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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Droga da USP não tem ação comprovada contra câncer; Anvisa diz que é ilegal

A substância fosfoetanolamina, distribuída na USP (Universidade de São Paulo) de São Carlos por supostamente ser capaz de curar o câncer, não tem comprovação de eficácia contra a doença. Além disso, a sua distribuição à população é ilegal, segundo a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

O UOL tentou contatos com a USP na capital paulista e em São Carlos (232 km de São Paulo) na manhã e tarde de quarta-feira (14) e na manhã e tarde desta quinta-feira (15), para explicar como a droga era fornecida para a população e responder à declaração da Anvisa, mas a universidade não se pronunciou. O pesquisador Gilberto Orivaldo Chierice, do Instituto de Química da USP de São Carlos, que fabricou e distribuiu o composto por anos, também não foi encontrado pela reportagem nos telefones celular e residencial.

A substância não pode ser considerada um remédio porque não foi testada oficialmente em humanos, passo essencial para que um composto em estudo comprove que funciona, é seguro e não tem efeitos colaterais. Pessoas recebiam as cápsulas com a fosfoetanolamina, mas, até onde se sabe, não eram acompanhadas para verificar esses parâmetros.

As pesquisas documentadas foram feitas com animais e células humanas in vitro, primeiros passos de qualquer estudo científico. Mas ainda são necessárias várias etapas de estudo para comprovar que ele realmente tem alguma função no tratamento do câncer. A cura seria um passo além.

Sem um estudo oficial, registrado pela Anvisa, a entrega de cápsulas contendo fosfoetanolamina sintética para fins medicamentosos infringe a lei 6.360/76, segundo a agência. A lei impede a entrega, a venda e industrialização de medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos para consumo sem o registro da agência.

"A comercialização, bem como a exposição do produto fosfoetanolamina, estaria em desacordo ao que prevê a Lei nº. 6.360/76, que em seu artigo 12 dispõe:"...nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado...", citou em nota técnica enviada ao UOL.

A Anvisa chama a entrega de "prática irregular segundo os princípios de segurança adotados pelas principais agências reguladoras de medicamentos do mundo".

Contra a lei
"No caso da fosfoetanolamina, a Anvisa não recebeu qualquer pedido de avaliação para registro desta substância, tampouco pedido de pesquisa clínica, que é a avaliação com pacientes humanos. Isto significa que não há nenhuma avaliação de segurança e eficácia do produto realizada com o rigor necessário para a sua validação como medicamento", citou na nota.

No entanto, desde que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reconsiderou a decisão que proibia a distribuição para alguns pacientes após liminar do STF (Supremo Tribunal Federal), pacientes e parentes formam filas na sede do campus atrás da substância entregue gratuitamente dada a apresentação das liminares (mais de 700 já foram concedidas em primeira instância).

A distribuição das cápsulas era feita livremente na universidade até uma portaria da USP de 2014, baseada na lei 6.360/76, proibi-la. No entanto, não se sabe por que a USP autorizou a distribuição por tanto tempo da droga, o que sempre foi ilegal pela lei.

Depois da decisão judicial, a USP e o Instituto de Química de São Carlos emitiram notas afirmando que a droga não é um medicamento e que as cápsulas só seriam entregues para quem apresentasse a liminar. De acordo com a IQSC, o estudo capitaneado pelo professor aposentado Cherice foi feito de forma independente por ele. A USP afirmou em nota que os mandados judiciais serão cumpridos, dentro da capacidade da universidade.

"Ao mesmo tempo, a USP está verificando o possível envolvimento de docentes ou funcionários na difusão desse tipo de informação incorreta. Estuda, ainda, a possibilidade de denunciar, ao Ministério Público, os profissionais que estão se beneficiando do desespero e da fragilidade das famílias e dos pacientes", escreveu em nota.

Segundo o advogado Tiago Matos, diretor jurídico do Instituto Oncoguia, se comprovado que a USP cometeu um ato ilegal, contrariando a legislação, ela pode ser responsabilizada por isso. "Pode ser punição administrativa, criminal, mas quem vai punir é outra história. É delicado", diz.

Droga sem ação comprovada
A declaração da Anvisa vem ao encontro com a de oncologistas que também afirmaram não haver evidências científicas que comprovem que a droga cura o câncer. Isso porque a substância sequer foi testada em humanos. "É fundamental que sejam feitos estudos controlados em humanos para definir a eficiência, a dose ideal e a segurança de um remédio antes de ele ser usado pela população, o que não ocorreu na pesquisa com o composto de São Carlos", aponta Maria Del Pilar Estevez Diz, coordenadora de oncologia clínica do Icesp (Instituto do Câncer de São Paulo).

"Qualquer fármaco que venha a ser usado em pessoas precisa passar por essas etapas. Essa é uma questão fundamental. É no estudo clínico que se tem uma posição mais clara de quais são os benefícios e quais são os riscos do medicamento", explica a oncologista.

Para Gustavo Fernandes, presidente eleito da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, usar uma droga que foi testada somente em animais (diga-se aqui, camundongos) é "altamente perigoso" porque não se sabe sequer se pode melhorar ou piorar a saúde de quem já está doente.

