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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

“Governo está mais interessado no dinheiro do que na segurança do doente”

PORTUGAL

Daqui a dez anos vamos ter que contratar enfermeiros no estrangeiro, avisa Germano Couto, bastonário da Ordem dos Enfermeiros

Os enfermeiros estão a emigrar aos milhares e, quando começarem a reformar-se em massa, vai ser complicado assegurar a dotação adequada dos serviços, prevê Germano Couto. No IV Congresso da Ordem dos Enfermeiros, que se realiza entre domingo e terça-feira em Lisboa, o bastonário vai bater-se por uma mudança radical do actual modelo de financiamento dos hospitais públicos e reclamar a “dotação segura” dos serviços de saúde que, lamenta, o Governo não quer aceitar. "Está mais interessado no dinheiro do que na segurança do doente", conclui.

Anunciou que quer mudar o actual sistema de medição de resultados e o modelo de financiamento dos hospitais. Porquê?
A questão do financiamento é basilar para nós. O actual modelo tem por base o diagnóstico médico, os procedimentos e não os resultados em saúde. Por exemplo, se um doente sofre um acidente vascular cerebral (AVC) e um hospital investe e consegue recuperá-lo e outro hospital não e o doente sai de lá ainda dependente, os dois recebem exactamente o mesmo pelo número de dias de internamento. O problema é que não conseguimos medir quantos doentes que sofreram AVC´s saíram do hospital a andar ou quantos doentes operados às cataratas saíram com melhor ou pior visão. Este sistema de medição de resultados terá consequências no modelo de financiamento. Temos que mudar de paradigma e isto vai ser discutido durante um jantar de trabalho no congresso, porque queremos que alguns hospitais avancem com projectos-piloto. É uma grande injustiça termos hospitais a ser financiados quando muitas vezes não investem no bem-estar dos doentes. O que acontece hoje em Portugal é que há hospitais a fazerem consultas à pressão e cirurgias a ser adiadas porque já não interessam. Porque é que há-de haver um tecto [a partir do qual os hospitais não recebem pelos tratamentos feitos]?

Mas como é que se operacionaliza um modelo de financiamento destes?
Este mecanismo de pagamento já está instituído nalguns países, por exemplo na Holanda, no Reino Unido, nos EUA. A Ordem é há meses parceira do Consórcio Internacional para Medição de Resultados em Saúde, uma organização fundada pelo Instituto para a Estratégia e Competitividade da Universidade de Harvard, pelo Boston Consulting Group (EUA) e pelo Karolinska Institutet (Suécia), e tem discutido a concretização deste modelo em Portugal. É um processo que vai demorar anos, mas é preciso dar este passo, até porque vai ficar mais barato.

É mais barato financiar pelos resultados em saúde?
Sim, porque se investirmos na independência do doente estamos a diminuir o desperdício. Hoje paga-se 400 euros por dia pelo internamento hospitalar, em média. Por isso é que defendemos a transferência de alguns cuidados dos hospitais para os centros de saúde e para os cuidados continuados. Um doente em casa (com apoio de profissionais de saúde) custa cerca de 100 euros por dia. Há um estudo feito em Inglaterra que prova que compensa fazer isto: contrataram cinco enfermeiros para prestar cuidados domiciliários e, ao fim de um ano, contabilizaram um acréscimo nos indicadores de saúde e uma poupança de 750 mil libras (cerca de um milhão de euros). Os cuidados de proximidade são muito mais baratos, mas ainda não há coragem política para avançar. Outra área em que se deve investir é a dos lares de idosos que estão desertificados de profissionais de saúde. Não investir nos lares é também desperdício, porque muitos dos seus residentes são frequentadores assíduos das urgências hospitalares.

O Ministério da Saúde anunciou recentemente a contratação de mil enfermeiros para o SNS. Isto é suficiente para responder às necessidades?
O Governo sabe que há falta de milhares de enfermeiros no SNS, sobretudo nos cuidados de saúde primários. Mas o que foi anunciado recentemente foi um processo concursal que pode demorar anos. Acresce que estes mil enfermeiros a contratar não são sequer suficientes para colmatar o saldo negativo de enfermeiros que o SNS enfrentou desde 2011 até Junho de 2014 - e que se aproxima dos dois mil.

