Em Portugal, a doação de óvulos não tem aumentado.
Falar de doação de gâmetas em Portugal ainda pode ser um tabu, quer para quem doa quer para quem recebe. A sociedade está mais aberta a este recurso, o último na lista das técnicas de Procriação Medicamente Assistida, mas as doações não têm aumentado nos últimos anos. A compensação financeira, que numa altura de crise poderia ser uma motivação, não tem levado ao aumento de dadores, segundo os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO.
“Porque não doar óvulos e ajudar outras mulheres a cumprir um sonho e passar pela experiência da maternidade tal como eu passei e passo?“. A pergunta com tom de surpresa, por lhe parecer tão óbvia a resposta, é dada por Liliana Costa, 24 anos, uma mulher que este ano vai doar, pela primeira vez, ovócitos que depois serão utilizados em técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA) na clínica privada da zona de Coimbra que escolheu para fazer a primeira doação.
Liliana é mãe de uma menina de cinco meses, vive em união de facto há quase dois anos, e diz que desde sempre teve conhecimento de casos de casais infertéis. “Por mais que haja a possibilidade de adopção, muitas mulheres não sonham só com o facto de serem chamadas de mãe mas sim com a possibilidade de gerar um filho durante nove meses dentro do seu corpo. Como muitas mulheres, por problemas de saúde, não conseguem cumprir esse sonho decidi tornar-me dadora de óvulos.”
Liliana Costa ainda está na fase inicial do processo de qualquer potencial dadora mas Maria (nome fictício), 27 anos, já tem duas dádivas registadas. Só poderá fazer mais uma. A lei portuguesa estabelece que cada mulher pode fazer três doações, com um intervalo de seis meses.
Mãe de um rapaz, Maria partilha com Liliana a mesma motivação para doar ovócitos. “Levou-me a ser dadora o facto de poder ajudar outras mulheres a poderem passar pela alegria de serem mães como eu sou”, responde ao PÚBLICO por email. Maria fez a primeira doação em 2011 e a última este ano, ambas numa clínica privada de Lisboa que lhe foi indicada por uma amiga. Foi uma decisão sua mas para a qual também contou a família e os amigos mais próximos. “Também gosto de saber a opinião deles”, diz.
Numa sociedade que considera ainda preconceituosa quanto aos dadores de gâmetas, Maria diz que o “nosso país ainda tem uma mentalidade muito velha”. Refere-se às questões éticas ou religiosas que se levantam quanto à doação e a quem acredita que a motivação financeira é o que leva muitas dadoras a ajudar outras mulheres.
Vender os filhos
Nas respostas ao PÚBLICO, nenhuma das duas mulheres refere que a compensação financeira pesou na decisão de se tornarem dadoras, o que numa altura de crise económica poderia ser apresentado como atractivo e levar mesmo ao aumento do número de dadores. Mas a retribuição financeira não parece ter levado ao aumento de dadores quer no Banco Público de Gâmetas, a funcionar desde Maio de 2011 na Meterniadade Júlio Dinis, no Porto, quer nas clínicas privadas contactadas pelo PÚBLICO.
Isabel Sousa Pereira, directora do Banco Público de Gâmetas, diz que é uma questão que “pontualmente alguns dadores levantam”, mas que de acordo com a equipa de Psicologia que integra aquela instituição “não foi concluído em nenhum momento que essa tenha sido a motivação principal por parte dos dadores que são ali efectivos”.
A compensação financeira dos dadores de gâmetas (óvulos e espermatozóides) foi autorizada em Março de 2011 e tem como objectivo o “reembolso das despesas efectuadas ou dos prejuízos resultantes da dádiva”. Essa compensação corresponde, no caso do homem, a um décimo do valor do indexante dos apoios sociais, um valor que sobe até um décimo e meio para as mulheres. Na prática, os homens podem receber cerca de 140 euros e as mulheres perto de 620 euros. A diferença de valores é explicada com os procedimentos distintos por que passam o dador e a dadora.
