Debate sobre as escolhas entre vida e morte ainda é muito tímido no país
Castanhos e expressivos, mesmo quando inundados por lágrimas, os olhos são a última forma de comunicação que sobrou a Miguel Arcanjos Ferreira. Diagnosticado em 2008 com esclerose lateral amiotrófica, doença neurodegenerativa conhecida pela sigla ELA, o mineiro de São Gotardo perdeu todos os movimentos, inclusive os necessários para falar e respirar, mas tem a consciência preservada. Há dois anos, já internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Regional de Samambaia onde está até hoje, Miguel começou a sair de sua angústia muda. Com o auxílio de um quadro que exibe as letras do alfabeto, na ordem da mais frequente no português (A) para a menos usada (K), o homem de 50 anos conseguiu formar a primeira frase. “A, E, O, S, R…”, começou o psicólogo da unidade, Adriano Facioli. Após o R, Miguel olhou para a esquerda, sinalizando um sim. “R? É a letra R?”, indagou o profissional. Em cerca de 15 minutos, sempre com a pergunta de confirmação a cada letra escolhida, um pedido já havia sido feito: “Remédio para garganta”.
A adesão à tábua de letras foi impressionante. Miguel pedia para ser trocado de posição, reclamava de falta de ar, avisava qual canal queria assistir na televisão, mandava recados aos familiares e até jogava na Mega-Sena. Certo dia, o psicólogo surpreendeu-se com uma nova demanda. Miguel manifestou o desejo de morrer. “Nestes dois últimos anos, esse pedido ocorre de forma invariável. Perguntamos de outra forma, mesmo nos momentos mais alegres, e a resposta é a mesma”, conta Facioli. Luciane Ferreira, 29 anos, irmã mais nova e afilhada de Miguel, confirma o relato do psicólogo. “Quase sempre ele pedia ajuda para morrer. E o que eu respondia? Que eu não posso fazer isso, porque se eu pudesse, faria. Se a gente tivesse sido esclarecido melhor sobre o avanço da doença, ele teria escolhido ficar em casa, já teria morrido, só que perto da família”, diz.
Maria Carmelo Ferreira, mãe de Miguel, pensa diferente. Ela defende a utilização de todos os recursos possíveis. “Quem sabe a hora de cada um é Deus, não somos nós”, afirma a senhora de 73 anos. O desacordo sobre o momento de parar, no caso de doença incurável e progressiva, não é exclusivo dos familiares. O caso de Miguel, que já foi reanimado de duas paradas cardíacas nos últimos três anos, também mexeu com as crenças e os valores dos profissionais da UTI. Demonstra ainda o quanto é necessário, nas mais variadas esferas da sociedade, da medicina ao direito, um debate franco sobre a vida e a morte, dois fenômenos que sempre intrigaram a humanidade desde o início dos tempos.
Não encarar essa discussão pode levar os hospitais, na avaliação de Facioli, a tornarem-se verdadeiras masmorras do sofrimento humano. Se no início do século passado o tempo estimado para a morte, depois de instalada a enfermidade terminal, era de cinco dias, no fim chegava a 10 vezes mais. “O avanço da tecnologia modificou completamente os parâmetros da vida, portanto é preciso refletir quando o esforço terapêutico equivale à tortura ou a tratamento degradante. Todos têm o direito de viver a própria vida e morrer a própria morte”, defende Carlos Vital, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina.
Sem padrão
Apesar da conscientização cada vez maior em torno da autonomia do paciente e da mecanização desnecessária das funções vitais, a falta de um protocolo nacional de atendimento a pessoas que entram em processo irreversível de morte dificulta uma abordagem mais humanizada. “Alguns serviços definiram procedimentos padrão, mas são minoria. Na maior parte das UTIs, o que predomina é a distanásia”, lamenta Lara Kretzer, intensivista do Hospital Universitário de Florianópolis e integrante do comitê de cuidados paliativos, abordagem que prima pelo controle da dor e do sofrimento a pacientes em processo de terminalidade, sem técnicas invasivas ou desnecessárias.
