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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Laudos médicos não substituem exame de corpo de delito

Por Carlos Eduardo Rios do Amaral*

É regra expressa no ordenamento jurídico brasileiro a noção de que quando a infração penal deixar vestígios será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo nem mesmo a confissão do acusado (artigo 158 do CPP).

O secular exame de corpo de delito é realizado por um perito oficial, portador de diploma de curso superior, estando sujeito à disciplina judiciária. Na sua falta, o exame é realizado por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame.

Logo que tem conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deve, sem demora, determinar que se proceda ao exame de corpo de delito (artigo 6º, VII, do CPP). Igualmente, em caso de lesões corporais, se o primeiro exame pericial tiver sido incompleto, proceder-se-á a exame complementar por determinação da autoridade policial, do juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública.

A par dessas vetustas disposições codificadas imperativas, agora vem a Lei 11.340, de 2006 — a chamada Lei Maria da Penha —, e diz o seguinte:
“Art. 12. (...)
(...)
§3º Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”.

Uma leitura apressada deste parágrafo 3º poderia sugerir ao intérprete a ideia de que nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher a sentença penal condenatória poderia arrimar-se em laudo ou prontuário médico fornecido por hospital ou posto de saúde, em detrimento do exame de corpo de delito, a ser realizado por perito oficial.

Para alguns, a admissão de laudos e prontuários fornecidos por hospitais e postos de saúde, para embasar o veredicto penal condenatório, estaria amparada na regra clássica de hermenêutica que determina o abandono da norma geral em prestígio da norma especial (Princípio da Especialidade: lex specialis derogat generali). Interpretação de vanguarda, para essa corrente, que estaria em sintonia com os anseios dos dias atuais de se erradicar a violência contra a mulher, que atinge índices alarmantes no país.

Ainda, para sustentar essa posição, malgrado a disposição contida no artigo 41 da Lei Maria da Penha, a pioneira Lei 9.099/95 já teria rompido a exigência clássica de nosso direito probatório brasileiro — da necessidade do exame de corpo de delito —, ao tolerar a demonstração da materialidade do delito por boletim médico ou prova equivalente nas infrações penais de menor potencial ofensivo (artigo 77, parágrafo 1º).

Entretanto, mister se faz para a compreensão do sentido e alcance do parágrafo 3º, do artigo 12, da Lei Maria da Penha, que a interpretação deste dispositivo seja feita à luz do que preconizado pela Lei Complementar 95, de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único, do artigo 59, da Constituição Federal de 1988.

Preconiza esse diploma complementar federal, no que interessa aqui:
“Seção II
Da Articulação e da Redação das Leis
Art. 10. Os textos legais serão articulados com observância dos seguintes princípios:
I — a unidade básica de articulação será o artigo, indicado pela abreviatura ‘Art.’, seguida de numeração ordinal até o nono e cardinal a partir deste;
II — os artigos desdobrar-se-ão em parágrafos ou em incisos; os parágrafos em incisos, os incisos em alíneas e as alíneas em itens;
III — os parágrafos serão representados pelo sinal gráfico ‘§’, seguido de numeração ordinal até o nono e cardinal a partir deste, utilizando-se, quando existente apenas um, a expressão ‘parágrafo único’ por extenso.”

Ainda:
“Art. 11. (...)
(...)
III — para a obtenção de ordem lógica:
(...)
b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;
c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida.”

Destarte, podemos dizer, então, que o parágrafo nada mais é do que o desdobramento do artigo, expressando aspectos complementares ao mesmo. Noutras palavras, o parágrafo jamais será a unidade básica de articulação do texto legal.

Daí se indaga onde estaria materialmente inserido o parágrafo 3º, do artigo 12, da Lei Maria da Penha, que diz serem “admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”?

Dispersando conjecturas, vejamos a literalidade do artigo 12 da Lei da Mulher:
“Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
I — ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;
II — colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
III — remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;
IV — determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;
V — ouvir o agressor e as testemunhas;
VI — ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;
VII — remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.
§1º O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter:
I — qualificação da ofendida e do agressor;
II — nome e idade dos dependentes;
III — descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida.
§2º A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no §1º o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida.
§3º Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde.”

Relendo atentamente o artigo 12, da Lei Maria da Penha, chega-se às seguintes conclusões: a) todos os procedimentos previstos pelo CPP que devem ser adotados pela autoridade policial não foram descartados pela nova legislação; b) este artigo não afasta a aplicação do artigo 11, II, da LMP, que determina que a autoridade policial encaminhe a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; c) a autoridade policial deve formar expediente apartado com o pedido da ofendida de medidas protetivas de urgência; d) deve a autoridade policial determinar que se proceda ao exame de corpo de delito na ofendida e requisitar outros exames periciais necessários (Inciso IV); e) o parágrafo 1º diz respeito ao pedido da ofendida de medidas protetivas de urgência e seus requisitos; f) o parágrafo 2º diz que deverão ser anexados ao pedido da ofendida o boletim de ocorrência e todos os documentos que se encontrarem na posse da ofendida; e, g) o parágrafo 3º diz respeito aos meios de prova para o fim de instruir o pedido da ofendida de medidas protetivas de urgência a ser encaminhado ao Poder Judiciário.

Assim, os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde revestem-se como prova hábil unicamente para o juízo acautelatório cível no que diz respeito ao pedido da ofendida de medidas protetivas de urgência, para a formação do fumus boni iuris. Devendo quanto à denúncia ser observada a regra da necessidade do exame de corpo de delito, direto ou indireto, para as infrações penais que deixam vestígios.

Esse foi o escopo do artigo 35, III, da Lei Maria da Penha, ao estatuir que a União, o Distrito Federal, os estados e os municípios deverão criar e promover, no limite das respectivas competências, serviços de saúde e “centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar”. Devendo tais Entes promover os ajustes nas respectivas leis de diretrizes orçamentárias, estabelecendo dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação desses centros de perícia oficial (artigo 39).

Finalmente, cabe lembrar que nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher aonde efetiva e integralmente implementado o disposto no salvífico artigo 14 da Lei Maria da Penha, que prevê competência cível para o processo, o julgamento e a execução das causas extra-penais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, certamente que laudos e prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde, corroborados pelas demais provas dos autos, constituem-se em prova firme e segura da materialidade do ilícito civil, que poderá dar azo à obrigação de indenizar a vítima, de acordo com a extensão dos danos.

*Carlos Eduardo Rios do Amaral Defensor Público do Estado do Espírito Santo

Fonte: Consultor Jurídico