Por Mauro César Bullara Arjona
O aborto de feto anencéfalo voltará a ser discutido pelo Supremo Tribunal Federal, segundo a pauta do tribunal constitucional. Atualmente, a legislação brasileira autoriza o aborto em duas hipóteses (aborto legal): quando houver risco de vida da gestante e gravidez resultante de estupro.
A anencefalia, sob o ponto de vista médico, é caracterizada pela ausência total ou parcial do cérebro do feto, porém, na prática, é leigamente tratada como toda má-formação cerebral.
Em nenhum destes casos esta patologia é considerada justificativa legal para a prática do aborto. Se analisarmos a letra fria da lei, a mãe teria que aguardar o aborto espontâneo ou ficar os nove meses de gestação com a criança que sabe possuir nenhuma ou poucas chances de vida extra-uterina. Nos casos de anencefalia, a expectativa de vida, quando houver, é sempre muito curta e o grau da anencefalia apenas vai determinar quão curta será essa expectativa. É justamente essa “tortura psicológica” que fez iniciar a discussão do procedimento abortivo nestes casos.
É fato que a lei não ampara esta hipótese, mas também é verdade que nos tribunais não são poucos os juízes que autorizam a prática, justamente em nome da saúde psicológica da mãe e de princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde. Pesam argumentos contrários de natureza religiosa, uma vez que, tecnicamente, é indiscutível que a vida após o nascimento é absolutamente inviável.
A fé de cada pessoa deve ser respeitada e há de ser garantida pela lei, porém, será que teria força suficiente para justificar o sofrimento exacerbado de um ser humano num Estado Democrático de Direito?
Ao estabelecer possibilidades de aborto legal, o Código Penal, em 1940, pensou nas hipóteses que se apresentavam ao legislador à época, ou seja, da gravidez violenta e risco de vida da mãe. É claro que já existia a anomalia cerebral em 1940, mas não passava pela cabeça do legislador a possibilidade de se antevê-la com segurança inquestionável durante a gestação.
Toda a discussão se resume a se permitir ou não que a mãe pratique a antecipação terapêutica do parto (aborto) para diminuir ao máximo o seu sofrimento, afinal passar nove meses gestando seu filho que irá morrer logo após o nascimento causa traumas enormes e, por vezes, irremediáveis.
A falta de legislação aplicável já foi enfrentada em outros casos de aborto como, por exemplo, o resultante de atentado violento ao pudor (a lei menciona apenas estupro), prática sexual violenta cujos anais da medicina, à época da elaboração do Código Penal, não indicavam ser possível, ou provável, engravidar a vítima. Como o legislador unificou os crimes de atentado violento ao puder e estupro neste último, não há mais o que se discutir.
A exata dimensão do que significa a gravidez de um filho anencéfalo só pode ser dada pela mãe. Acredito que nem o pai tenha esta condição, embora não desconsidere o seu sofrimento, o trauma pelo qual passa e sua opinião a respeito da decisão de interromper a gestação. Porém, a meu ver, será a mãe, e somente ela a pessoa que poderia decidir se deve ou não manter a gestação até o seu final.
Não me parece justo ou correto, conceitos diferentes, o Estado obrigá-la a continuar sua gestação contra a sua vontade, fazendo com que ela passe pelo drama de cultivar a vida que não se sustentará fora de seu útero. A mim me parece antagônico a medicina avançar a ponto de se descobrir uma doença em um feto e a lei não permitir que a mãe, caso deseje, tome uma medida que preserve a sua saúde mental e evite tamanho sofrimento.
Ao STF foi incumbida a missão de dizer se o Estado Brasileiro pode exigir este sacrifício da mãe, em detrimento do mal que possa sobrevir em virtude desta gestação traumática.
Fonte: Conjur
Espaço para informação sobre temas relacionados ao direito médico, odontológico, da saúde e bioética.
- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.