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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

sábado, 26 de março de 2011

Condenção pela teoria da perda de uma chance

“A perda de uma chance de 7% a 18% de cura não poderia ter sido sonegada ao paciente.”

AÇÃO ORDINÁRIA (PROCEDIMENTO COMUM ORDINÁRIO) Nº 2009.71.00.004420-5/RS AUTORA : A.C.
ADVOGADO : PRISCILA FETTERMANN MACIEL
RÉU : HOSPITAL DE CLÍNICAS DE PORTO ALEGRE
ADVOGADO : JAIRO HENRIQUE GONCALVES
: MAURO ALMEIDADE BARROS

SENTENÇA
RELATÓRIO
Trata-se de ação de rito ordinário, proposta inicialmente perante a Justiça Estadual, por meio da qual a autora busca a condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais e materiais, em virtude do tardio diagnóstico do câncer de que sofria seu pai, Sr. V.C., fato de que, segunda alega, resultou a morte deste, ocorrida em 25.10.2006.
Narra a autora que seu pai procurou atendimento junto ao hospital réu reiteradas vezes, a partir de 26.09.2003, obtendo sempre o diagnóstico de cistite glandular. Afirma que somente em 28.06.2005,com a realização do exame do perfil imuno-histoquímico, foi constatado que seu pai sofria de neoplasia maligna da próstata, o que acabou levando-o à morte. Sustentou a aplicabilidade, ao caso, do Código de Defesa do Consumidor. Asseverou que a responsabilidade do réu é objetiva. Relatou ter gastado R$ 1.486,86 (mil e quatrocentos e oitenta e seis reais e oitenta e seis centavos) com certidão de óbito, caixão e sepultamento, valores que pretende reaver a título de danos materiais. Estimou os danos morais em 500 salários mínimos.
Citado, o réu contestou. Preliminarmente, arguiu a incompetência absoluta do Juízo Estadual, por se tratar, o réu, de empresa pública federal. No mérito, afirmou que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica ao caso. Relatou as diversas etapas do tratamento a que se submeteu o pai da autora.
Asseverou que lhe foi dado "todo tratamento possível". Disse que, além do câncer de próstata, o pai da autora também tinha sua saúde debilitada pelo tabagismo e pelo etilismo, apresentando "DBPOC e asma brônquica". Alegou que não houve perda de chance de sobrevivência, pois não há comprovação de que o pai da autora tivesse chance de cura. Sustentou que, por se tratar de responsabilização por ato omissivo, sua responsabilidade é subjetiva. Por fim, afirmou que o valor estipulado pela autora
como devido pelo dano moral não é razoável (fls. 130/138).
A autora replicou às fls. 286/295.
O Juízo Estadual acolheu a alegação de incompetência absoluta e determinou a remessa dos autos à Justiça Federal (fl. 296).
Distribuídos os autos a este Juízo, foi determinada a intimação das partes, para que dissessem as provas que pretendiam produzir (fl. 299).
A autora requereu a realização de perícia e a oitiva dos médicos que atenderam seu pai (fls. 301/302).
O réu requereu a realização de perícia (fl. 305).
Foi deferido o pedido de produção de prova pericial, ficando postergada a apreciação do pedido de produção de prova testemunhal (fls. 306/306v).
Foi juntado aos autos o laudo pericial (fls. 330/344). As partes se manifestaram sobre o laudo (fls. 345/346 e 348).
Foi realizada audiência, em que foi ouvida uma testemunha, arrolada pela autora (fls. 362/363).
As partes apresentaram memoriais (fls. 365/374 e 377/380).

É o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO
Da impugnação ao perito
Em seus memoriais (fls. 366/374), a parte autora requer "que a presente perícia seja descartada", devido ao fato de o perito ter realizado especialização junto ao hospital réu.
Não conheço da alegação, porquanto o meio processual correto para apresentá-la seria a arguição de suspeição, o que deveria ter sido feito logo após a nomeação do perito, e não no momento de apresentação de alegações finais. Ademais, não foi apontada, pela parte, qualquer uma das hipóteses do artigo 135 do CPC.
De qualquer sorte, é importante frisar que o fato do perito ter feito especializado na instituição ré não o torna parcial, por si só. É natural que o estudo especializado concentre-se em determinadas instituições médicas. Abrir mão disso significa abrir mão de qualidade da perícia. Veja-se que na verdade a alegação da autora tem mais a ver com a insatisfação com o resultado da perícia do que com séria alegação de suspeita, pois a alegação foi feita somente depois de conhecer o resultado.
Finalmente, este Juízo depara-se com uma perícia muito bem feita, bem escrita, objetiva e clara, fundamentada nos documentos trazidos aos autos e em considerações técnicas sobre os diagnósticos utilizados, nada indicando desvio de conduta por parte do profissional, senão zelo, dedicação e profissionalismo.