"É muito difícil partir de dados pequenos em animais para uso populacional. É altamente perigoso. Se a população usa essa droga e ela for deletéria, como a gente vai saber? E vai comparar com o que?", questiona.

Butantan testa em células humanas
Outras pesquisas feitas com a fosfoetanolamina no Instituto Butantan, em São Paulo, testam a substância em tumores de células de mama, de fígado, do pâncreas e dos rins com resultados promissores, segundo o biomédico Durvanei Maria, do laboratório de Bioquímica e Biofísica do Instituto.

"Não tenho dúvida que a fosfoetanolamina é eficaz. Ela impede a proliferação de células tumorais, mecanismo conhecido como morte celular programada já que não destrói as células normais, não altera o funcionamento de órgãos e do sistema imunológico", diz o biomédico.

A maioria dos testes ainda é feito em ratos e camundongos, mas células de humanos já estão sendo testadas e apresentam resultados semelhantes, diz Maria. O objetivo agora, segundo ele, é começar com os testes clínicos. Para isso, se juntou a um grupo de cientistas que se mobilizou para regularizar o uso da droga na Anvisa e nas comissões de ética médica. Diferentemente da USP, a equipe do biomédico não produz cápsulas.

Trocar de tratamento é perigoso
O presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica diz entender o "desespero" de pessoas que não vêm mais resultados no tratamento contra o câncer, mas qualquer médico só pode receitar medicamentos cuja eficácia já tenha sido comprovada por determinação do Conselho Federal de Medicina.

"Se houvesse qualquer dado científico que dissesse que essa droga traria benefícios aos humanos, eu poderia considerar o uso. Mas não há nada na literatura sobre isso, então não posso recomendar. Posso dizer que vi alguns pacientes usarem, e não tive percepção de benefício ou malefício, mas isso é uma percepção, não Ciência, então não valida nada", diz.

Segundo a oncologia clínica do Icesp, deixar o tratamento convencional para adotar o que parece milagroso não é indicado porque pode alterar o resultado do tratamento ou mesmo piorar a saúde já que faltam evidências de que a droga alternativa é realmente eficaz.

"Tem que tomar cuidado já que todas as intervenções podem ter riscos e efeitos colaterais, inclusive as medicamentosas e até de produtos naturais que podem alterar o metabolismo ou os efeitos do tratamento. Os pacientes que estão em tratamento cuja indicação é clara, que temos a ideia do que pode ser esperado, seja de benefícios e de eventos adversos, devem manter esse tratamento", afirma.

Há interferência da indústria farmacêutica?
Os dois especialistas não acreditam na hipótese levantada nos últimos dias de que a substância não é usada em larga escala por interferência da indústria farmacêutica.

"A indústria farmacêutica tem o objetivo de dar lucro e sempre que houver um produto promissor ninguém é mais interessado do que ela. Não existe uma pílula mágica, mas um conjunto de intervenções. Seria ótimo se tivéssemos um medicamento, mas o mecanismo da doença é muito complexo, não é um lobby, é uma dificuldade da Ciência em fazer isso, mas estamos progredindo muito nos últimos anos", afirma Pilar.

Já para Fernandes não há com crer que apenas uma medicação pode curar todos os tipos de câncer porque os genes ativados podem ser diferentes em cada órgão. Da mesma forma que não crê em teorias que acreditam que a cura é escondida porque a doença 'dá mais lucro'. "Não acredito que quem teria a cura de uma doença que mata mais do que guerra mundial esconderia isso por muito tempo. Se existisse, Hitler seria uma pessoa bacana perto dessa ai", completa Fernandes.

Os pesquisadores da USP São Carlos afirmaram que patentearam a substância para que ela não seja usada pela indústria, que buscaria lucrar com ela. Também foi levantada a hipótese de que as farmacêuticas estariam impedindo o teste em humanos, junto à Anvisa. Mas, segundo o órgão, não há necessidade de intervenção da indústria farmacêutica para a realização de estudos clínicos. Se uma universidade tiver condições de fazê-lo, basta contatar a agência e mostrar a documentação adequada. "A USP de São Carlos nos procurou para dar detalhes sobre o processo, mas nunca fez o pedido para realizar os testes clínicos, o que é diferente", informou a agência.

Se é ilegal, porque a Justiça autoriza?
A pergunta que fica é: por que a Justiça libera o uso se a lei comprova a ilegalidade?

A resposta está na interpretação do juiz que pode optar pelo direito à saúde e à vida garantidos na Constituição ou pela legalidade do ato, que em situações de vida ou morte tende a ficar em segundo plano, explica o advogado do Instituto Oncoguia.

"Há duas correntes de pensamento entre os juízes. Alguns entendem que havendo uma prescrição, a expertise do médico dá crédito e o judiciário se posiciona a favor. Contudo, há alguns que se posicionam com mais cautela e, por não ter registro e prova de eficácia e segurança, não validam a decisão", explica.

No entanto, Matos crê que a liberação de drogas sem registro e sem estudos clínicos pode "abrir brechas perigosas para a sociedade".

"Isso é temerário porque pode abrir brechas para situações além da fosfoetanolamina em casos que podem beirar o charlatanismo, como dizer que chá de cogumelo é bom. Isso pode ser muito perigoso para a sociedade", afirma.

Fonte: UOL (Camila Neumann)