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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O ensino médico: a reforma necessária

PORTUGAL

*Por José Fernandes e Fernandes
Professor Catedrático e Director da Faculdade de Medicina Universidade de Lisboa

Mudar a organização das instituições de ensino médico, onde decorre também a formação de outros profissionais de saúde, é um passo, indispensável e urgente, no caminho necessário e no fortalecimento do sector público, na Saúde e na Educação.


Formar bons médicos, com educação científica sólida, capazes de actuar de acordo com estado da arte, aptos a participar na inovação e susceptíveis de integração construtiva e transformadora nos serviços de saúde, públicos ou privados, é um objectivo prioritário da Faculdade de Medicina e a sua responsabilidade pública indeclinável.

A organização da educação médica em Portugal merece reflexão atenta; alterações substanciais na evolução da Medicina, na organização e financiamento das instituições, emergência de novas necessidades num contexto de globalização e diminuição simultânea dos recursos financeiros disponíveis suscitaram desafios ao sistema de saúde, à preparação dos profissionais e ao modelo de educação. Em Portugal a sua organização assenta numa dupla tutela. O ensino é planeado nas Escolas Médicas inseridas nas Universidades e dependentes do Ministério da Educação (ME), que avalia e certifica a qualidade da formação. Mas o ensino clínico, que é crucial e imprescindível, é realizado nos hospitais e centros de saúde dependentes do Ministério da Saúde (MS). As Escolas Médicas recrutam e incorporam como agentes de ensino os profissionais com carreira médica independente da carreira universitária e utilizam os serviços clínicos respectivos, o que representa uma mais-valia na preparação prática dos futuros médicos. Esta partilha de recursos constitui a expressão mais visível na cooperação interinstitucional e também entre os Ministérios respectivos, mas nem sempre é isenta de dificuldades, nomeadamente num contexto de políticas restritivas na gestão hospitalar que tendem a considerar o ensino como missão extrínseca às suas finalidades e um custo financeiro não contemplado. Não há efectivamente uma política para o ensino médico, que envolva todos os participantes e contemple os requisitos e necessidades da educação médica, o que me parece claramente inadequado em períodos de desenvolvimento, de mudança e de crise. Há um esforço de reciprocidade de responsabilidades funcionais e de encargos financeiros entre as duas carreiras e pouco mais; nunca se conseguiu convergência operacional e estratégica na definição de objectivos, no planeamento e adequação das instituições e unidades clínicas para o ensino e investigação. O modelo organizacional destas instituições onde decorre o ensino clínico é exclusivamente dependente do MS, com impacto potencialmente negativo na missão educacional, na investigação, na selecção dos profissionais e numa avaliação global e estruturada.

Importa considerar algumas realidades. A primeira, é que uma boa educação médica como para as outras profissões é um valor essencial para o sucesso das políticas de Saúde; sem bons profissionais, médicos, enfermeiros, técnicos, adequadamente preparados, não há instituições eficazes e produtivas, não há política de saúde que seja eficaz e útil porque a mediocridade é sempre mais cara e perigosa que a competência. A segunda realidade decorre da sua própria evolução a qual já não pode ser limitada à obtenção do Curso (agora Mestrado Integrado!), mas deve ser percebida como um processo permanente, que se inicia na pré-graduação, na aquisição duma diferenciação profissional e contempla a aprendizagem continuada, durante toda a vida activa. Na pré-graduação reconhece-se a importância do seu carácter unitário, integrado e orientado para a solução de problemas clínicos, e esta realidade pressupõe uma sólida educação científica e uma boa prática clínica, ambulatória, de proximidade junto das populações e das suas necessidades de saúde mais directas, e hospitalar, com verdadeira dimensão académica, isto é, com qualidade, rigor, modernidade, diferenciação e também preocupação social.

Por estas razões, a educação médica e nas profissões da saúde, deveria ser objectivo central na política de Saúde, e não é por acaso que é tema recorrente nas publicações médicas o apelo a que se ressuscite o homo academicus nas políticas de saúde, bem como a preocupação de que a formação dos médicos se compatibilize com as necessidades da sociedade e contribua para o desenvolvimento do sistema de saúde.

Foi esta visão que, na década passada e com o apoio dos Ministros respectivos, fundamentou duas decisões relevantes tomadas na Faculdade de Medicina: a criação do Centro Académico de Medicina de Lisboa, um consórcio entre a Faculdade de Medicina, o Hospital de Santa Maria – Centro Hospitalar Lisboa Norte e o Instituto de Medicina Molecular e a implementação activa de programas de cooperação e afiliação com outras instituições de Saúde, hospitais e centros de saúde externos à academia. Os objectivos destas duas decisões foram claramente enunciados. Os protocolos de afiliação institucional com a Faculdade permitiram criar uma rede de ensino, ambulatória e hospitalar, com melhoria da relação docente/discente numa época de pletora de alunos, proporcionar diversidade clínica no ensino prático, promover o conhecimento pelos alunos da realidade assistencial fora do hospital universitário e potenciar aproximação dessas instituições com um núcleo académico com impacto potencial para a investigação, e incluiu reconhecimento académico dos líderes clínicos nessas instituições com envolvimento directo no programa curricular. Em relação ao Centro Académico de Medicina a sua missão foi claramente enunciada no texto legal publicado no Diário da República em 2009: suscitar coordenação e definição de objectivos estratégicos comuns com impacto na educação médica e na formação profissional, de modo a que fossem mais influenciadas pela ciência e pela pesquisa, promover o desenvolvimento da investigação biomédica e clínica, aproximar os investigadores e cientistas da realidade médica e vice-versa e, também, possibilitar racionalização e melhor gestão dos recursos humanos e financeiros, aproveitando a proximidade geográfica no mesmo campus universitário. O maior entrosamento entre a investigação biomédica e a actividade hospitalar académica era um pilar fundamental para recriar o hospital universitário moderno, empenhado numa actuação de vanguarda, baseada na ciência e na inovação e ao serviço da população. Não seria solução única, mas era um caminho possível, contemplava uma nova organização globalmente empenhada num ensino moderno baseado na ciência e na investigação, centrado numa prática médica de qualidade, apta à incorporação inteligente da inovação, e constituindo-se como centro de referência e excelência no contexto dos serviços de Saúde, e foi muito inspirada pelas experiências europeias de sucesso na Holanda, Reino-Unido e Suécia.