Alberto Barros, responsável pela primeira inseminação intra-uterina com sémen de dador em Portugal, em 1985, e director de um centro de genética da reprodução privado com o seu nome, admite que a retribuição financeira pode fazer parte do que leva alguém a doar mas que a compensação deve ser encarada como um “obrigado” pela contribuição de um dador. “Sempre defendi que as dadoras deveriam ser recompensadas mas deve ser uma espécie de prenda, tem que haver um grande equilibrio, e acho que existe em Portugal, para que esse valor, o obrigado materializado, seja suficiente justo, correcto mas não seja excessivo de modo a ser este o objectivo da dádiva. Espero que esse equilíbrio seja sempre conseguido”.
O valor da compensação “não é tão atractivo como isso”, argumenta, por sua vez, Maria José Carvalho, médica ginecologista/obstetricia e directora do centro privado de assistência à reprodução Cemerare. “Para o esforço que é exigido não é muito. Poderia haver uma compensação um pouco maior. Até porque muitas das mulheres acabam por não avançar para a doação”, argumenta.
Ana Oliveira Pereira, psicóloga na Ava Clinic, uma clínica privada de tratamento de infertilidade, onde faz avaliação e aconselhamento a dadoras e acompanha casais que recorrem a doação de gâmetas, afirma que “apesar de estarmos em crise económica, não aumentou o número de candidatas, porque a sua principal motivação não é a compensação financeira”. Autora de uma tese de mestrado sobre a personalidade e motivações das mulheres candidatas a doação de ovócitos, Ana Oliveira Pereira admite que a questão é levantada por algumas mulheres “mas como uma forma de retribuição pela sua dádiva”. A psicóloga admite que não se pode negar que “numa primeira abordagem a existência de compensação seja um factor que chama a atenção”.
Segundo a sua experiência, a maior satisfação pela doação deve-se a “formas de satisfação mais profundas e duradouras”. “Diversos estudos têm mostrado que mesmo candidatas que inicialmente decidiram doar com base na existência de uma compensação, a longo prazo valorizam mais outras compensações psicológicas, nomeadamente pelo acto de terem ajudado outras mulheres”. Em alguns casos, a psicóloga diz que existem mulheres que não desejam ter filhos mas que querem ajudar outras a tê-los.
O facto de existir uma compensação pode levar a que as dadoras sejam tratadas de “forma algo displicente”, como defende Ana Oliveira Pereira. “De forma implícita, ao longo dos anos tem passado a ideia que se tratam de mulheres que ‘vendem’ filhos a troco de dinheiro”. O que a psicóloga lamenta, comparando que não existem críticas à existência de isenção de taxas moderadoras ou outros beneficios para dadores de sangue ou medula, situações em que de “forma indirecta” estamos perante “uma retribuição financeira também”. Para a psicóloga, só tratando as dadoras com o respeito que se deve a outros "pacientes" se poderá “desmistificar e equalizar a existência destes dadores como os dadores de sangue, de medula ou orgãos”.
Quem são as dadoras portuguesas?
Maria já o fez e Liliana vai passar obrigatoriamente pelo mesmo processo. Antes de uma mulher ser considerada dadora há um processo para avaliar as suas condições físicas e psicológicas. Existem pré-requisitos obrigatórios para se tornarem “candidatas”: têm que ter entre 18 e 35 anos e serem saudáveis, sem antecedentes de doenças de transmissão genéticas ou infecciosas. Se após uma fase de exames médicos, que passam por um exame ginecológico e análises sanguíneas, se confirmar que do ponto de vista reprodutivo a potencial dadora não tem quaisquer problemas, pode tornar-se dadora.
A maioria das mulheres que dirigem aos centros têm entre 20 e 28 anos. No Cemerare, Maria José Carvalho diz que as dadoras que tem recebido têm na maioria idades entre os 23 e 28 anos, são de classe média, jovens licenciadas ou mulheres com as mais variadas profissões. Alberto Barros diz que a candidata a dadora mais jovem que teve na clínica onde trabalha tinha 20 anos e as mais velhas 35. “A maioria das dadoras são estudantes universitárias, mas há também secretárias, enfermeiras. Fico surpreendido com aberturta que existe”, confessa.
