teria pedido ao acompanhante de uma paciente para pegar um revólver para uma eventual reação a ladrões, pois acreditava que estavam invadindo a clínica. Na verdade, tratava-se de um empregado fechando a porta da frente da clínica.

Mais de 50 queixas e sete processos

Das 51 queixas de pacientes contra o cirurgião-dentista Silvio Carlos Betrami Gonçalves, registradas na Polícia Civil de Capão da Canoa, em 26 foram concluídas as investigações e remetidos os inquéritos para a Justiça. As demais seguem em apuração. Dos 26 inquéritos, sete já viraram processos criminais, com acusação de lesões corporais. Outros 13 foram arquivados por falta de provas.

Em setembro de 2012, policiais vasculharam a clínica e a moradia de Beltrami, apreendendo prontuários, medicamentos, uma pistola calibre .380, registrada pelo dentista, um revólver calibre 38 em nome de outra pessoa e uma besta (arma arco e flecha), além de munições.

Em outubro daquele ano, o dentista foi preso preventivamente, mas evitou prestar depoimento à polícia. Foi solto 45 dias depois, fechou a clínica e sumiu de Capão da Canoa. Em um dos processos, é acusado de lesão corporal grave, porte ilegal de armas e coação de testemunhas (ele teria ameaçado familiares da vítima).

O Conselho Regional de Odontologia (CRO) recebeu 24 denúncias contra Beltrami, 16 se confirmaram. A entidade reconheceu graves erros, condenando-o com a cassação do registro profissional nos 16 processos éticos, decisão ratificada em primeiro grau pelo Conselho Federal de Odontologia na primeira instância, ainda cabendo recurso.
Quando foi suspenso temporariamente pela Justiça Federal, a pedido do CRO, em abril de 2013, Beltrami alegou que era vítima de um complô para prejudicá-lo, arquitetado por uma ex-namorada, versão não comprovada.

Também tramitam contra Beltrami na Justiça 11 processos cíveis nos quais pacientes cobram indenizações por danos morais e materiais com pedidos de até R$ 250 mil. Em parte dos processos Beltrami não foi encontrado pela Justiça. Estaria em Balneário Camboriú (SC), onde tem parentes, ou em Buenos Aires, cursando Medicina, segundo relato de ex-pacientes.

Em uma das ações, a Justiça determinou o bloqueio preventivo de bens do dentista, um terreno em condomínio de luxo em Capão da Canoa e o que sobrou de uma Mercedes-Benz conversível importada SLK 200, ano 2011, após um acidente em Camboriú.
A Mercedes acidentada em Balneário Camboriú registra 16 multas, oito vencidas, a maioria por excesso de velocidade.

Os relatos dos que foram enganados e perderam os dentes e muito dinheiro

"Era dia do meu aniversário. Ganhei do meu namorado o tratamento estético em um dente de porcelana. Um pequeno reparo. Cheguei lá às 8h, pensando em voltar logo. Naquela noite faria uma festa. Ele me de um comprimido e acordei às nove da noite, com um pino no lugar do dente. Entrei em choque. A secretária dizia: “Calma, ele vai arrumar”. Colocou um dente provisório. Voltei para casa depois da meia-noite, as pessoas me ligando. Retornei lá no outro mês, às 8h, tomei outro comprimido e acordei às 17h30min sem dois dentes e outros desgastados. Um horror. E ele dizendo que não ia me arrepender. Fez uma chapa. Aquilo caía, eu colava com superbonder, e ele dizia que serviço melhor eu não ia encontrar".
Aposentada, 59 anos

"Meu marido recebeu o dinheiro do FGTS e eu pedi para arrumar meus dentes. Queria fazer implantes. Cobrou R$ 20 mil. Paguei a metade adiantado. Ele desgastou 22 dentes para encaixar próteses. Teve um dia que eu apaguei na cadeira. Ele batia no meu rosto para eu acordar, eu queria pedir socorro, mas a voz não saía. Minha boca era só infecção. Remédio não adiantava. Aí, eu pedi para tirar nove dentes desgastados. Depois, colocou as próteses fixas, mas continuava doendo. A mordida não fechava. Ele disse eu tinha três raízes quebradas. Fui a outro dentista. Eu não tinha nenhum dente quebrado. Meu marido sustou cheques e está sendo processado por isso. Foram cinco meses de sofrimento em que perdi 12 quilos."
Dona de casa, 57 anos

"Tinha me acidentado e quebrado dentes. Ele fez uma raspagem no osso do quadril para um enxerto. Fiquei uns dois ou três dias internada. Depois, mais uma semana de cama, em casa, com infecção na boca e na perna. Tomei tanto remédio que minhas veias ficaram dilatadas. Ele foi ficando brabo e, eu, com medo. Um dia, queria me dar injeção para dor no pescoço. A enfermeira falou baixinho para eu não deixar. Ele atirou a seringa no chão e disse que eu ia ter de pagar o remédio que jogou fora. Paguei e fui embora. Gastei R$ 40 mil e não terminei o tratamento e ainda tenho problema no quadril, mas quero esquecer isso. Foram mais de três anos com dor. Não fui fazer perícia, não quero levar isso adiante. A vida vale mais."
Comerciante, 50 anos

"Ia retirar um implante e um dente. Na segunda vez que fui lá, fiquei de segunda a quinta naquele lugar sem falar com a família. Ele dizia que ligava para meu marido e que estava tudo bem. Quando acordei, senti dores horríveis. Olhei no espelho e quase morri de pavor e tristeza. Estava um monstro, simplesmente, com todos os dentes superiores desgastados. Ele disse que uma bactéria tinha atingido todos os meus dentes e eu ainda tinha dois tumores na face. Falava para não me preocupar, que estava no melhor hospital odontológico do Brasil. Disse que mandou fazer uma biópsia e o resultado foi negativo, que meus dentes iriam ficar lindos. Voltei para casa sem dentes, sem remédio, nenhuma receita, nem atestado."
Advogada, 41 anos

Contraponto

O dentista Silvio Beltrami não foi localizado. Zero Hora procurou os advogados dele, Roberto Ludwig e Lorenzo Alberto Paulo. Ludwig, que atua nos processos cíveis, informou que não faria declarações. ZH ligou quatro vezes para Lorenzo. Em dois telefonemas, ele não foi encontrado no escritório. Pelo celular, o advogado informou a ZH que estava ocupado.

Previna-se

- Antes de consultar com um dentista, procure referências sobre o profissional com outros pacientes.

- O Conselho Regional de Odontologia (Rua Vasco da Gama, 723, Porto Alegre) informa se o dentista está regularmente inscrito, para qual especialidade está habilitado ou se tem alguma suspensão temporária. O Serviço Cidadão atende pelo 0800.5105242.

Fonte: ZH Notícias