PORTUGAL
Há hospitais que têm “botões de pânico” em locais estratégicos. A violência contra os profissionais de saúde está a ganhar maior visibilidade. Médicos e enfermeiros reclamam mais medidas de prevenção.
Dois meses depois da traumática agressão, A. ainda acorda frequentemente à noite, com “falta de ar” e “suores”, a pensar que apanhou “um tiro”. Tudo aconteceu ao início da noite de 2 de Janeiro, em pleno apogeu do caos que este Inverno assolou muitos serviços de urgência. Contratada à tarefa por uma empresa para reforçar a urgência de um hospital do Norte , a médica estava a atender um doente quando ouviu gritos e foi ver o que se passava. Era sexta-feira e a sala de espera estava completamente repleta. A acompanhante de uma doente, que já tinha batido à porta do seu gabinete (“queria ser atendida à frente das outras pessoas"), dirigiu-se ao segurança para protestar. “Ao ver-me de bata, virou-se contra mim. Levei um estaladão, fui contra a parede e desmaiei. Acordei na marquesa da sala onde tinha estado a trabalhar, com uma enfermeira a tirar fotografias e outra a pôr-me gelo”, descreve.
Aos 59 anos, a médica habituou-se a trabalhar em clima de grande tensão, mas nunca tinha sido agredida com violência. “Há milagres que não conseguimos fazer, não conseguimos atender toda a gente ao mesmo tempo”, lamenta. Mas o que a deixa mais transtornada é o mutismo com que a administração do hospital (que prefere não identificar com medo de represálias) lidou, pelo menos até agora, com esta agressão. Obrigada a accionar o seguro de acidentes de trabalho, forneceu os dados à polícia (o hospital apenas tem seguranças à porta), mas há dias pediu para não ir a tribunal, por ter consciência de que “só ia perder tempo”, uma vez que a agressora fugiu sem ser identificada.
O fenómeno da violência contra os profissionais de saúde sempre existiu, mas está agora a ter mais expressão e visibilidade. Apesar de ser apenas a ponta do icebergue, o número de casos de violência (sobretudo insultos e ameaças, mas também agressões físicas) reportados online ao observatório criado em 2007 na Direcção-Geral da Saúde (DGS) – e que vinha a crescer de ano para ano, ainda que com algumas oscilações -, disparou subitamente: de 202 casos reportados em 2013 passou para 531, no ano passado.
Este aumento de "mais de 160%" nos casos notificados de forma anónima à DGS pôs de sobreaviso os responsáveis da Ordem dos Médicos (OM). Reclamando medidas preventivas, os responsáveis da Secção Regional do Norte da OM alertaram que os doentes se sentem “cada vez mais insatisfeitos”, “fustigados” que estão “pelos sucessivos cortes nos orçamentos familiares” e pelo “aumento dos tempos de espera”. Também preocupado com o incremento de denúncias, que acredita "representarem apenas uma pequena parte da realidade”, Carlos Cortes, presidente da Secção Regional do Centro, decidiu em Fevereiro organizar um debate sobre o tema. Há dias, criou uma parceria com uma agência para a prevenção do trauma e da violência para onde serão dirigidos “os casos mais complexos” e quer avançar com um estudo sobre a exaustão ("burnout") dos profissionais, que está de certa forma relacionado com esta problemática (ver texto ao lado).
Por vezes, o motivo que desencadeia a violência é pouco mais do que fútil. Cortes lembra-se da história de um médico que estava a fazer uma ecografia a uma mulher grávida e que, ao anunciar à família que se tratava de um menino, despertou a ira do pai, que lhe deu “um murro”. Mas o mais preocupante, afirma, é que o agressor voltou dias depois ao serviço com a mulher, o médico disse que não conseguia trabalhar naquelas condições e a resposta da administração foi: “tem que aguentar”.
Quem trabalha há muitos anos no terreno garante que as agressões a profissionais de saúde sempre foram frequentes, sobretudo os insultos, mas aqueles que sofreram na pele o seu impacto acreditam que a situação piorou nos últimos tempos. Miguel, que é médico num centro hospitalar do Grande Porto, foi empurrado violentamente há seis anos, apenas, segundo conta, porque pediu a um dos pais de uma criança que estava a examinar para sair do gabinete. Ainda assim, acha que o panorama se agravou, entretanto: “Sempre houve violência, mas agora as pessoas estão mais intransigentes. Estão exasperadas e canalizam a frustração para os enfermeiros, médicos, auxiliares”.
