O presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica alerta para o risco da invasão da área por profissionais não capacitados
por Eliane Lobato
A ferida abriu e não parece haver remédio capaz de estancar o sangue. Essa ideia simboliza o sentimento de médicos integrantes da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Eles denunciam, por meio do presidente da entidade, José Horácio Aboudib, a invasão de profissionais não especializados na atividade para a qual se preparam durante 11 anos – seis de faculdade, dois de residência geral e mais três de especialização. O exercício de profissionais não preparados especificamente em cirurgia plástica tem gerado má fama para a classe toda. Levantamento do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) revela que, entre janeiro de 2001 e julho de 2008, foram analisados processos contra 289 médicos envolvidos em cirurgia plástica. Mas apenas 2,1% eram de fato cirurgiões especializados. Os demais foram procedimentos feitos por profissionais de outras áreas.
Aboudib chama a Sociedade Brasileira de Medicina Estética de fraudadora e diz que a Sociedade Brasileira de Medicina e Cirurgia Estética é uma entidade mais cafajeste ainda. Ambas são entidades não referendadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e compostas por médicos que, segundo ele, “fizeram cursos de fim de semana” para ganhar títulos e invadir a área. “Só querem saber de grana”, afirma. Capixaba e residente no Rio de Janeiro, casado, três filhos, Aboudib é, também, coordenador de Cirurgia Plástica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ele deu a seguinte entrevista à ISTOÉ.
Istoé - Por que o sr. afirma que há uma invasão no campo da cirurgia plástica no Brasil?
José HorÁcio aboudib - Existe uma coisa que se denomina medicina estética, que não é nada porque essa especialidade não existe. Não é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, pela Sociedade Brasileira de Medicina, pelo Ministério da Educação, pela Associação Médica Brasileira. Medicina estética é fraude do início ao fim. Mas existe uma Sociedade Brasileira de Medicina Estética, presidida pelo médico Aloizio Faria de Souza, que só pensa em ganhar dinheiro.
Istoé - Por que o sr. diz isso?
José HorÁcio aboudib - A dita sociedade oferece cursos de fim de semana, os quais habilitam médicos sem residência médica a atuar como cirurgiões plásticos. O resultado é o número escandaloso apurado pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo: 97% dos médicos que respondem a processos relacionados à cirurgia plástica não possuem títulos de especialistas na área. Apenas seis cirurgiões plásticos e um dermatologista estão entre os 289 médicos processados por problemas em procedimentos relacionados à cirurgia plástica entre 2001 e 2008. Mas a péssima fama recai sobre todos os cirurgiões.
Istoé - Qual a diferença entre o médico especializado em cirurgia plástica e o da medicina estética?
José HorÁcio aboudib - Gigantesca: a formação do especialista, seja cirurgião plástico, seja dermatologista, requer, após a formatura na faculdade de medicina, residência médica de 60 horas semanais, o que dá 240 horas mensais, 2,8 mil horas por ano. E são dois anos de residência em cirurgia geral e mais três anos de especialização. No total de cinco anos, são 14,4 mil horas na formação e no treinamento de um cirurgião plástico. Na chamada medicina estética, fazem cursos de um ano. Se não é uma especialidade reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, como pode dar título? São fraudes em sequência.
Istoé - Quais?
José HorÁcio aboudib - A segunda fraude são as aulas dadas em um fim de semana por mês durante um ano. Vamos considerar que sejam oito horas de duração no sábado e o mesmo no domingo. Isso dá uma carga horária de 192 horas por ano. Depois disso, a pessoa recebe título de especialista e está apta a operar. 192 horas por ano contra as 14,4 mil exigidas pela SBCP.
Istoé - Quais os outros problemas?
José HorÁcio aboudib - A terceira fraude é o fato de enganarem os pacientes dizendo que são especialistas sem ser. Medicina estética só visa ganhar dinheiro. Mas, agora, surgiu outra entidade mais cafajeste ainda: intitula-se Sociedade Brasileira de Medicina e Cirurgia Estética, presidida por um cirurgião-geral chamado Edson Teixeira, que ficou famoso há uns 40 anos quando fez transplante de pâncreas em um ser humano, e o paciente morreu. É totalmente amoral, faz qualquer coisa para ganhar dinheiro.
Istoé - Por que essa entidade é pior?
José HorÁcio aboudib - Vi um folder deles anunciando um curso de mamoplastia (cirurgia plástica nas mamas) em apenas um fim de semana. Um colega médico ligou para lá para confirmar e a mulher que atendeu perguntou: “O sr. sabe dar ponto?”. Quando ele respondeu que sim, ela disse: “Então, o sr. faz o curso sábado e domingo e já pode marcar sua primeira operação de plástica de mama para a segunda-feira.” Ou seja, tem paciente correndo risco nas mãos de pessoas (des)preparadas assim. Mas eles ganham fortunas dando esses cursos. Essa turma só quer saber de grana, não é de medicina. O nosso diploma e o da dermatologia são referendados por entidades sérias. O deles não é referendado por nada. Não estão pensando em ensinar, em formar profissionais. Só estão pensando em enriquecer, em faturar com o ensino.
Istoé - Quais os riscos que os pacientes correm?
