Sri Lanka consegue até 'exportar' córneas para países muçulmanos; doadores adotam princípios do budismo.
Para restaurar a visão de pessoas com olhos danificados, médicos costumam recorrer ao transplante de córnea - a camada transparente que cobre a íris e a pupila.
Há escassez mundial desses órgãos, mas um país, o Sri Lanka, busca suprir a demanda de outras nações sem esperar nenhum tipo de recompensa - pelo menos não nesta vida.
Conheça o caso de Paramon Malingam. Esse comerciante da região central do Sri Lanka fez um transplante e seu olho direito ainda está coberto por curativos.
"Pensei que iria passar o resto da vida só com um olho", diz, emocionado.
Maligam cortou o olho com um cabo de aço. No ano passado, feriu o mesmo olho com um pedaço de madeira. Após os dois acidentes, um transplante de córnea salvou sua visão.
O caminho do transplante
A córnea é um tecido transparente na parte da frente do olho que deixa a luz entrar e ajuda a focalizar imagens na retina. Quando ela é danificada por ferimento ou doença, a visão da pessoa se deteriora. Alguns casos podem evoluir para cegueira.
O transplante costuma ser a única solução nesses casos, mas em muitos países faltam doadores - situação agravada pelo fato de córneas terem vida útil reduzida.
É preciso retirá-las poucas horas após a morte do doador, e o tecido deve ser implantado em até quatro semanas, dependendo do método de estocagem.
No Brasil, há 12.547 pacientes esperando por transplante de córnea, segundo dados do Ministério da Saúde. Em 2015, o país realizou 13.776 desses procedimentos - um pequeno aumento, de 2,3%, em relação ao ano anterior.
Doador e receptor
Malingam esperou quatro dias pela nova córnea e se recupera da cirurgia no principal hospital oftalmológico de Colombo, capital do Sri Lanka.
"Depois da cirurgia, renasci para o mundo", afirma.
A poucos metros da ala em que Malingam está internado, a estudante Viswani Pasadi se prepara para um tipo diferente de renascimento. Ela preenche um formulário do Banco Nacional de Olhos para se registrar como doadora de córneas.
Como a maioria dos cingaleses, que são 75% da população do Sri Lanka, Pasadi é budista e acredita no ciclo de nascimento, morte e renascimento. Ela vê a doação como uma espécie de investimento no futuro.
"Se doar meus olhos nesta vida, terei visão melhor na próxima", diz.
A contabilista Preethi Kahlewatte segue a mesma filosofia de vida e também se registrou como doadora.
"As coisas boas que fazemos nesta vida levaremos para a próxima. Quando a pessoa precisa de algo, gostamos de doar. Sem mãos, podemos trabalhar. Sem pernas, podemos trabalhar. Sem olhos, o que podemos fazer?", questiona.
De acordo com a Sociedade de Doação de Olhos, uma organização sem fins lucrativos fundada no Sri Lanka em 1961, um em cada cinco cingaleses já prometeu doar as córneas.
A estimativa não inclui os doadores que, como a estudante Pasadi, se inscreveram no Banco Nacional de Olhos, uma nova instituição aberta há cinco anos.
"Parece que eu assinei um certificado para cada ser humano no Sri Lanka", diz o diretor médico da Sociedade de Doação de Olhos, Siri Cassim. O trabalho do diretor inclui assinar cada certificado entregue a famílias de doadores.
Exportando o excedente
A boa vontade dos cingaleses em doar as córneas faz com que o país colete mais do que precisa, o que permite o envio do excedente a outros países.
Fundador da Sociedade de Doação de Olhos, o médico Hudson Silva, morto em 1999, iniciou este processo em 1964 enviando córneas em embalagens cheias de gelo geralmente usadas para chá. Elas iam como bagagem de mão em voos para Cingapura.
Em 2014 a Sociedade de Doação de Olhos exportou 2.551 córneas: mil para a China, 850 para o Paquistão, 250 para a Tailândia e 50 para o Japão.
A fama do país como grande doador de córneas se deve, em grande parte, à iniciativa de Silva.
Ele fez o primeiro apelo por doações quando ainda era estudante, em 1958. Em artigo de jornal escrito com a mulher e a mãe, ele pedia que os cingaleses dessem "vida a um olho morto".
As primeiras córneas que recebeu foram guardadas na geladeira de casa, ao lado de ovos e manteiga.
Em 1960, a mãe de Silva morreu e ele chamou a atenção do país ao transplantar as córneas a um fazendeiro pobre, que assim recuperou a visão.
Monges budistas também tiveram um papel importante ao estimular as doações e classificar essas atitudes como atos de generosidade, ou "dana", que contribuem para a reencarnação em uma vida melhor.
Kiribathgoda Gnanananda Thero, fundador do monastério budista Mahamevnaw, no Sri Lanka, conta uma história do Jataka, um livro antigo de poemas sobre vidas passadas de Buda.
"Na vida anterior de Buda, ele se transformou em rei. Um mendigo cego foi ao palácio e pediu: 'Rei, me dê seus olhos'. Então ele (Buda) decidiu dar os olhos", diz o monge. Segundo a história, a operação foi feita, e o mendigo recuperou a visão.
"Ouvimos este tipo de história de geração em geração. Então somos muito estimulados a dar nossas partes do corpo para os outros", afirma Thero.
O próprio monge já doou um rim para uma mulher com problemas renais.
Os certificados entregues pela Sociedade de Doação de Olhos a quem promete doar as córneas mencionam um ensinamento budista. "Deixe o doador ter um bom renascimento", diz o documento da instituição, que também acolhe doadores de outras religiões.
Proibição
Em países muçulmanos geralmente é proibido danificar um corpo humano antes ou depois da morte. Por isso nações muçulmanas acabam figurando entre os principais receptores - Paquistão e Egito recebem o maior número de córneas do Sri Lanka.
Malásia, Nigéria e Sudão também estão na lista dos 50 principais países receptores.
A córnea é um dos tecidos mais fáceis de transplantar pois não é necessária compatibilidade entre doador e receptor. É um tecido sem sangue que retira o oxigênio diretamente do ar.
Também é possível retirar a córnea de uma pessoa idosa e colocar nos olhos de uma pessoa mais jovem. Se o doador tiver mais de 80 anos há chance maior de a córnea não ser compatível - mas houve um caso de um monge budista de 86 anos que doou a córnea a um menino jordaniano de 9 anos.
Apesar disso, ao menos no Reino Unido, a córnea é o tecido que doadores mais tendem a excluir da lista de órgãos que estão aptos a doar - 11% do total, ante menos de 1%, por exemplo, que se recusam a doar os rins.
"Eu penso nessa imagem de alguém retirando meus olhos e isso mexe comigo", diz o inglês Cenay Said, assistente de câmera na indústria do cinema.
No Sri Lanka, não há problemas para famílias de doadores que querem um funeral com o caixão aberto, pois agências funerárias desenvolveram procedimentos específicos para estes casos.
A funerária Jayaratne, em Colombo, recebe seis corpos de doadores por mês.
"Os embalsamadores pegam duas bolinhas de algodão do tamanho dos olhos, embebem o material em líquido especial, colocam dentro das órbitas e usam um pouco de cola para fechar os olhos", diz Hasanga Jayaratne, diretor da funerária.
Desta forma, parentes e amigos podem ver as pessoas amadas pela última vez - até que a próxima vida comece.
Fonte: Globo.com
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.