Funcionários de hospitais privados menores e mais afastados do Plano Piloto também denunciam a troca de médicos auxiliares por técnicos
A prática ilegal de substituir médicos auxiliares por técnicos em enfermagem durante cirurgias também é recorrente em hospitais privados de pequeno porte. Sem fiscalização rigorosa, gestores de unidades menores e mais afastadas do Plano Piloto usam mão de obra inadequada no tratamento de pacientes. Até ontem, as denúncias se limitavam sobre os cinco maiores estabelecimentos de saúde da capital. Depois de o Correio publicar reportagens com as supostas irregularidades, vários funcionários de centros menos expressivos procuraram o sindicato da categoria para contar o que acontece nas salas de operações.
Um homem que trabalha em um hospital da Ceilândia, por exemplo, revelou ser comum o exercício ilegal da atividade médica. “Os hospitais mais conhecidos ficam em evidência porque estão no centro da cidade e atendem a um público de classe econômica mais elevada. Mas o que ocorre nos hospitais das localidades pobres é muito mais absurdo. A regra, neles, é não ter médico auxiliar”, reclamou.
Uma enfermeira pediu demissão de um hospital de Taguatinga por sofrer coação quando ainda trabalhava como técnica, há quatro anos. “Não aguentei as pressões e as humilhações. Todo mundo considera o técnico dispensável, sem importância e, por isso, resolvem pisar. Como eu queria ser mais respeitada, pedi as contas e passei a me dedicar somente à faculdade (de enfermagem)”, contou a mulher, hoje servidora da Secretaria de Saúde do DF.
As ilegalidades que vieram a público estremeceram a relação entre médicos e auxiliares, além de provocar a antipatia dos gestores. Discussões entre profissionais têm se tornado constante no ambiente hospitalar. Para piorar, patrões deixaram o campo das ameaças e passaram a assinar dispensas. Ontem pela manhã, a direção do Hospital Anchieta, em Taguatinga, dispensou, por justa causa, 21 técnicos. Os administradores da unidade alegaram que a medida foi motivada pelo movimento orquestrado pelos profissionais no último dia 13, quando parte deles paralisou as atividades por alguns minutos. Eles exigiam o fim do desvio de função no centro cirúrgico (leia mais na página 22).
Para piorar, as condições de trabalho nas unidades de saúde de menor porte contribuem para o erro.
No Conselho Regional de Enfermagem (Coren), pelo menos dois processos foram abertos para apurar falhas supostamente cometidas por técnicos. O sindicato da categoria argumenta que os técnicos ficam mais vulneráveis a equívocos por se sujeitarem a jornadas exaustivas. “Tem funcionário que trabalha em três hospitais para conseguir sustentar a família. Chega a ficar 36 horas sem dormir, pingando de um hospital para o outro. Essa rotina é necessária porque o nosso piso, de R$ 680, é um dos mais baixos do país”, reclamou o diretor administrativo do Sindate, Jorge Viana.
Desconfiança
Hoje, o DF conta com uma rede de 48 hospitais particulares. Eles são responsáveis por atender quase 30% da população. Mesmo assim, a qualidade no atendimento é questionada. Estabelecimentos antes considerados referência, como o Santa Lúcia, enfrentam a desconfiança dos moradores por sucessivos episódios de supostas falhas e falta de cuidado com os pacientes. Em 1986, Pedro Júnior Rosalino Braule Pinto, o Pedrinho, foi roubado da maternidade da própria unidade de saúde.
Em fevereiro, o estudante Marcelo Dino, filho do presidente da Embratur, Flávio Dino, morreu após sofrer uma crise asmática no Santa Lúcia. A equipe médica é acusada de erro. Um mês antes, o secretário de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Duvanier Paiva Ferreira, 56, morreu depois de sofrer um infarto agudo do miocárdio. O hospital negou atendimento ao servidor porque não aceitava o seu plano de saúde.
Entenda o caso
Fraude e falsificação
Na última terça-feira, o Correio publicou vídeos e prontuários de atendimento que comprovavam a substituição de médicos auxiliares por técnicos em enfermagem durante procedimentos cirúrgicos. A prática, considerada ilegal e gravíssima pelo Código de Ética Médica, estaria ocorrendo desde 2010 nos maiores hospitais particulares do Distrito Federal.
Pelas regras do Conselho Regional de Medicina (CRM), todas as operações devem ser acompanhadas por pelo menos dois médicos. Cabe ao técnico apenas abastecê-los com instrumentos, como pinças e bisturis. As denúncias levaram o CRM a abrir sindicância a fim de tentar descobrir a identidade dos profissionais acusados.
A investigação também quer saber se é verídica a suspeita de que médicos estariam falsificando relatórios. Segundo o Sindicato dos Técnicos em Enfermagem do DF (Sindate), há indícios de que os especialistas listavam o nome de dois médicos responsáveis pelas cirurgias, mas, na verdade, apenas um tinha executado o serviço, o que configura fraude. Os lesados seriam os pacientes e os planos de saúde. Depois de o jornal revelar as suspeitas, pelo menos 12 funcionários de hospitais diversos procuraram o Sindate para denunciar a atuação como cirurgiões.
Promotoria investiga
Ontem à tarde, as denúncias foram protolocadas no Conselho Regional de Medicina (CRM) e no Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT). Para o promotor de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), Diaulas Ribeiro, é preciso cautela ao analisar o caso. “Temos de tratar essa informação com cuidado, para saber se não é uma briga política, tendo em vista que, até hoje, nenhuma denúncia chegou até mim. Porém, se for verdade, vamos chamar esses funcionários para depor e analisar se há provas suficientes contra os médicos”, ponderou.
Diaulas também diz ser preciso avaliar a participação dos técnicos nas cirurgias e saber se as supostas ameaças dos patrões justificam a atuação deles como médicos auxiliares. “Pode ser que eles (técnicos) não sejam isentos de sanções. A infração pode, perfeitamente, ser atribuída às duas partes (médicos e técnicos). Vai depender das circunstâncias”, destacou o promotor.
Ontem, o presidente do CRM, Iran Augusto Cardoso, encaminhou ofício aos hospitais particulares citados nas denúncias convocando funcionários e médicos para dar explicações. Os gestores das unidades têm 10 dias para responder à entidade. A medida faz parte do primeiro passo da sindicância aberta na quarta-feira a fim de apurar os responsáveis por compactuar com a substituição de médicos por técnicos nos centros cirúrgicos.
Fonte: Correio Braziliense / SAULO ARAÚJO e SHEILA OLIVEIRA
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.