Diante da recusa do procedimento, a família foi obrigada a assinar um termo de responsabilidade
Uma família de Testemunhas de Jeová impediu que uma mulher de 37 anos recebesse transfusão de sangue e a retirou da Santa Casa de Rio Preto. A paciente, que veio de Recife, estava com um mioma, que provoca sangramento no útero, e grau de anemia acentuado.
De acordo com o médico cirurgião geral do hospital, que atendeu a paciente e pediu para o nome não ser divulgado, a mulher passou por consulta, na clínica dele. “Eu não sei por que me procurou. A família disse que era do Recife e que os médicos não queriam operar a paciente lá. Olhei os exames e vi que o caso era grave.”
O médico aconselhou que a mulher fosse internada e operada, com urgência. “Enquanto ela era preparada para o procedimento, no centro cirúrgico, chegou o resultado do exame de sangue. Além do mioma, ela estava com uma anemia acentuada e precisava de transfusão de sangue”, conta o cirurgião geral.
A família foi comunicada pelo médico da necessidade da transfusão. Durante meia hora, eles discutiram sobre a necessidade do procedimento. “Eles disseram que não autorizariam a transfusão. Eu tentei convencer que o quadro clínico dela era grave e precisaria de sangue. Escutei de um dos parentes que ‘se for para morrer, é melhor que ela morra em casa, em nome de Jeová, mas não será feita a transfusão’.”
Diante da recusa do procedimento, a família foi obrigada a assinar um termo de responsabilidade. “Não deu tempo de transferir a paciente para outro hospital. Eles simplesmente pegaram a paciente e foram embora. Eu não podia fazer o procedimento sem a autorização da família, diante do fanatismo religioso da parte”, disse o médico.
Segundo o provedor da Santa Casa, Nadim Cury, o atendimento da paciente foi realizado no sistema particular. “Todo o dinheiro que foi pago pela internação e procedimento foi devolvido para a família. Essa situação é muito rara de acontecer. Não podíamos fazer nada diante do posicionamento deles”. O diretor não informou o valor pago.
O cirurgião geral do hospital registrou um boletim de ocorrência de “preservação de direito” e acusou a família de omissão de socorro. “Eu trabalho para salvar vidas e elas têm de estar acima de qualquer religião. Não podia fazer nenhum procedimento forçado, mas alertei que o caso era grave e que a paciente corria risco de morte. Não faço ideia de onde ela esteja nem se está viva. Espero que sim.”
Família
O Diário entrou em contato com um homem, que se apresentou como “irmão na fé” dos parentes da paciente. Identificado apenas como “Cavalcante”, ele era o único contato que constava no boletim de ocorrência registrado pelo médico na polícia. O homem, porém, não quis falar sobre o assunto. Disse, somente, que a família está empenhada no atendimento da mulher e que um novo médico já foi encontrado. Ele não disse em que hospital ela está internada.
Pacientes escolhem ‘morrer aos poucos’
O hepatologista Renato Silva, ouvido pelo Diário na condição de consultor, afirma que o médico da Santa Casa agiu de forma correta. “O profissional tem de sempre respeitar a autonomia do paciente e da família. Até porque, uma transfusão escondida poderia resultar em um transtorno para o paciente. Ainda mais quando se trata de um paciente Testemunhas de Jeová, em que a religião não aceita esse tipo de procedimento.”
Silva destaca que é muito comum pacientes Testemunhas de Jeová optarem pela recusa do tratamento. “No Hospital de Base já acompanhei diversos pacientes que escolheram morrer aos poucos ao invés de uma transfusão ou transplante. Essa decisão é uma autonomia do doente. O médico só tem o dever de aconselhar o melhor, mas não forçar a nada.”
O hepatologista explica que “é de direito do médico se recusar a fazer a cirurgia sem a transfusão. O profissional sabe qual a necessidade do paciente e se submeter a fazer uma cirurgia sem a transfusão seria um risco. Assim como o paciente pode escolher, o médico tem o mesmo direito. Agora, a família precisa encontrar o profissional que aceite fazer o procedimento sem utilizar o sangue.”
Médicos sim, sangue não
Para as Testemunhas de Jeová, a recusa à transfusão de sangue é mais uma questão religiosa do que médica. Tanto o Velho como o Novo Testamento da Bíblia prega, segundo eles, que se abstenham de sangue, segundo o site oficial da religião (http://www.jw.org/pt/). Além disso, eles entendem que para Deus o sangue representa a vida. Eles evitam tomar sangue, por qualquer via, não só em obediência a Deus, mas também por respeito a Ele como Doador da vida.
Diante desta linha de pensamento, as Testemunhas de Jeová optam por técnicas médicas que realizam tratamentos e cirurgias sem transfusão de sangue. Eles acreditam que os métodos desenvolvidos para atendê-los também estão sendo utilizados para beneficiar outros pacientes.
De acordo com o site da religião, diversos médicos em todo o mundo usam técnicas de conservação de sangue para realizar cirurgias complexas sem transfusão. “Essas opções terapêuticas são usadas até mesmo em pacientes que não são Testemunhas de Jeová e optam por evitar riscos decorrentes de transfusões, como doenças transmitidas pelo sangue, reações do sistema imunológico e erro humano.” Em algumas cidades, Testemunhas de Jeová formam uma Comissão de Ligações com Hospitais, para discutir os métodos utilizados durante os tratamentos.
Fonte: Diário Web
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.