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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Propriedade, barrigas e aborto

*Por Fernando Neves

PORTUGAL

O facto de o aborto ser autorizado não impede que quem o efectua voluntariamente assuma essa responsabilidade.

A propósito da polémica em torno da introdução nas Cortes espanholas de um projecto de revisão da lei sobre a interrupção da gravidez, reapareceram nos jornais as fotografias de militantes pró-aborto reivindicando serem elas que mandam nas suas barrigas.

As divergências em torno da questão do aborto são inultrapassáveis. Dado que é largamente consensual que a vida é a base e o primeiro de todos os direitos, todos aqueles que consideram que ela se inicia no momento da concepção, e que por consequência o aborto é liquidar uma vida, são naturalmente contra, em quaisquer condições, excepto em caso de risco de vida para a mãe, em que se prefere uma vida, digamos, consolidada a uma vida dependente, sobretudo da dita mãe. A questão é ainda mais sensível para os crentes, para quem a vida é um dom divino, de que só Deus pode dispor – pese embora a elasticidade que este princípio tem tido ao longo da História nas diversas religiões. Mas há também ateus, designadamente médicos, para quem a vida se inicia no momento da concepção e que por conseguinte se opõem, pelo mesmo motivo, à interrupção da gravidez.

Em contrapartida, para aqueles que consideram que a vida só se inicia mais tarde, essa legalização, dentro de certas condições, constitui um modo de enfrentar, e em certa medida atenuar, com humanidade, a chaga social e a tragédia individual e familiar que a prática do aborto constitui, diminuindo ainda os riscos para a saúde daquelas que o praticam e evitando as consequências sociais que podem advir de um nascimento indesejado, visto que, legal ou ilegal, ele é praticado

Os princípios em que assentam estas duas posições tornam-nas uma divergência insuperável e fracturante, em que não é possível atingir um acordo ou um consenso.

Já sobre as normas que condicionam a prática do aborto, uma vez legalizado, poderá ter alguma utilidade desencadear um debate que permita chegar a posições mais consensuais. Desde logo quanto ao acima referido slogan das militantes que, com razão, pretendem ser elas a mandar nas suas barrigas. Este slogan sempre me fez alguma confusão pela sua incongruência. Se mandam nas suas barrigas, porque deixam lá entrar o que não querem? Mandar, ter autoridade sobre alguma coisa, implica responsabilidade, e se alguém pretende mandar no seu corpo, parece-me elementar que assuma a correspondente responsabilidade pela consequência dos actos que com ele pratica. O facto de o aborto ser autorizado não impede que quem o efectua voluntariamente assuma essa responsabilidade.

A liberdade que a democracia assegura implica que os indivíduos sejam responsáveis pelo seus actos, por respeito até pela sua dignidade como cidadãos. Permitir que assim não seja é fomentar uma cultura de irresponsabilidade, tratando os indivíduos como dependentes e inimputáveis.

É por isso para mim incompreensível que a Lei que entre nós regula a prática da interrupção voluntária da gravidez determine que ele seja gratuito, sem estar sequer sujeito ao pagamento de uma taxa moderadora, quando praticado no serviço nacional de saúde. A gravidez não é uma doença. Não há pois razão para que o acto médico que leva à sua interrupção seja gratuito e que sejam os contribuintes a suportar os custos de um acto pelo qual, como reivindicam e bem as militantes, devem ser responsáveis os que os praticam. Excepto em pessoas sujeitas ao regime geral de indigência, em casos de risco médico ou em que a gravidez tenha surgido contra a vontade da grávida, como a violação, o aborto deveria ser sujeito, não apenas ao pagamento de uma taxa moderadora, mas ao pagamento do custo integral do acto médico. E não o digo por motivos financeiros, mas por uma razão de respeito pela dignidade de cada um e pela defesa de uma ética de responsabilidade.

Ética aqui particularmente importante, porque criar a convicção de que as causas que levam ao aborto não têm consequências é fomentar um clima de permissividade nocivo para as novas gerações e para as próprias mulheres autoras/vítimas do aborto. Porque a despenalização do aborto pode diminuir os riscos para a saúde que dele resultam e atenuar o seu impacto social. Mas não creio que apague o trauma que, suspeito, acompanha as mulheres que o praticam.

Fonte: www.publico.pt