No Banco Público de Gâmetas, as estudantes universitárias são também a maioria. Isabel Sousa Pereira diz que há pessoas com as mais “variadas profissões, casadas ou não, com ou sem filhos”.
A psicóloga Ana Oliveira Pereira, que desde 2000 diz ter entrevistado aproximadamente 1500 candidatas a doação de ovócitos, refere que se tratam de mulheres que pretendem ajudar, quer porque têm familiares ou amigas que estão ou estiveram a lidar com situações de infertilidade. Na Ava Clinic são raras as dadoras que se encontram desempregadas, o que na opinião da psicóloga, “atesta da estabilidade pessoal das candidatas que surgem”.
“Sentem-se previligiadas por serem mães e querem proporcionar essa grande alegria a outra mulher e outras porque gostariam que alguém as ajudasse caso um dia se confrontassem com essa situação”, diz. Quando decidem avançar para a doação têm dúvidas relacionadas com “aspectos técnicos, nomeadamente sobre os procedimentos para recolha dos óvócitos” e algumas dúvidas habituais sobre os “riscos para a fertilidade futura”.
“Se questionarmos as candidatas a doação, e independentemente das suas motivações, aquilo que gostariam de saber é se a outra mulher conseguiu engravidar, se o processo resultou”, conta Ana Oliveira Pereira. Este é aliás o “único factor de insatisfação” que as dadoras referem à psicóloga, “não lhes ser dada informação sobre o resultado final do processo”, uma situação impossível dada a cláusula de confidencialidade e anonimato entre dadores e receptores.
Outras das características apontadas é serem mulheres com “uma abertura e segurança pessoal que as leva a tomar a decisão de forma livre, sem se sentirem constrangidas pela opinião de terceiros, exceptuando os maridos ou namorados”. “Estão cientes da dificuldade que os outros têm em aceitar esta postura e por isso escolhem com quem partilham a sua decisão”, sublinha Ana Oliveira Pereira. No caso das candidatas mais jovens, “levam muito em conta a opinião da mãe, mas trata-se sobretudo de uma decisão individual e consciente”.
As mulheres podem fazer três doações na vida mas a psicóloga indica que a maior parte das não chega a fazer duas doações. “Muitas ficam satisfeitas e sentem que ajudaram fazendo uma doação e conseguiram realizar o seu objectivo”.
Portugal precisa de dadoras
Em Portugal, a procura de dadores continua a ser maior que a oferta, e no caso da doação de esperma a oferta é praticamente nula. A nível nacional, quando se fala em doação de gâmetas a discussão acaba por se centrar na de óvulos, já que no caso do esperma, Espanha continua a ser o país ao qual os centros de tratamento de fertilidade portugueses recorrem na sua maioria para conseguirem sémen.
Actualmente não é possível determinar o número exacto de dadores no país, já que só desde Março existe uma plataforma de registo. É apenas possível contabilizar os ciclos de tratamentos de infertilidade iniciados com doação de gâmetas e os partos que daí resultaram. De acordo com dados recolhidos pelo Centro Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) junto dos dez centros públicos e 19 privados autorizados a ministrar técnicas de PMA, em 2011, o ano mais recente analisado, foram iniciados 269 ciclos de tratamentos de infertilidade com doação de ovócitos a fresco (óvulos são recolhidos e combinados de imediato com os espermatozóides e os embriões que daí resultarem são transferidos entre dois a quatro dias para a mulher receptora). No caso da dádiva masculina, o CNPMA indica que 140 ciclos de fertilização in vitro (FIV) ou microinjecção intracitoplasmática de espermatozóides (ICSI) foram iniciados com doação de esperma e que ocorreram 190 inseminações através do mesmo método de dádiva. No total, as doações de ovócitos e esperma levaram ao nascimento de perto de 180 crianças: 100 partos resultaram de doação de ovócitos com transferências a fresco, 33 após 121 transferências de embriões criopreservados resultantes do mesmo tipo de doação, e 45 de inseminações com doação de esperma.
Se recuarmos a 2010, o número de partos através da doação de gâmetas (óvulos e espermatozóides) não chegou a 140: 113 por doação de óvulos a fresco e 25 por doação de esperma.