A Ordem reclama uma “dotação segura” de enfermeiros. Isso significa o quê, na prática?
É o número adequado para responder devidamente às necessidades da população, o que se define por tipologia de serviços, porque as necessidades de cuidados de enfermagem são muito voláteis. Já há uma norma da Ordem publicada em Dezembro que é uma forma de cálculo para cada serviço. O mais caricato é que, há dias, o Governo Regional dos Açores assinou com a Secção Regional da Ordem um acordo nos termos do qual se compromete a respeitar esta norma. Mas o Governo [central] solicitou logo uma declaração de ilegalidade pública da norma, dizendo que Ordem não tem legitimidade para fazer cálculo de dotações. Ora isto é uma completa paranóia! Quem é responsável pela segurança e qualidade dos cuidados de enfermagem é a Ordem. A acção que o Ministério intentou leva-me a concluir que Governo está mais interessado no dinheiro do que na segurança do doente.

Outro tema central do congresso é o enfermeiro de família. Quando vamos ter enfermeiros de família nos centros de saúde em Portugal?
O enfermeiro de família já existe há anos, mas não havia legislação [para enquadrar esta figura]. O que temos em curso são 35 experiências-piloto, é um processo que vai demorar dois anos. Estou expectante. Esta foi a marca positiva que o ministério deixou junto da enfermagem, não vejo mais nenhuma.

E aquela reivindicação antiga e tão polémica, a da prescrição de medicamentos por enfermeiros?
Não há necessidade de ser polémica, os enfermeiros já prescrevem há muitos anos medicamentos em situações de emergência e também fazem vacinas. Nas doenças crónicas devíamos poder prescrever, até porque muitas vezes um doente está a tomar três medicamentos iguais, não é feita a gestão [da terapêutica]. Defendemos esta possibilidade, não porque seja importante para nós, mas para tentar melhorar a acessibilidade.

Nos serviços de urgência, o ministério acabou por permitir este ano que os enfermeiros pedissem exames e meios complementares de diagnóstico. Como é que isto está a funcionar?
Não está. O problema é que a norma sobre esta matéria que foi publicada pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) apenas contemplou os contributos da Ordem dos Médicos, apesar de dizer exclusivamente respeito aos enfermeiros. A Ordem dos Enfermeiros foi ouvida, mas a DGS ignorou-a. Por isso dizemos que é isto uma farsa e que os enfermeiros não devem aderir a esta norma. Não é uma questão de teimosia, é de direito a qualidade de cuidados.

Consegue precisar quantos enfermeiros faltam em Portugal, tendo em conta que saem das escolas milhares de novos profissionais em cada ano?
A formação não é excessiva para as necessidades. Saem das escolas, por ano, entre três mil a 3500 enfermeiros que seriam perfeitamente absorvíveis se as dotações adequadas fossem cumpridas. Como não são, ou ficam no desemprego ou emigram. Há mesmo um fenómeno novo que me entristece: alguns países começam a fechar as suas escolas de enfermagem, por exemplo o Reino Unido, porque vão buscar profissionais ao estrangeiro. No Reino Unido até já há hospitais que, quase na totalidade, funcionam com enfermeiros portugueses. Estamos a assistir a uma sangria de profissionais altamente especializados.

Quantos estão a emigrar, afinal?
Temos uma ideia desse fenómeno porque os que tencionam sair pedem a declaração de conformidade com directivas europeias. Como os contactamos mais tarde, percebemos se ficam ou não no estrangeiro. E cerca de 70% ficam. Este fenómeno vai ter consequências a médio prazo. Os 60 mil que em duas décadas devem sair das nossas escolas se calhar não chegam para as necessidades. Ainda somos uma profissão jovem, mas, quando os mais velhos começarem a aposentar-se, vai ser uma calamidade. Daqui a dez anos não temos enfermeiros que cheguem, vamos ter que contratar no estrangeiro.

Não faz sentido, então, diminuir o número de vagas nas escolas, como tem sido reclamado?
Defendi, no início do meu mandato, uma redução de 10% nas vagas. O primeiro ano em que houve redução foi este ano, mas foi por falta de procura. Temos 42 escolas e não temos corpo docente numeroso e com qualidade para dar formação. E, depois, não há instituições que cheguem para os estágios. Resultado? Há situações caricatas de enfermeiros a estagiar em creches.

