É legítima a recusa de tratamento que envolva transfusão de sangue, por parte dos adeptos da religião Testemunhas de Jeová. Essa foi a conclusão do constitucionalista Luís Roberto Barroso, em parecer elaborado a pedido da Procuradoria-Geral do Rio de Janeiro. A religião não recomenda o tratamento, mesmo quando há risco de morte do paciente, por entender que a transfusão de sangue é proibida pela lei divina.
A instituição aprovou o parecer do constitucionalista e encaminhou ao governador Sérgio Cabral, que poderá formular um projeto de lei. A situação vem se repetindo com frequência no Hospital Universitário Pedro Ernesto. Por isso, o diretor Jurídico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Maurício Mota, pediu parecer normativo ao Ministério Público estadual. O advogado entende que o estado não pode impor procedimento médico recusado pelo paciente. “Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade.”
A opinião de Luís Roberto Barroso chegou para desempatar o placar de pareceres produzidos pelo Ministério Público do estado. O procurador Gustavo Binenbojm foi favorável ao direito de recusa. Ele entendeu que a decisão do paciente de se recusar ao tratamento “é autoexecutória em relação ao médico, na medida em que se baseia diretamente nos direitos fundamentais envolvidos”. Já o procurador-chefe Flávio de Araújo Willeman foi contrário. Para ele, não é aceitável que uma pessoa “sob o fundamento de professar crença religiosa, dentro de um hospital (público ou privado) [possa] impedir o médico de cumprir com sua histórica missão de salvar vidas”.
Para Barroso, a liberdade religiosa e o direito fundamental derivado da dignidade da pessoa humana asseguram a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Inclusive a de negar tratamento médico. Ele destacou que a ética médica evoluiu nas últimas décadas. “A regra, no mundo contemporâneo, passou a ser a anuência do paciente em relação a qualquer intervenção que afete sua integridade.”
O constitucionalista ressalta que a dignidade da pessoa humana está ligada à autonomia do indivíduo e expressa a liberdade de cada cidadão de fazer suas escolhas existenciais e assumir a responsabilidade delas. “Na Constituição brasileira, é possível afirmar a predominância da ideia de dignidade como autonomia, o que significa dizer que, como regra, devem prevalecer as escolhas individuais.”
Ele reconhece a gravidade da decisão em casos de risco de morte. Por isso, destaca que “para que o consentimento seja genuíno, ele deve ser válido, inequívoco e produto de uma escolha livre e informada”.
Entendimento contrário
Em fevereiro de 2009, o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás conseguiu autorização da Justiça para fazer transfusão de sangue em um paciente da religião Testemunha de Jeová. Em liminar, o desembargador federal Fagundes de Deus, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, registrou que no confronto entre os princípios constitucionais do direito à vida e do direito à crença religiosa importa considerar que atitudes de repúdio ao direito à própria vida vão de encontro à ordem constitucional. Para exemplificar, lembrou que a legislação infraconstitucional não admite a prática de eutanásia e reprime o induzimento ou auxílio ao suicídio.
Na ação, a Universidade Federal de Goiás, autarquia responsável pelo Hospital das Clínicas, argumentou que o estado do paciente era grave e pedia, com urgência, a transfusão de sangue. Explicou que o hospital é obrigado a respeitar o direito de autodeterminação da pessoa humana, reconhecido pela ordem jurídica, nada podendo fazer sem autorização da Justiça. Além disso, o hospital sustentou na ação que o direito à vida é um bem indisponível, cuja proteção incumbe ao Estado e que, no caso concreto, a transfusão sanguínea é a única forma de efetivação de tal direito.
Para o desembargador, Fagundes de Deus, “o direito à vida, porquanto o direito de nascer, crescer e prolongar a sua existência advém do próprio direito natural, inerente aos seres humanos, sendo este, sem sombra de dúvida, primário e antecedente a todos os demais direitos”. Com isso, autorizou a transfusão.
Fonte: Conjur
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.