O respirador introduzido na traqueia e uma sonda ligada ao estômago, para nutrição e hidratação, dificultam a transição de Miguel do cuidado intensivo para o paliativo, mesmo que houvesse concordância da equipe médica e da família. “Tirar um suporte que já foi colocado é mais complicado do ponto de vista filosófico. O ideal é não começar”, afirma Anelise Pulschen, chefe da unidade de cuidados paliativos do Hospital de Apoio de Brasília. A falta de um sistema público de home care, que permitisse a pacientes terminais ficarem em casa, com a família, mas recebendo o suporte necessário, é outro problema no país. O Ministério da Saúde foi procurado pelo Correio, mas não respondeu aos contatos.
Em cerca de uma hora com a reportagem, Miguel chorou duas vezes. Impressiona a expressividade dos músculos ao redor dos olhos, ante a impassividade do resto do rosto. Com as letras ditadas por Luciane, a irmã mais nova, o homem de cabelos pretos com leves mechas grisalhas, apaixonado por tentar a sorte em garimpos nos rincões do país, pediu para que a família não se esquecesse de levar chocolates para os dois filhos ainda pequenos, de um total de seis. A crescente dificuldade de acompanhar os comandos do método de comunicação é visível. Sem completar toda a frase e contando com a interpretação da irmã, ele perguntou à reportagem sobre novos tratamentos para sua doença. No fim, na despedida, novamente uma contração muscular forte, seguida de lágrimas. Um choro sem som, abafado pela traqueostomia.
Procedimentos
É grande a confusão entre os conceitos de ortotanásia, distanásia e eutanásia. A orto quer dizer a morte na hora certa, nem adiada nem postergada. Significa, por exemplo, suspender ou não prover o respirador, evitar uma reanimação em caso de parada cardíaca ou não iniciar um tratamento de hemodiálise no paciente que já entrou em processo irreversível de morte. Já a eutanásia é caracterizada por um procedimento ativo com o objetivo de antecipar a morte. Pode ser feita com a aplicação de uma medicação no paciente, por exemplo. A distanásia é a chamada obstinação terapêutica. Ou seja, a morte prorrogada inadequadamente por atitudes médicas ou procedimentos terapêuticos. Em alguns países, a legislação prevê o suicídio assistido, que é auxiliar o paciente com dificuldade grave de movimento no ato de morrer.
A hora do adeus
Diante de tantos avanços na medicina e de técnicas mecânicas para postergar a morte, cresce o número de brasileiros que deixam registrado legalmente quando é o momento de parar
» RENATA MARIZ
Nunca houve tantos recursos à disposição da medicina. A revolução científica e tecnológica, iniciada com as primeiras unidades de terapia intensiva no mundo, na década de 1960, resultou em drogas capazes de manter os tecidos oxigenados, cirurgias complexas de revascularização cardíaca, máquinas que substituem a respiração humana e técnicas eficazes de ressuscitação. Se, por um lado, toda essa parafernália salva diariamente milhares de vidas, por outro, impõe à sociedade enfrentar os dilemas da morte. O direito de morrer com dignidade, sem ter o sofrimento postergado por uma mecanização excessiva que não trará a cura, é um tema cada vez mais recorrente entre os profissionais da saúde, do direito, pacientes e seus familiares no Brasil. A falta de uma legislação específica sobre o assunto e uma prática médica ainda calcada no “tentar salvar a qualquer custo” estão levando brasileiros a manifestarem, por meio de documentos públicos lavrados em cartórios, como e quando querem partir.
Apenas no 26º Tabelionato de Notas de São Paulo, um dos maiores cartórios do país, o número de pessoas que registraram o documento, chamado popularmente de testamento vital, cresceu quase 20 vezes — passando de 22, em 2002, para 406, no ano passado. Em 2012, já foram lavradas 90 declarações, com determinações das mais variadas. Desde o tipo de tratamento ou suporte por máquinas a ser rejeitado, no caso de doenças incuráveis em fase terminal, ao local da morte e opção de cremação. No Distrito Federal, ainda não foram identificados registros dessa natureza. Moradora de São João da Boa Vista (SP), Celina Maria Rubo, 70 anos, é uma das adeptas do testamento vital. A preocupação com o fim da vida surgiu quando a mãe adoeceu por causa de uma obstrução no intestino. Na ocasião, os quatro filhos optaram por não autorizar uma cirurgia que deixaria a senhora de 83 anos à época com uma bolsa de colostomia. A remoção do acessório, caso ocorresse, levaria a idosa a perder o controle sobre a evacuação, tendo de usar o banheiro a cada duas horas, em média. Sem a operação, ela viveu com qualidade de vida por três anos. Morreu quando o intestino fechou de vez, em 2008.