Uma queixa conjunta
Mas os profissionais mais expostos a este fenómeno nem sequer são os médicos, são os enfermeiros. O número de queixas atesta isso mesmo. E a violência não se circunscreve aos hospitais, verifica-se igualmente nos centros de saúde. A história que R. conta é paradigmática. Há dois anos, numa Unidade de Saúde Familiar de Aveiro, agastado ao perceber que o exame de diagnóstico que lhe tinha sido prescrito teria de ser pago do seu bolso, um homem desatou a agredir os administrativos e insultou todas as pessoas que estavam na sala de espera. “Começou aos gritos e até as cadeiras voaram”, descreve a enfermeira.
Os profissionais presentes tomaram então uma decisão inédita: apresentaram uma queixa em conjunto na PSP local. “Ainda fomos depôr ao Ministério Público mas o caso foi arquivado”, lamenta R. que, apesar de há alguns anos ter “levado uma bofetada” de uma mulher que queria a todo o custo que o filho fosse vacinado aos 18 meses, depois de ter faltado às vacinas dos 15 meses, está convencida também de que actualmente estes casos serão mais frequentes. “As pessoas têm mais dificuldades, menos apoios, menos paciência”, sintetiza.
Quando se esmiuçam os relatórios da Direcção Geral da Saúde (o último é de 2013, para 2014 apenas estão disponíveis os números em bruto) percebe-se que os enfermeiros são, de facto, o grupo profissional mais exposto ou, pelo menos, o que mais se queixa. Nuno Lopes, que integra a direcção da Ordem dos Enfermeiros e trabalha no Hospital de Estarreja, conta que já foi vítima de agressões verbais por mais do que uma vez. Enfermeiro há 13 anos, defende igualmente que hoje se nota um “acréscimo de tensão que coincide com a degradação do contexto sócio-económico da população e a deterioração do SNS”. “As pessoas revoltam-se, face à incapacidade de terem respostas. E os enfermeiros são a face do sistema, são quem passa mais tempo com os doentes”,explica.
“As agressões sempre existiram, são sobretudo verbais”, sintetiza Jorge Teixeira, que é director do serviço de urgência do Hospital de Braga. Neste hospital, construído de raiz há três anos, há uma linha de emergência interna, foram colocados “botões de pânico” ligados à central da PSP em locais estratégicos, e estão programadas acções de formação de defesa pessoal, esclarece o gabinete de imprensa. Há, aliás, em todos o país vários hospitais com estratégias semelhantes, desde que no Plano Nacional de Saúde 2004-2010 se passou a exigir "tolerância zero" para com este tipo de fenómeno.
Esta exigência parece, porém, não ter passado do papel, a crer em alguns dos resultados reportados - a maior parte das vítimas mostra-se “muito insatisfeita” com a forma como a instituição onde trabalha geriu os episódios de violência.
A expressão jurídica destes casos também é quase nula, apesar de estar a aumentar e de, em 2014, ter igualmente disparado. Os dados sobre a actividade do Ministério Público no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, entre 2012 e 2015, indicam que os inquéritos sobre violência contra profissionais de saúde no local de trabalho passaram de seis (em 2012) para quatro (em 2013), mas ascenderam já a 17, ao longo do ano passado. Metade foram entretanto arquivados. O PÚBLICO pediu dados nacionais à Procuradoria-Geral da República, sem sucesso.
Segundo o último relatório da DGS, mais de metade das situações aconteceram nos centros de saúde, mas uma parte significativa ocorreu nos hospitais e, dentro destas unidades, os serviços de psiquiatra e as urgências são os mais arriscados. As vítimas são sobretudo mulheres e os tipos de violência com maior expressão passam pela “discriminação e a ameaça, a injúria e a pressão moral”. Uma parte das agressões são praticadas por outros profissionais de saúde.
Fonte: www.publico.pt
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.