*Por Laura Ferreira dos Santos
Esperava uma portaria “clara”, fiquei confusa.
Quase dois anos após a aprovação da Lei n.º 25/2012 de 16 de Julho de 2012, através da qual Portugal regulava “as diretivas antecipadas de vontade [DAV] e a nomeação de procurador de cuidados de saúde”, neste 5 de Maio foi publicada em DR a Portaria n.º 96/2014 com uma parte do que faltava para a concretização plena da lei: “A organização e funcionamento do registo nacional do testamento vital (Rentev).” Embora não seja obrigatório que a nossa DAV seja registada nessa “plataforma”, a melhor maneira de os profissionais de saúde saberem se, na hora da verdade, temos ou não uma DAV, é ela estar inscrita nessa plataforma online. Daí a sua importância. No entanto, julgando esta portaria pouco esclarecedora em vários pontos, teço aqui algumas considerações, começando por um ponto prévio.
A lei de 2012 prometia a criação do Rentev e de um formulário facultativo que os cidadãos poderiam utilizar, depois de ouvidos o Conselho Nacional de Ética (CNECV) e a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD). Em Dezembro de 2012 a CNPD mostrou-se insatisfeita com o que lhes propuseram, tendo feito críticas muito concretas. Os conselheiros do CNECV trabalharam também muito bem e depressa, tendo apresentado o seu parecer nesse Dezembro (cf. 69/CNECV/2012). Quem o ler nota claramente nas entrelinhas que a portaria/formulário que lhes tinham enviado era bastante fraca. Os conselheiros deram bastantes sugestões para a melhorar, mas o facto é que o cidadão comum desconheceu o que foi feito com essas críticas. Apesar de a portaria de 5 de Maio dar a entender no art.º 2.º que esse modelo já estava disponibilizado em vários “sítios” concretos da Net, mais “outros” (quais?), só em 15 de Maio o dito modelo saiu em nova portaria do DR, fazendo aí a sua estreia. Portanto, durante quase dois anos, apenas no notário se poderia fazer uma DAV. No que se segue limito-me sobretudo à portaria de 5 de Maio, deixando para outra vez um comentário particular ao formulário.
Avancemos para a portaria de 5 de Maio.
1. No seu art.º 2.º, afirma que o registo presencial da DAV pode ser feito de dois modos (como já se sabia): ou através do dito formulário, ou através do notário. A primeira opção é a a), a outra a b). No parecer do CNECV dizia-se (cf. A.2): “O preenchimento do modelo de formulário proposto é opcional, podendo cada cidadão autónomo optar pela redação livre de um texto da sua iniciativa e essa possibilidade constar do próprio modelo.” A meu ver, ao omitir-se nesta portaria que a opção a) é facultativa, está a dar-se-lhe primazia sobre a b). E a tentar conduzir os cidadãos para ela de modo abusivo. Há omissões que não o são por acaso e formas de linguagem nada inocentes. Basta ter visto o Yes, Prime-Minister, ou ter ouvido Bush dizer que em Guantánamo não se praticava tortura, mas apenas “técnicas reforçadas de interrogatório”. Se o meu raciocínio é correcto, quem quiser prescindir do formulário será tida por pessoa “complicada”. Receberá tantas más respostas que tenderá a desistir.
2. Na portaria, umas siglas são decifradas, outras não. Porquê?
3. O art.º 3.º fala de “validação de dados”: os tais documentos a) ou b) serão “verificados (...) para aferição da sua conformidade com os requisitos constantes da lei”. De que se trata ao certo? Quanto ao art.º 10.º, fala-se de “tratamento de dados pessoais”. A lei já estipulava os “limites das DAV”. Pretende-se agora examinar/censurar o conteúdo dos documentos que não seguem o formulário, ou apenas verificar dados formais (nomes, residências, etc.)? Verificação/validação feita, diz-se, pelo agrupamento de centros de saúde ou unidade local de saúde. Mas estas entidades englobam um mundo de pessoas. Quem vão ser as destacadas? Pior ainda: se se vão observar os conteúdos, como eliminar a arbitrariedade de critérios entre as instâncias validantes? Quer-se caotizar o processo?
4. Se houver problemas, o cidadão terá dez dias úteis para as correcções, ou o processo caduca. Pessoalmente, considero este prazo inadmissivelmente curto. Já se imaginou a perda de tempo que estas correcções implicam em termos de ida aos locais de validação? Quase sempre que tenho de recorrer a uma entidade de saúde sinto-me tratada como uma desempregada que já desistiu de tudo na vida e se conforma com esperar e esperar. E, entretanto, a entidade patronal à perna, as crianças para ir buscar ao infantário, etc., etc.
5. Esperava uma portaria “clara”, fiquei confusa. Vou ainda estudar o dito formulário. Desde já, uma crítica. Na última nota do tal formulário, diz-se: “Pode optar pela subscrição da Declaração Antecipada de Vontade, pela designação de um procurador de cuidados de saúde, ou por ambos.” Mas se eu quiser nomear um/a procurador/a – ou até só quiser deixar um/a procurador/a –, como o faço, se em lado algum o modelo contempla espaço para essas possibilidadades (e para o procurador/a aceitar a função)? Vai sair uma terceira portaria?...
Fonte: www.publico.pt
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.