A directora do Banco Público de Gâmetas admite que é difícil dar resposta ao pedidos de dadores. Nos dois anos que se seguiram à abertura do banco público “houve alguma afluência mas entretanto foi havendo oscilações. Neste último quadrimestre de 2013, foi significativamente menor”, diz Isabel Sousa Pereira. A responsável afirma que há um maior número de afluência de dadoras no momento em que saem notícias sobre o banco público. Foi o que se passou depois de ter sido noticiado em Outubro o nascimento da primeira criança concebida com recurso a sémen de dador.
Perto de 150 candidatos a dadores dirigiram-se ao banco público de gâmetas desde a sua abertura, mas cerca de 70% foram chumbados por não cumprirem os requisitos quando foi analisado o seu historial psicológico e físico. Nos primeiros quatro meses deste ano, Isabel Sousa Pereira estima que o banco público tenha recebido 20 potenciais dadores, um número inferior ao registado no último trimestre de 2012, em que apareceram 26 candidatos a doação.
A taxa de sucesso de gravidez com dadores de esperma é de cerca de 30% e com dadoras de ovócitos de 60%, sendo que até agora nasceram seis crianças a partir de doações feitas no centro.
Todos os casais do país que pretendem recorrer a doações de gâmetas estão inscritos no banco público no Porto. Isabel Sousa Pereira diz que actualmente existem 60 casais a aguardar por uma dadora mas que alguns vão iniciar em breve ciclos de tratamento de infertilidade. “Os casais que precisam de dadores masculinos não têm lista de espera para fazer tratamento. Temos bastantes casais a aguardar a realização do tratamento porque temos menos dadoras e uma dadora ‘serve’ apenas um casal. No caso de um dador, este faz várias colheitas que podem ser usadas por diferentes casais”, explica a médica.
Faltam campanhas de sensibilização
Isabel Sousa Pereira não encontra um factor que explique a falta de dadores no país. Algumas clínicas privadas têm iniciado campanhas a apelar à doação nas redes sociais e o Centro Hospitalar do Porto anunciou em 2011 o lançamento de uma campanha dirigida a estudantes universitários, o grupo onde existem dadores com o melhor quadro para doação.
Quando se fala em campanhas de sensibilização para a doação de gâmetas levanta-se a questão da “sensibilidade assimétrica da sociedade” em relação a este assunto. Carlos Calhaz Jorge, responsável pela Unidade de Medicina de Reprodução do Centro Hospitalar Lisboa Norte - Hospital de Santa Maria e membro da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, diz que pensar numa campanha pública para este caso torna-se complicado. “É muito dificil gerir sensibilidades, ainda existe reserva mental [dos portugueses] em relação a estas áreas”.
A psicóloga Ana Oliveira Pereira critica a falta de campanhas de sensibilização. “Em Inglaterra, por exemplo, existem campanhas nacionais de sensibilização para a doação feitas por associações de casais ou outras, que apelam à doação em si, sendo que os dadores escolhem a instituição à qual se querem dirigir”. Mas há de facto riscos, como admite. “Deve haver um particular cuidado na forma como é feito o apelo à dádiva para não se cair no mercantilismo que vigora nos EUA por exemplo. Segundo a Convenção de Oviedo, que Portugal assinou e também de acordo com a lei portuguesa, é proibida a compra e venda de material genético, mas está regulamentado o valor da compensação aos dadores”.
Alberto Barros subscreve que a procura de dadores ainda supera em muito a oferta. As doações continuam a ser maioritariamente de mulheres, não tendo havido recentemente dadores masculinos na clínica que dirige. “Em mais ou menos cinco anos a realidade que observamos é que há cada vez mais indicação para a doação de ovócitos. Isto porque com o avanço das técnicas de reprodução diminuem os casos em que é necessário recorrer à doação de espermatozóides”, A maior procura de ovócitos de dadora explica-se, por exemplo, com a faixa etária da mulher que tenta a gravidez. “É muito frequente fazer consultas a mulheres com mais de 40 anos”. É neste ponto que o médico deixa o conselho de “não adiar o projecto reprodutivo”.