José HorÁcio aboudib - De todo tipo. Infecções, resultados desastrosos, por exemplo. E inclusive a morte. Por isso cuidado: médicos despreparados estão exercendo a cirurgia plástica.
Istoé - Há áreas preferidas por esses profissionais não especializados?
José HorÁcio aboudib - A chamada medicina estética só quer faturar, não importa a área. E não é só em cirurgia. Tem alguns que, na endocrinologia, repassam a receitinha de dieta que pegaram nos cursos.
Istoé - Como o paciente pode saber se o médico é especialista?
José HorÁcio aboudib - Por meio do site da SBCP ou se ele exibir o título em quadros emoldurados e à vista no consultório.
Istoé - O que o Conselho Federal de Medicina pode fazer?
José HorÁcio aboudib - Em uma reunião recente em Brasília, um conselheiro sugeriu perdão aos “coitadinhos” que “somam 12 mil caras trabalhando na clandestinidade...” Eu disse: Mas eles começaram na clandestinidade! Se quer perdoar, então vamos abrir as cadeias também. Vamos acabar com as regras de segurança.”
Istoé - O CFM não vai fazer nada?
José HorÁcio aboudib - O conselho argumenta que não pode deixar de ser generalista para não jogar na ilegalidade um médico do Acre, por exemplo, que mora numa cidade que não tem especialistas e tem que fazer parto, cirurgia geral, cuidar de diabéticos. Minha sugestão é que se separe: que se diga na lei do CFM que os médicos que trabalham em cidades com menos de 30 mil ou 40 mil habitantes possam atuar em áreas afins e os outros não.
Istoé - Que procedimento cirúrgico já teve resultado mais dramático?
José HorÁcio aboudib - Certamente, o de lipoaspiração, que esses profissionais fazem em consultório, sem anestesia e até sem esterilização adequada. Fizemos um levantamento, que mostrei ao Conselho Federal de Medicina, com mais de dez casos de mortes e complicações graves atribuídas a cirurgiões plásticos – e nenhum era plástico. Todos os responsáveis eram da turma da medicina estética. Eles fazem essas porcarias e as notícias saem como se fossem cirurgiões plásticos.
Istoé - Há levantamento sobre os erros realmente cometidos por cirurgiões plásticos?
José HorÁcio aboudib - Estamos fazendo um estudo. Queremos saber se a lipoaspiração dá mais problema porque é mais feita ou se é porque é mais realizada em condições inadequadas. Chegamos ao número de 30 óbitos nos últimos anos relacionados a cirurgias plásticas feitas por especialistas, em um universo de mais de 100 complicações graves. Temos uma comissão estudando por que isso aconteceu.
Istoé - O conselho tem como punir? Alguém está sendo punido?
José HorÁcio aboudib - Tem, se comprovar negligência, imprudência ou imperícia. Mas há médicos condenados em 15 processos que continuam trabalhando. Fica por isso mesmo. Não pagam as indenizações. Mas, de modo geral, a chamada máfia de branco acabou. Na SBCP e nas regionais não se pode punir, mas podemos excluir o mau profissional. Temos, agora, um problema diferente: um vigarista que não é cirurgião plástico tem um programa na televisão chamado “Dr. Rey” (apresenta o programa “Sexo a 3”, da Rede TV!). Ele foi cassado na Califórnia e veio para o Brasil – só que, aqui, ele não é médico. Não revalidou seu diploma.
Istoé - Ele atua como médico?
José HorÁcio aboudib - Atua nesse programa de quinta categoria, vende cintas, fica apalpando mamas de mulheres, é assustador o baixo nível. Denunciamos ao Ministério Público, que foi atrás. E os três cirurgiões plásticos que foram ao programa dele receberam advertência pública da SBCP. E, se insistirem, serão excluídos. Não queremos essas pessoas na Sociedade.
Istoé - Outras especialidades, como dentistas, também estão invadindo a área, já que muitos aplicam botox?
José HorÁcio aboudib - Isso é proibido pelo próprio Conselho Nacional de Odontologia. Se o dentista for denunciado, não terá defesa. Agora, isso é diferente de um otorrino fazer plástica de nariz, um mastologista fazer plástica de mama, um oftalmologista fazer plástica de pálpebra, entre outros, se tiver treinamento de pelo menos um ano. O que não pode é fazer um cursinho de fim de semana e operar.
Istoé - Como é em outros países?
José HorÁcio aboudib - Só dá para comparar com os Estados Unidos, que têm padrão à altura do nosso. O cirurgião plástico brasileiro não tem igual, é hoje o melhor do mundo. A prova é que tem mais gente procurando treinamento aqui do que em qualquer outro país. E o nosso congresso é maior que o americano também. A Europa nem conta. Estão 20 anos atrás da gente. Mas o problema de invasão nos Estados Unidos é pior.
Istoé - Pior como?
José HorÁcio aboudib - Por exemplo: no processo de implante de cabelo, muitos médicos trabalhavam com enfermeiras que cortavam e separavam o folículo para o cirurgião implantar. Mas como é um trabalho exaustivo, algumas vezes eles passavam o implante para que elas o fizessem também. Resultado: elas filmaram tudo e entraram na Justiça pedindo o direito de ser titular no procedimento. Lá, também dentistas querem o direito de fazer cirurgia de face e tem fisioterapeuta que começou a fazer lipoaspiração.
Fonte: Isto é
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.