Quando Celina descobriu, em exames de rotina, ter a mesma obstrução, apressou-se para fazer o testamento vital, deixando expressa a vontade de também não se submeter à cirurgia. “Senti uma paz de espírito quando meu advogado me entregou o documento. Agora, tenho certeza de que mesmo que eu esteja sedada, em coma ou desmaiada, os médicos vão respeitar a minha vontade. Quero uma morte natural”, diz a mulher, hoje completamente saudável. Difícil mesmo foi encontrar um procurador que, no caso de Celina ficar inconsciente, possa garantir o cumprimento de seu desejo. Após algumas recusas entre os familiares, incluindo o filho de 33 anos, ela conseguiu que um primo fosse nomeado para a tarefa. “Se tem uma coisa neste mundo totalmente democrática é a morte. Por que vou fugir de uma coisa que vai chegar? As pessoas ainda têm dificuldade para conversar sobre o morrer”, afirma Celina, secretária executiva aposentada.
Regulamentação
No Brasil, diferentemente de outros países, não há lei regulamentando o testamento vital. Isso não significa, porém, que o documento é desprovido de validade. “A declaração de vontade dará segurança jurídica aos médicos que ficam temerosos de serem responsabilizados por omissão de socorro e acabam colocando o paciente nos aparelhos, mesmo sabendo que o que está ocorrendo é um prolongamento do processo de morte e não da vida”, afirma Carlos Vital, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM). A entidade trabalha atualmente para elaborar uma resolução sobre testamentos vitais. Nos Estados Unidos, primeiro país a criar o instrumento, a estimativa é que 29% da população adulta fazem uso dele. Na Espanha, esse índice chega a 16%. A advogada Luciana da Dalto, especialista no assunto, destaca que a vontade do paciente em desligar um aparelho ou não tomar uma droga está respaldada na Constituição Federal. “Temos o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade.”
Em todos os países onde existe essa declaração de vontade reconhecida legalmente, é possível fazer ortotanásia, ou seja, limitar ou suspender procedimentos que não trarão cura ou qualidade de vida para um paciente em processo irreversível de morte. Uma resolução do CFM aprovada em 2006 garante ao médico brasileiro o direito de fazer ortotanásia, caso seja a vontade do paciente ou de seu representante legal. O problema é que, dentro dos hospitais, à beira do leito, faltam certezas sobre uma eventual punição penal e sobram dúvidas a respeito de que atitude tomar. Pesquisa da Universidade de Brasília realizada no ano passado com 15 médicos de unidades de terapia intensiva (UTIs) mostrou que metade deles desconhecia o conceito correto de ortotanásia. “Há uma questão cultural e emocional provocada pela formação que recebemos. Não sabemos reconhecer que não existe mais o que fazer. A morte é vista até como um fracasso, uma frustração, pela equipe”, afirma a médica intensivista Lara Kretzer, integrante do comitê de cuidados paliativos do Hospital Universitário de Florianópolis.
Quando a Justiça entra na luta
Em cinco anos de batalha judicial, Ramón Sampedro, espanhol que pediu à Justiça para morrer, repetiu incansavelmente que “viver é um direito, não uma obrigação”. Como o dele, muitos outros casos, em diversos países no mundo, ganharam notoriedade internacional (veja quadro). No Brasil, apesar de nunca ter ocorrido um episódio de grande repercussão, os tribunais já começam a se deparar com os dilemas da morte com dignidade. No ano passado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul obrigou o Hospital Ernesto Dornelles a suspender as sessões de hemodiálise que aplicava à paciente Irene Oliveira de Freitas, 82 anos, internada à época em estado grave.
O filho dela, Gilberto de Oliveira de Freitas, pediu aos médicos que parassem, alegando ter sido essa a vontade da mãe quando ainda podia falar. Mas o neto, Guilherme da Silva Benites, era contra. O hospital acionou a Justiça para resolver o conflito. “O significado da vida é uma das questões mais inquietantes da condição humana. Pegar esse caso, um dos raríssimos na história brasileira, levou-me ao campo da filosofia, da bioética. Decidi pelo respeito à vontade da paciente”, diz o desembargador Armino José Abreu Lima da Rosa, relator do processo.
