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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Testamento vital possibilita o direito à dignidade

*Por Rachel Leticia Curcio Ximenes

O direito à vida[1] é o primeiro grande direito individualmente tutelado pela Constituição Federal, por ser a base de todo e qualquer direito ou garantia do ser humano.

A dignidade da pessoa humana, por sua vez, é um dos fundamentos do Estado brasileiro e tem como fim precípuo a tutela de todo e qualquer indivíduo que venha a se sujeitar às normas brasileiras, seja ele nacional ou estrangeiro.

A dignidade pode superar a própria vida, atingindo a morte. A partir do momento em que não se pode mais viver com dignidade, cada ser humano tem direito a uma morte digna, à conclusão de sua vida da forma menos dolorosa e mais íntegra possível, perto de quem se ama e da forma como se pretende. Essa morte digna tem sido objeto de intensas e incessantes discussões no direito brasileiro, eis que as práticas normalmente utilizadas para se pôr fim à vida de um indivíduo são vedados pelas nossas leis.

Mas e se o paciente solicitasse a forma de tratamento que gostaria de ter, no caso de ser acometido por uma doença ou sofrer acidente de tal gravidade, que sua cura se tornasse improvável? Essas circunstâncias têm aberto a discussão sobre a possibilidade jurídica do testamento vital no Brasil, também conhecido como “diretrizes antecipadas de vontade”. Esse tipo de declaração já vem sendo utilizado em países como Estados Unidos, (“living will”)[2]; Espanha (testamento vital) [3]; Itália (testamento biológico); e França (“testament de vie”)[4].

Testamento no Direito Brasileiro
De acordo com Flávio Tartuce[5], o testamento é “negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável, pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou não, para depois de sua morte” (grifos aditados). Por ser ato individual e personalíssimo, não se admite testamento em conjunto ou por procuração, sob pena de nulidade do ato.

O Código Civil brasileiro contempla três formas comuns ou ordinárias de testamento: o testamento público, cerrado e o particular; cada qual com suas particularidades, exigindo formalidades das quais não se podem prescindir, sob pena de nulidade[6].

O “testamento vital” é definido como um documento escrito, pelo qual uma pessoa determina qual tipo de tratamento deseja ou recusa, numa situação futura, em que possa estar acometido de doença terminal, que a impossibilite de manifestar plenamente sua vontade[7].

Francisco José Cahali descreve o testamento vital como “(a) declaração da pessoa, promovida na plenitude de sua lucidez, com as diretrizes a serem adotadas em seu tratamento médico e assistência hospitalar, quando por causa de uma doença ou acidente não lhe seja mais possível expressar a vontade”[8].

No Brasil tem sido utilizada a nomenclatura “Diretivas Antecipadas de Vontade, ou DAV”, tendo em vista que o interessado, num único documento, dispõe sobre uma série de assuntos relacionados a tratamentos médicos (que recusa ou aceita, em qual hospital deseja se tratar, onde deseja passar os últimos dias de vida no caso de doença terminal ou irreversível, dentre outros relacionados) e também pode dar outras instruções como cláusulas de representação ordinária e empresarial, inclusive, especificar como deseja suas exéquias[9].

Com efeito, o testamento, digamos, tradicional tem como escopo a produção de efeitos post mortem, enquanto o testamento vital é ato jurídico que visa à produção de efeitos ainda durante a vida do seu outorgante, sobre a sua própria vida, integridade física e saúde.

O propósito do testamento vital é garantir ao próprio declarante o direito de dispor sobre seu corpo, sua integridade física e saúde e sua própria vida enquanto ainda vivo, para os casos em que venha a ser acometido de moléstia incurável ou que venha a sofrer acidente de tal gravidade que lhe suprima a capacidade de expressão e de livre manifestação da vontade.