A consolidação deste projecto iria requer empenhamento das tutelas respectivas, com maior impacto na organização do núcleo hospitalar e na consolidação da rede de ensino, mediante o reforço da colaboração clínica e uma estratégia de referenciação compatível. Esta era a questão crucial, precisava de acção coerente e diversificada. Em primeiro lugar, o núcleo hospitalar central – o HSM/CHLN – cujas necessidades e financiamento não poderiam ficar confinados à dimensão local e regional prevista na organização da saúde. Depois, a percepção que neste contexto académico, um hospital universitário, este ou qualquer outro, têm uma missão mais ampla e exigente: constituir uma plataforma tecnológica de vanguarda para a translação e aplicação da inovação ao serviço dos doentes. Finalmente, a articulação com as outras unidades hospitalares e centros de saúde incluídas na rede de afiliação para o ensino, a qual não deveria ficar limitada à simples distribuição geográfica e à alternância mensal das urgências.

Estes requisitos não são exclusivos da Faculdade de Medicina, são comuns às instituições de ensino médico as quais precisam de modelo inovador na sua organização, desde a estruturação do trabalho profissional, à selecção meritocrática das lideranças clínicas, à modernização tecnológica compatível com o desenvolvimento científico e a arte médica, e que promova cultura de avaliação e de governação participada e comprometida com o projecto académico. Integração desejável dos profissionais numa carreira única nestas instituições de ensino, com critérios de selecção comparáveis e mecanismos de avaliação estruturados, continuam a ser objectivos longínquos, mas são uma necessidade inadiável.

A mudança que estimulámos na Faculdade de Medicina, com os seus dois pilares, o Centro Académico de Medicina e a rede de ensino pluri-institucional, representa uma proposta mas faz apelo a um novo patamar de cooperação entre os dois ministérios – Parceria estratégica para a educação médica – e exigia uma nova política, que infelizmente nos parece longínqua.

De facto, a realidade nestes últimos anos de crise financeira e de contenção inevitável da despesa pública caracterizou-se por redução muito significativa dos recursos e ausência efectiva das reformas de fundo, estruturais e necessárias. No financiamento da Faculdade houve cortes relevantes no orçamento, que agravaram a redução da comparticipação pública per capita, numa educação que é reconhecidamente cara e que nos obrigaram a limitar a expansão da rede de ensino e na cooperação com as outras instituições de Saúde. Na Ciência, as limitações anunciadas têm consequências negativas no recrutamento e motivação de jovens investigadores, na manutenção e desenvolvimento dum sistema científico importante e necessário para a medicina académica. E na Saúde houve uma redução significativa do financiamento do HSM-CHLN, o núcleo hospitalar central do nosso projecto académico, aparentemente por critérios determinados pela organização regional que contemplaram a natureza académica central da instituição, o seu envolvimento na educação dos médicos e outros profissionais de saúde e a responsabilidade nacional como centro de referência e hospital fim de linha para patologias mais graves e complexas.

A realidade é pois complexa e difícil. Há uma janela de oportunidade para as reformas necessárias? A fusão das universidades clássica e técnica com a criação da ULisboa, na qual a Faculdade de Medicina participou com o maior entusiasmo, foi o primeiro passo duma restruturação indispensável na rede de ensino universitário, que tem que ter continuidade. Por outro lado o HSM-CHLN, que constitui a nossa instituição nuclear para o ensino e investigação clínica e de translação, não pode ver reduzidos os meios necessários ao seu reequipamento e modernização tecnológica, indispensáveis ao exercício duma medicina de vanguarda e à incorporação da inovação terapêutica. Há uma experiência e trabalho realizado: o Centro Académico de Medicina com as suas instituições continua na vanguarda da produção científica, biomédica e clínica, como centro hospitalar de referência e os seus profissionais têm obtido reconhecimento internacional. Na Saúde impõe-se a necessidade de racionalização da oferta de serviços, a concentração de unidades, a criação de núcleos com massa crítica adequada e concentração de experiência e expertise.

As reformas necessárias são complexas, precisam coerência, unidade e continuidade na acção, mais que decisões parcelares e casuísticas. Mudar a organização das instituições de ensino médico, onde decorre também a formação de outros profissionais de saúde, é um passo, indispensável e urgente, no caminho necessário e no fortalecimento do sector público, na Saúde e na Educação. Não devemos perder tempo, temos uma responsabilidade com o futuro. O risco de falharmos é a irrelevância.

Fonte: www.publico.pt