Por JOSÉ HORTA MANZANO - Empresário e músico
Esta semana perdi uma sobrinha. Estava na flor da idade, não tinha 30 anos ainda. Vivia um período de projetos e sonhos, aquele momento de euforia em que o passado ainda não conta e a vida é conjugada no futuro. Estudiosa, preparava-se para uma carreira na Promotoria Pública. Mas o destino não quis.
Não foi acidente, nem suicídio, nem droga, nem acerto de contas, nem briga de quadrilhas, nem bala perdida, nem latrocínio, nem assassinato. Ela morreu por incompetência. Incompetência alheia.
Faz alguns dias, amanheceu com um braço inchado. Não parecia alarmante — os sintomas apontavam para alguma infecção. Assim mesmo, foi internada no modesto hospital que serve àquelas redondezas. Para não ferir almas sensíveis nem levantar mais poeira, prefiro calar o nome da cidade. Vamos chamá-la D. Direi somente que fica no interior do estado mais rico da Federação.
Os dias se passaram, mas nenhuma melhora apareceu. Ao contrário. Aqueles a quem competia agir pela recuperação da jovem paciente não se acanhavam de confessar sua impotência. “Já tentamos tudo, esgotamos nossos conhecimentos”, foi o que disseram. Que fazer?
Coube à família desamparada e desorientada a decisão de transferir a jovem para um hospital maior e mais bem equipado, a 200km de distância. Mas era tarde demais. O organismo debilitado por dias e dias de cuidados inadequados já não respondia mais aos tratamentos. O inacreditável acúmulo de desinformação, hesitação, desorganização, incompetência e descaso contribuiu para extinguir, em duas semanas, uma vida ainda em eclosão. Restam à família os olhos para chorar.
Há notícia de que grupos de pressão tentam conseguir do governo federal o reconhecimento automático de diplomas médicos obtidos no exterior. Algo nessa história fere o bom senso. Por que, cáspite, um jovem brasileiro enfrentaria um exílio voluntário de tantos anos em terras bolivianas, hondurenhas ou cubanas sem ter, na origem, nenhum vínculo com esses países? Que força fantástica estaria empurrando tantos futuros médicos a abandonar a terra natal para estudar noutro país, sob outro clima, mergulhados em outra língua, longe de família e amigos? Cada um é livre de formar sua própria opinião.
Enfim, vivemos numa democracia. Não cai bem impor esta ou aquela profissão aos jovens, menos ainda obrigá-los a cursar esta ou aquela escola. No entanto, os currículos em vigor nos diversos países não são uniformes nem idênticos. Portanto, a lógica exige que, antes da concessão da licença de exercer em nosso território, sejam avaliados os conhecimentos do profissional formado fora do país. Não fazê-lo seria injusto para com os colegas que não cederam à tentação de estudar em terras exóticas. A sabedoria popular costuma dizer que com saúde não se brinca.
O argumento principal dos grupos que defendem a homologação ex officio do diploma é a falta de profissionais no mercado. Pode até ser. Pode-se também contra-argumentar que o problema não é tanto a falta de médicos, mas a má distribuição deles pelo território. É truísmo dizer que os grandes centros urbanos atraem os profissionais. Que fazer, então? Deixar como está para ver como fica? Importar levas de médicos que, de todo modo, acabarão se fixando nos grandes centros? Abandonar a saúde pública de nossos grotões ao deus-dará?
Invocações ao patriotismo, à abnegação, ao altruísmo perigam ser pouco eficazes sob nossas latitudes. Há argumentos mais convincentes que outros. Mais vale tentar pelo lado pecuniário. Para falar vulgarmente, assim como o peixe se pega pela boca, pega-se o cidadão pelo bolso. Há que oferecer vantagens financeiras aos que optarem por exercer em rincões.
Uma lista de municípios onde a necessidade é mais premente terá de ser aviada. Favores fiscais serão concedidos aos profissionais que se dispuserem a exercer nalguma dessas localidades. Atenção: a isenção fiscal — seja ela total ou parcial — será concedida por período limitado a, digamos, cinco anos. E mais: não entrará em vigor logo no primeiro ano, nem no segundo. O beneficiário só fará jus a esse favor fiscal a partir do terceiro ano consecutivo de exercício numa localidade desfavorecida.
Talvez não esteja aí a solução miraculosa de todos os problemas nacionais, mas ela pode fazer bem à saúde pública. Será um passo na boa direção e, melhor ainda, pouco oneroso para os cofres públicos. Vale a pena tentar. Pelo menos, o sacrifício da jovem de D terá servido para alguma coisa.
Fonte: Correio Braziliense
Espaço para informação sobre temas relacionados ao direito médico, odontológico, da saúde e bioética.
- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.