O Código Civil, em seu artigo 15, dá subsídios a essa modalidade de declaração de vontade, ao estabelecer que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

A Constituição Federal, ao outorgar, em cláusula pétrea, direito de liberdade a todos os indivíduos, assegura não apenas as liberdades de expressão, de religião, mas também, e principalmente, as liberdades sobre o seu corpo, sua saúde e sua vida.

Portanto, não haveria motivos para se rejeitar as diretrizes antecipadas de vontade, isso porque sua aceitação está assentada no princípio da dignidade humana e, além deste, no princípio da autonomia privada e nos princípios bioéticos da beneficência e justiça[10].

A dignidade humana, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, “independe das circunstâncias concretas, sendo algo inerente a toda e qualquer pessoa humana, de tal sorte que todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade[11]”. O princípio bioético da beneficência dispõe que, “de modo geral, sejam atendidos os interesses importantes e legítimos dos indivíduos e que, na medida do possível, sejam evitados danos[12]”. O princípio da autonomia determina o limite da liberdade de escolha de cada um, exigindo equidade na distribuição de bens e benefícios no que se refere ao exercício da medicina ou área da saúde[13].

Possibilidade jurídica do testamento vital
No Brasil, quanto aos atos jurídicos, não vigora o princípio da tipicidade; assim os particulares detêm ampla liberdade para instituir categorias de negócios não contemplados em lei, desde que não haja afronta ao ordenamento.

Essa liberdade foi reconhecida pelo Conselho de Justiça Federal, na V Jornada de Direito Civil, com o enunciado nº 527, que assim estatui: “é válida a declaração de vontade, expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’ em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade”. Na justificativa apresentada pelo enunciado explica-se que o negócio jurídico que deve ser formalizado por testamento ou qualquer outro documento autêntico – é possível valer-se dessa disposição do art. 1.729, § único para admitir qualquer documento autêntico no sentido de retratar as declarações sobre o direito à autodeterminação da pessoa quanto aos tratamentos médicos que deseja submeter ou recusa expressamente.

A Lei Estadual 10.241, de 17/03/1999, dispõe sobre os direitos dos usuários dos serviços e das ações de saúde no Estado. Referida norma buscou tutelar o direito do paciente escolher livremente seu caminho, no caso de doença terminal ou irreversível, com base no princípio da dignidade humana, que, conforme exposto, deve ser considerado em todas as etapas da vida e até mesmo em seu termo final.

O Código de Ética Médica (Resolução 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina), no seu art. 41, veda expressamente ao médico abreviar a vida do paciente, mesmo a pedido deste próprio ou algum familiar. Todavia, no seu parágrafo único dispõe que, nos casos de doença incurável e terminal, o médico deve oferecer todo tipo de cuidado disponível, sem, no entanto, utilizar-se de ações diagnósticas ou terapias inúteis ou obstinadas, considerando sempre o desejo expresso do paciente ou, na impossibilidade, de seu representante legal.

Pelo exposto, não caracteriza ato ilícito dispor acerca do tipo de tratamento aceito ou não em caso de doença irreversível e terminal; até mesmo porque não se discute a abreviação ativa da vida – eutanásia –, mas apenas expressa a recusa de terapias que não levem à cura, prorrogando inutilmente um sofrimento pelo qual não se deseja passar. Pretende-se, viabilizar a ortotanásia – que é a morte digna, sem intervenção médica – afastando-se a distanásia – que é o uso de terapias e tratamentos iníuteis à cura do paciente.

Para a elaboração das diretivas antecipadas de vontade, não é necessário que a pessoa encontre-se com doença terminal no momento da declaração; basta que disponha no documento sobre como quer ser tratada no futuro caso encontre-se inconsciente por motivo de doença sem possibilidades de cura ou por decorrência de acidente cujo trauma acarrete situação de morte iminente e irreversibilidade do quadro clínico (chamada morte encefálica).

O art. 5º, II da Constituição Federal, assegura a autonomia privada, pelo princípio da ampla legalidade, segundo o qual: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Desse modo, todas as pessoas maiores e capazes são livres para decidir sobre suas pretensões, expressando sua vontade desprovida de qualquer coação, não dependendo esta pretensão de qualquer forma especial, senão quando a lei expressamente exigir (art. 107, Código Civil).