Conflito parecido ocorreu em 2006, no Distrito Federal, quando os pais de um bebê de oito meses com quadro degenerativo crônico e incurável solicitaram à Justiça o direito de recusar, no caso de uma parada cardiorrespiratória, a ventilação mecânica e remoção para uma unidade de terapia intensiva (UTI). “No respirador, nem um minuto. Do nosso ponto de vista, aquilo não é mais vida. Aquilo é condenar uma pessoa a não poder morrer”, disseram, em entrevista a uma perita em ética nomeada pela Justiça, que preservou os dados dos envolvidos. Dias depois da decisão judicial favorável, o bebê morreu. (RM)
No limite do sofrimento
Conheça alguns casos emblemáticos que, além de comoverem o mundo, levantaram o debate sobre o direito de morrer com dignidade
Terry Schiavo
Terry, uma norte-americana de 41 anos, teve uma parada cardiorrespiratória em 1990 que ocasionou um grave dano cerebral, fazendo-a entrar em estado vegetativo persistente. O marido dela pediu à Justiça americana a retirada da sonda de alimentação, mas os pais e o irmão dela foram contrários ao ato. Terry não tinha deixado um testamento, mas o marido alegava que ela já tinha manifestado a vontade de não passar por uma situação semelhante quando estava lúcida. Os pais negavam essa afirmativa. Contudo, como pela legislação americana o marido era o responsável legal, a Justiça autorizou a retirada da sonda em 19 de março de 2005. Terry faleceu 12 dias depois. O caso foi interpretado como eutanásia.
Ramón Sampedro
Na história real que deu origem ao filme Mar adentro, Ramón Sampedro sofreu uma lesão na coluna. Ele tinha 26 anos e ficou tetraplégico. Em 1993, solicitou na Justiça espanhola o direito de morrer. Enfrentou cinco anos de batalha judicial, mas teve o pedido negado, pois a legislação espanhola proíbe a eutanásia. Com auxílio de amigos, planejou sua morte de modo que cada um fizesse um ato que não fosse considerado auxílio ao suicídio nem homicídio. Em 1998, o cianureto foi colocado em um copo pelos amigos, mas foi ele quem levou a boca ao canudo e sugou o conteúdo. Sampedro gravou um vídeo com seus últimos momentos de vida. O caso é apontado como suicídio assistido.
Piergiogio Welby
Desde os 18 anos, Piergiogio sofria de distrofia muscular progressiva. Aos 60, vivendo conectado a um respirador artificial, solicitou à Justiça italiana o direito de desligar os aparelhos. Perdeu a ação e escreveu uma carta para o então presidente, Giorgio Napolitano, com o objetivo de sensibilizá-lo sobre seu sofrimento. O comunicado deu início a uma grande comoção social. Em 21 de dezembro de 2006, o médico anestesista Mario Ricco desligou o respirador após sedar o paciente. O profissional foi processado criminalmente, mas a juíza Zaira Secchi o absolveu, sob o argumento de que o médico apenas respeitou a vontade do paciente, lembrando que a Constituição italiana concede o direito de rejeitar tratamento médico.
Vincent Humbert
Documentada em primeira pessoa no best-seller Peço o direito de morrer, a história do jovem francês começou com um acidente de carro, em 2000. Aos 19 anos, Vincent perdeu todos os sentidos, exceto a audição e a inteligência. Ele movimentava ligeiramente a mão direita com uma pressão do polegar a cada letra falada pela mãe. Pediu aos médicos pela eutanásia, mas não foi atendido. Em 2002, solicitou ao presidente Jacques Chirac um indulto antecipado a quem o ajudasse a morrer. Como também não teve sucesso, a mãe o ajudou, colocando uma overdose de sedativos em sua sonda. Dois dias depois, com estado de saúde cada vez pior, Vincent morreu. O chefe da equipe médica, Frédéric Chaussoy, assumiu ter desligado o respirador. Os dois foram processados por homicídio premeditado, mas absolvidos por pressão da opinião pública. Chaussoy escreveu o livro Eu não sou um assassino.
Fonte: Correio Braziliense
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.