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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Caso de anencefalia deveria ser aplicado por analogia a casos similares

*Por Marina Toth

Embora muitas pessoas não saibam, hoje, no Brasil, a interrupção de gravidez de feto anencéfalo (má formação letal do tubo neural caracterizada pela ausência total ou parcial da calota craniana e do encéfalo) pode ser feita sem a necessidade de qualquer autorização judicial, desde que cumpridos alguns requisitos. A despeito disso, muitas vezes médicos e gestantes, ainda que conhecedores do atual panorama, procuram o judiciário para avalizar a sua decisão com medo de sofrerem eventuais punições.

Até o início de 2012, essas interrupções, embora possíveis, dependiam de pedidos judiciais individualizados e que, a depender do juiz e suas convicções, poderiam ver seus pleitos atendidos ou não. No entanto, esse panorama mudou quando em 30 de abril de 2012, o STF julgou o ADPF 54 e decidiu pela possibilidade jurídica de se interromper gravidez de feto inviável por anencefalia.

O ministro relator Marco Aurélio entendeu que, em razão da inviabilidade de vida extrauterina, o feto não estaria juridicamente tutelado, não seria “pessoa” para fim de tutela jurisdicional, logo, não seria o feto inviável acobertado pelas mesmas garantias e direitos atinentes à um feto viável. A decisão, apesar de gerar descontentamento nas alas mais tradicionalistas, é de quase irretocável lógica e saber jurídico, lançando luz à mais alta corte e homenageando a laicidade do Estado. Aqui dizemos quase irretocável, pois não abarcou expressamente as demais formas de inviabilidade fetal, deixando espaço para o tratamento diferenciado de condições similares.

Importante ressaltar que a decisão não legalizou a prática abortiva e tampouco excepcionou o artigo 124 e seguintes do Código Penal que tratam do tema. O que se determinou foi que a interrupção da gravidez de feto anencefálico (e, portanto, inviável) é ação irrelevante para o mundo do direito, fato formalmente atípico, fora das hipóteses de aborto constantes no Código Penal, pois lá trata-se de fetos viáveis e, portanto, protegidos pela normatização vigente, declarando que feto anencéfalo não é bem juridicamente tutelado, podendo a gestante tomar decisões privadas neste tocante.

Da decisão extrai-se que não é preciso se obter autorização ou qualquer forma de aval judicial para a realização de procedimento interruptivo de gestação de feto acometido por anencefalia, pois (i) a interrupção nestes termos não é fato típico, (ii) não há interesse para o mundo do direito, (iii) a condição congênita da anencefalia é determinada por médicos e não juízes.

Nessa linha, o Conselho Federal de Medicina publicou, em 14 de maio de 2012, a Resolução 1989/2012, trazendo expresso em seu artigo 1º a desnecessidade de autorização do Estado para que o médico interrompa a gravidez da gestante (se essa for a vontade dela) diante de diagnóstico inequívoco de anencefalia, que deve ser documentado e ter o laudo assinado por dois médicos capacitados.

Apesar da aparente tranquilidade no tocante à possibilidade jurídica da interrupção de gestação de feto anencéfalo, casos similares cujas malformações tornam os fetos igualmente inviáveis, ainda vêm sendo objeto de infindáveis controvérsias judiciais e decisões contrárias.

Podemos citar como exemplo o Mandado de Segurança 2091871-92.2014.8.26.0000, em que apesar de restar inconteste a inviabilidade do feto por anidrâmnio (ausência de líquido amniótico), agenesia renal bilateral, ausência de visualização de bexiga, comunicação interventricular e estenose pulmonar, com a conclusão de que as anomalias são incompatíveis com a vida extrauterina -- cujo laudo elaborado pelo Hospital das Clínicas foi assinado por dois médicos capacitados --, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu por indeferir o pleito de interrupção da gravidez por tratar-se de hipótese diversa da anencefalia.

Ora, o STF decidiu na ADPF 54 pela possibilidade de interrupção da gravidez em razão da inviabilidade do feto, não sendo razoável presumir que uma causa de inviabilidade, no caso a anencefalia, seja mais forte que outra causa de inviabilidade de vida extrauterina. Feto inviável é, infelizmente, feto inviável.

Inexiste justificativa para se tratar a inviabilidade por anencefalia de forma diversa da inviabilidade por qualquer outra causa, desde que inequivocamente demonstrada por meio de exames e laudo assinado por médicos capacitados. Assim, preenchidos os mesmos requisitos da Resolução 1989/2012, não há razão para que situações materialmente similares sejam tratadas distintamente pela lei.

Podemos concluir, portanto, que o mesmo argumento aplicado naquele caso de anencefalia julgado pelo STF deveria ser aplicado por analogia a todos os outros casos similares, dispensando-se, inclusive, a necessidade de autorização judicial, estando a mulher livre para decidir pela interrupção ou continuidade da gestação, sem precisar submeter um assunto de esfera estritamente privada ao Judiciário.

É preciso que as autoridades urgentemente reconheçam a possibilidade de interrupção de gravidez de feto inviável, seja qual for a causa da inviabilidade, eliminando dúvida ou justo receio de médicos e gestantes executarem o procedimento em casos diversos da anencefalia.

Fonte: Revista Consultor Jurídico