Por que motivo é que contestam o novo estatuto?
O Governo omitiu todos os artigos sobre o exercício profissional tutelado (internato) no novo estatuto. A prática tutelada em enfermagem, como noutras profissões, é o período em que os recém-licenciados se vão integrando na actividade. Oitenta por cento dos erros acontecem nos primeiros seis meses. O enfermeiro já não está em estágio, já tem responsabilidade criminal. Mas hoje entra-se na profissão e fica-se a trabalhar sozinho.

Apesar de estar quase no final do seu mandato, ainda pode deixar de ser bastonário, porque as eleições para a Ordem foram impugnadas judicialmente…
Até ao momento, a justiça não deu razão aos autores da acção pois não houve trânsito em julgado. A Ordem recorreu e estou convencido de que irá ganhar.

"Mulheres só devem apresentar atestados médicos para provarem que estão a amamentar"
Bastonário defende que atestados médicos bastam para as mulheres provarem que estão a amamentar e que espremer os seios não é aceitável, mas lembra que a Organização Mundial de Saúde (OMS) fala em amamentação apenas até aos dois anos. A Ordem, garante, está atenta ao incumprimento da lei e até acaba de pôr um processo disciplinar a uma enfermeira directora de um hospital onde um enfermeiro terá sido despedido ter gozado uma licença parental.

Um inquérito que a Ordem fez recentemente permitiu perceber que há muitos problemas no gozo de direitos de parentalidade. Por que fizeram este inquérito?
Fizemos um inquérito porque começamos a ter denúncias e tivemos cinco mil respostas no conjunto dos 34 mil enfermeiros que se enquadravam nos critérios do inquérito (os enfermeiros são 66 mil). Percebemos que a maior parte dos hospitais e centros de saúde não cumpre a lei: fazem ameaças, não deixam gozar licenças e até há casos de despedimento. Temos um caso de não renovação de contrato na sequência de gozo de licença parental que levou a que a Ordem pusesse um processo à enfermeira directora desse hospital. É a primeira vez que isso acontece na história da Ordem. Mas há mais casos. O que defendemos é que, mais importante que estar a mudar a lei e a aprovar incentivos para promover a natalidade, é preciso cumprir os direitos que já estão previstos na lei.

No caso das enfermeiras que se queixaram de ter que fazer prova de evidência de leite (espremer as mamas, na expressão das próprias) para demonstrar que estavam a amamentar os filhos a Ordem não teve um papel afirmativo....
É assim: essa atitude de pôr as mulheres a espremer os seios não é aceitável. O atestado médico é o meio de validação [da amamentação] e basta. Ao pedirem este tipo de prova, as instituições estão a pôr em causa idoneidade dos atestados. Se acham que há abusos, mais vale reduzir o tempo para amamentação que actualmente é indefinido. A OMS fala em dois anos de amamentação, pode ser mais, mas também não se vê vantagens após dois anos. O que defendemos é que, se a lei não está bem, que seja alterada, não se permitindo a licença de amamentação ad eternum, mas também não se prejudicando quem está a amamentar. Neste tipo de denúncia, ao contrário do que diz, actuamos. Fizemos uma visita de acompanhamento num caso semelhante, fomos ao local, reunimos com o Conselho de Administração e com os enfermeiros, concluímos que a senhora tinha razão, mas a polémica acabou por estourar [na comunicação social].

Defende, pois, a mudança da lei, reduzindo para dois anos o período de licença de amamentação?
O que sei é que o gozo da licença tem consequências na programação de recursos humanos. Sendo a enfermagem uma profissão maioritariamente feminina (80% são mulheres), às vezes temos no mesmo serviço cinco ou seis enfermeiras a amamentar, o que levanta problemas. Esta situação deve ter consequências no planeamento de recursos a nível central. A Ordem conseguiu este ano que fosse criado o regime de substituição sem concurso. Antes, a substituição demorava seis ou sete meses e havia casos caricatos em que, quando a autorização chegava, a pessoa já estava ao serviço.

Fonte: www.publico.pt