Maria José Carvalho diz que no centro médico que dirige há cada vez mais uma maior procura de casais receptores mas o número de dadoras “mantém-se estável”, apesar de não dar ainda resposta aos pedidos existentes. Na Cemerare e na maioria das clínicas o tempo de espera por uma dadora é de quatro a seis meses.
Aceitar a doação como último recurso
A lei de 26 de Julho de 2006 sobre Procriação Medicamente Assistida determina que se pode recorrer à dádiva de ovócitos, de espermatozóides ou de embriões “quando, face aos conhecimentos médico-científicos objectivamente disponíveis, não possa obter-se gravidez através do recurso a qualquer outra técnica que utilize os gâmetas dos beneficiários e desde que sejam asseguradas condições eficazes de garantir a qualidade dos gâmetas”. A doação de gâmetas é assim o último recurso apresentado aos casais infertéis. Se alguns casais não têm dúvidas em recorrer a esta ajuda, outros recusam-na de imediato alegando questões religiosas, éticas ou familiares.
Marta Casal, 38 anos, é uma das mulheres que fazem parte das estatísticas dos tratamentos de infertilidade, uma realidade que conhece também como presidente da mesa da assembleia da Associação Portuguesa de Fertilidade. Em 2005 foi-lhe diagnosticada endometriose, uma doença congénita que provoca disfunção ovulatória. Começou a ser acompanhada na Maternidade Júlio Dinis, no Porto, e dois anos passados sobre a primeira consulta entrou para a lista de espera para tratamento com fertilização in vitro. Fez dois tratamentos mas em ambos ocorreram falhas na implantação dos embriões. Marta tinha bons embriões, estética e morfologicamente, e nada explicava a inviabilidade de uma gravidez.
Recorreu a um centro privado de tratamento de infertilidade no Porto e aí fez dois ciclos de FIV. Mas mais uma vez foram verificadas falhas de implantação. Foi-lhe sugerido recorrer à doação de ovócitos. Não teve dúvidas sobre se era uma opção a considerar. “Vimos isso como uma ajuda para atingir um fim, sermos pais. Da mesma forma, se tivesse oportunidade, o faria por outra pessoa qualquer”. Em 2012 recorreu pela primeira vez às dádivas de duas mulheres mas sem sucesso, uma resposta que vinha alimentar um desgaste físico, emocional e financeiro de anos. Fala em milhares de euros gastos desde que procurou ajuda no privado perante a falta de resposta no Serviço Nacional de Saúde. “Temos que pagar sete ou oito mil euros [por tratamento] no privado, com nenhuma garantia de sucesso. Precisávamos de uma resposta do Estado e é-nos negada”. A crítica surge depois de na Maternidade Júlio Dinis ter sido informada que não poderia regressar às consultas na unidade. “Alegaram que uma mulher que tenha tido pelo menos duas transferências com material geneticamente seu e que tenham feito mais de três ciclos no público fica excluida da possibilidade de uma consulta. Resta apenas o privado”, conta.
Actualmente desempregada, Marta admite desgaste físico e psicológico após 11 tratamentos de fertilidade mas sublinha que obstáculos como os encontrados no SNS para mulheres infertéis são “ainda mais frustantes”. “É verdade que ninguém tem culpa que estejemos a passar por isto mas já basta a nossa incapacidade de conceber. É muito frustante”.
Marta não sabe até quando irá recorrer à doação de ovócitos no privado. Neste momento, tenta reunir capacidade financeira para uma nova tentativa. Enquanto a medicina não lhe dá a resposta que procura, decidiu com o marido candidatar-se à adopção de uma criança, a última etapa para muitos casais para quem os tratamentos de fertilidade já não têm resposta. “Tenho o meu juízo no sitio. Não vou tornar a minha vida numa obsessão em ser mãe. Enquanto puder financeiramente vou recorrer ao privado”.