Flávio Tartuce explica que, a partir da autonomia privada, que decorre dos princípios constitucionais da liberdade e dignidade, admite-se a disposição de vontade no sentido de recusa a tratamentos que gerem sofrimentos físicos e psíquicos, tratando-se de exercício admissível da vontade humana[14].

Instrumento possível
Pelas considerações, verificou-se que o testamento vital é juridicamente possível no Brasil, mesmo sem a existência de legislação específica, desde que tratado como declaração de vontade e não como testamento, observados os requisitos de existência e validade dos demais atos e negócios jurídicos nos termos do Código Civil.

O princípio da dignidade da pessoa humana fundamenta o direito a uma morte íntegra para qualquer pessoa. Aquele que se encontra com doença incurável e esteja em sua plena consciência pode determinar onde e como deseja passar seus últimos dias de vida.

Conclui-se que as diretivas antecipadas de vontade são disposições lícitas e independem de norma específica que determine sua validade e efeitos jurídicos, sendo plenamente possível sua confecção e eficácia por se tratar de garantia de direito essencialmente humano, independente de positivação.

Assim destaca-se o título do presente trabalho: testamento vital e o direito à dignidade na vida e na morte; retrata a possibilidade de dispor sobre um momento tão delicado e desconhecido para qualquer ser humano, devendo ser viabilizado sem empecilhos, por se tratar de uma inquietude tão tipicamente humana.

[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...). – art. 5º da Constituição Federal brasileira.

[2] Patient Self Determination Act of 1990 (Introduced in House) - HR 5067 IH - 101st Congress - 2d Session. In: http://www.testamentovital.com.br/pais.php?cod_pais=5. Acessado em: 9/12/2013. Essa noção leva em conta o conceito de testamento vital fornecido por Cármen Lúcia Antunes Rocha, ― Vida digna: direito ética e ciência (os novos domínios científicos e seus reflexos jurídicos). In: Cármen Lúcia Antunes ROCHA (Coord.), O direito à vida digna, Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 170).

[3] Ley nº 41/2002. In: http://www.testamentovital.com.br/pais.php?cod_pais=4. Acessado em: 9/12/2013.

[4] Loi n° 2005-370 du 22 avril 2005 parue au JO n° 95 du 23 avril 2005 (rectificatif paru au JO n° 116 du 20 mai 2005). In: http://www.senat.fr/dossier-legislatif/ppl04-090.html. Acessado em: 9/12/2013.

[5] TARTUCE. Flávio; SIMÃO José Fernando. Direito Civil – Direito das Sucessões. 5ª ed.. São Paulo: Método, 2012, vol.6.

[6] Artigos 1.862 e seguintes, do Código Civil.

[7] TARTUCE. Flávio. Op. cit.

[8] Entrevista ao Jornal do Notário. Disponível em http://blog.26notas.com.br/?p=1150. Acesso em 16 de abril de 2012.

[9] FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. Artigo “Testamento vital ou DAV?”. In: http://www.26notas.com.br/noticias/lista_noticias.faces. Acesso em: 13/4/2012.

[10]Princípios da Bioética. In: http://www.silviamota.com.br/enciclopediabiobio/artigosbiobio/principiosdabioetica.htm. Acesso em: 19/03/2012.

[11] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

[12] Princípios da Bioética, Dra Laís Záu Serpa de Araujo, Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas, Disciplina de Bioética. In:http://www.nhu.ufms.br/Bioetica/Textos/Princ%C3%ADpios/Aula%2002%20Principios%20da%20Bioetica.pdf. Acessado em: 9/4/2012.

[13] Princípios da Bioética, Dra Laís Záu Serpa de Araujo, Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas, Disciplina de Bioética.

[14] TARTUCE. Flávio; SIMÃO José Fernando. Op. cit..

Fonte: Revista Consultor Jurídico