Alberto Barros, também professor catedrático de Genética da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, diz que “em termos sociais se hoje ainda é uma prática discutida e muito discutida, imagine-se o que era há 28 anos”. Para o geneticista “não há nada que alcance um esclarecimento médico directo”. “As pessoas têm acesso a muita informação. Mas o médico é que tem a obrigação de adaptar a informação à situação concreta do casal. Se vai colocar essa hipótese [doação], tem que esclarecer do ponto de vista médico se é correcta a oferta de óvulos ou espermatozóides. Nesse esclarecimento deve ser explicado como decorre essa técnica, o porquê de ela estar indicada, quando é que é sugerida”.
O professor diz que aceitar a hipótese da doação “é muito relativa dependendo do casal, da sua perspectiva religiosa ou filosófica”. Porém, segundo a sua experiência, na maior parte das situações os casais estão abertos à doação.
Maria José Carvalho diz que essa é a mesma realidade com que tem contacto na clínica onde trabalha. “A primeira reacção é que vão ponderar. Recorrem à consulta de psicologia e tomam uma decisão. Alguns casais levam seis meses antes de se decidirem”.
Mas há quem decida que esta é a altura de pôr um ponto final na tentativa de ser pai ou mãe. “Temos casais que de algum modo ficam considerando que chegaram ao fim. Há um terminar de um calvário de incómodos, expectativas, frustações”, conta Carlos Calhaz Jorge, responsável pela Unidade de Medicina de Reprodução do Centro Hospitalar Lisboa Norte - Hospital de Santa Maria e membro da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução. Tratam-se de casais que “já cumpriram o objectivo de empenhamento no processo”. “Há outros casais que avançam para essa alternativa [doação] alicerçada numa capacidade financeira que não está ao alcance de todos”, acrescenta.
Aceitar a realidade da doação exige um “processo de reflexão, amadurecimento e aceitação da decisão, como para outras decisões importantes da vida”. A psicóloga Ana Oliveira Pereira diz que a primeira reacção é “habitualmente negativa, e só após ser feito o luto da sua fertilidade e da possibIlidade de transmitir os seus genes, se poderá aos poucos aceitar a doação”.
Por vezes o casal avança para a doação, “ainda a fazer o seu luto pessoal, mas confortável e optimista face à capacidade de amar essa criança como sua, o que efectivamente é”. Poderão existir ainda questões religosas ou éticas que impeçam o recurso à doação, mas a pressão familiar não é apontada por Ana Oliveira Pereira como impedimento, “porque habitualmente os casais não partilham com os familiares quando decidem recorrer a doação de gâmetas. Quando o fazem é quando sentem que serão compreedidos, apoiados e que a criança será aceite pelos familiares”.
O filho não é meu
Quando a mulher se torna dadora faz uma “clara separação entre genética e filiação”, sublinha a psicóloga Ana Oliveira Pereira. “Trata-se de doação de células que, embora contenham o seu material genético, dão origem a crianças que não consideram como filhos”. Nas suas consultas, a psicóloga diz que quando questionadas sobre esta hipótese teórica, cerca de 98% das candidatas diz que nunca seriam "barrigas de aluguer" pois a partir desse momento considerariam a criança como sua filha. “Algumas candidatas a doação foram criadas em ambientes em que o papel afectivo não é realizado pelos progenitores biológios, mas pelos avós, padrastos ou madrastas, pelo que cresceram aprendendo que ser pai ou filho é algo de relacional e não biológico”.
Na cabeça de Liliana Costa não há qualquer confusão. Há uma criança que pode vir a ser gerada com um óvulo seu mas a questão de se esse poderá ser considerado seu filho não se põe. A lei obriga a que a doação de ovócitos e de espermatozóides seja feita de forma anónima e os dadores não têm qualquer responsabilidade sobre as crianças que nasçam com a ajuda da sua dádiva. Para Liliana, “pai e mãe é quem gera, mas não só quem gera”. “Pais são aqueles que nos acompanham para a vida e por toda a vida e não aqueles que apenas existem porque um teste de ADN diz que sim”.
Por isso pede às mulheres que dissolvam este preconceito e que pensem que “estão a ajudar uma outra mulher, mas não só, estão a ajudar um casal, uma família que sonha dia e noite com a possibilidade de ter um filho”. É essa posição que vai manter firmemente no dia em que fizer a sua doação.
Fonte: www.publico.pt
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.