Do dano moral.
O HCPA é pessoa jurídica de direito público, e nessa qualidade, nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição da República, está sujeito à responsabilidade objetiva, ainda mais em se tratando de prestação estatal de serviço público de saúde, no âmbito do SUS.
Todavia, uma responsabilidade objetiva ampla, com prova apenas de que o tratamento oferecido não obteve sucesso, não é condizente com a realidade do ato médico, seja ele prestado sob regime privado ou sob regime público.
A responsabilidade objetiva do hospital - quanto imputado defeito no tratamento fornecido por médicos integrantes do seu corpo clínico -, submete-se ao regime de responsabilidade dos atos médicos em geral - a obrigação não é de resultado, ou seja, de garantir a cura, senão de meio, ou seja, de empregar técnica e métodos adequados para o sucesso do tratamento.
Com efeito, o Estado, ao prestar serviços de saúde, não tem a pretensão de assumir um risco geral em relação à prestação de serviços de saúde, eliminando qualquer risco e garantindo sempre o resultado.
Assim, em se tratando de pedido de indenização por tratamento médico mal-sucedido, ainda que em hospital público, o Estado será responsabilizado apenas se for comprovado que o serviço médicohospitalar não funcionou ou funcionou tardia ou ineficientemente (nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, Revista dos Tribunais, 15ª ed., 2003, p. 871-872; Carlos Mário da Silva Velloso, responsabilidade civil do Estado in Temas de Direito Público, Livraria Del Rey Editora, 1ª ed., 1997, p. 497).
No caso dos autos, segundo atesta o laudo pericial, o pai da autora compareceu ao hospital do réu pela primeira vez em 05.09.2003 "com histórico de urgência para urinar, micção freqüente e ardência miccional há um ano. Teve também sangramento urinário 4 meses antes desta consulta e foi tratado como infecção urinária. Nesta consulta queixava-se de dor na bexiga".
Ainda segundo o laudo, nesta ocasião foi solicitada uma cistoscopia, realizada em 10.09.2003, "que demonstrou próstata obstrutiva com pseudovertículo da bexiga" (...) "e uma área avermelhada na bexiga que foi biopsiada".
Prossegue o laudo: "Na consulta seguinte (26/09/2003), diante do quadro de obstrução de próstata foi medicado para tal e agendado retorno para 16/01/2004. Nesta consulta, o Sr. V. referiu que não havia melhorado. Foi realizado o toque retal que demonstrou assimetria e aumento da consistência de um dos lobos, alterações estas suspeitas de malignidade. Foram solicitados exames". "Um dos exames solicitados foi um marcador da próstata (PSA) que estava muito alterado (6 vezes o nível esperado), o
que praticamente confirmou o diagnóstico do câncer de próstata. A biópsia realizada em 23/06/2004 confirmou a doença" (grifou-se). O exame "marcador de PSA foi realizado em 02/04/2004 (fl. 338) e praticamente confirmou o diagnóstico de câncer de próstata, conforme o perito concluiu - fl. 339.
Vê-se, assim, que entre a segunda consulta (26.09.2003) e a terceira (16.01.2004), na qual surgiu a suspeita de câncer, transcorreram quase quatro meses, demora que não se afigura adequada, diante da gravidade do quadro. Observe-se que a parte ré, em suas manifestações, não esclareceu qual seria a justificativa médica para se aguardar 4 meses para a próxima consulta.
Posteriormente, mesmo já havendo a suspeita de câncer, a biópsia em que a doença foi confirmada somente foi feita em 23.06.2004, cinco meses depois - fato para o qual o réu, novamente, não deu qualquer justificativa médica.
Após o diagnóstico definitivo de câncer, infelizmente ocorreu um fato especialmente relevante para o deslinde da controvérsia.
Segundo narra o laudo: "O paciente retorna em 17/08/2004 para saber do resultado da biópsia. Está registrado que houve demora no atendimento e/ou paciente não quis aguardar. Perdeu contato com a entidade, somente retornando 7 meses após. Provavelmente o paciente não ficou sabendo do seu diagnóstico em virtude da não efetivação desta consulta" (grifou-se). Conforme registrado À fl. 334, a consulta estava agendada para as 17h30min e o paciente não quis aguardar além de 18h15min.
Ou seja: mesmo já havendo o diagnóstico definitivo de câncer, o paciente não ficou sabendo do resultado da biópsia, o que retardou em mais sete meses o início de seu tratamento. Independente do motivo para não ter sido realizada a consulta - demora no atendimento ou recusa do paciente em esperar -, é certo que o hospital, diante de tão grave diagnóstico, não poderia ter simplesmente esperado que o paciente comparecesse novamente. É possível que, por ignorância ou outro motivo, o paciente não tivesse a noção de que deveria comparecer ao hospital para saber seu diagnóstico. Cabia ao hospital, que já estava na posse do diagnóstico de câncer e sabia da gravidade da situação, entrar em contato com o paciente para lhe informar da situação. Contudo, não consta dos autos - e sequer foi alegado pela parte ré - que tenha sido realizada qualquer tentativa de contatar o pai da autora.
É inegável, portanto, que, ainda que todas as decisões médicas tenham sido corretas, o início do tratamento sofreu considerável demora, demora esta que pode ser atribuída ao réu: quatro meses entre a segunda e a terceira consultas, cinco meses entre a segunda consulta e a realização da biópsia e, por fim, sete meses em que o hospital, já de posse do diagnóstico de câncer definitivo, não procurou o paciente para lhe dar a informação. O perito analisou as probabilidades de tratamento do paciente caso tivesse havido o diagnóstico precoce do câncer de próstata - quatro meses antes (caso o toque retal tivesse sido realizado na 1ª ou na 2ª consulta, não por suspeita objetiva da doença, mas por rastreamento). A chance de doença confinada (ótima possibilidade de cura) era de 7 a 18%, no momento do diagnóstico (abril de 2004), em relação à de doença avançada ou metastática (baixa possibilidade de cura). Conforme o perito, se tivesse havido o diagnóstico sete meses antes (em setembro de 2003), o prognóstico do paciente não mudaria, pois o PSA indicaria uma evolução rápida e, portanto, um câncer extremamente agressivo e com poucas chances de cura.
Quanto à ocorrência do dano, o perito, em seu laudo, afirmou que "não acredito que o diagnóstico antecipado em 4 meses (toque retal antecipado) melhoraria o prognóstico do autor" (fl. 341).
Contudo, deve-se ponderar que, ao fazer sua análise, o perito levou em consideração somente a demora entre a segunda consulta e a terceira, não levando em consideração o período transcorrido até a realização da biópsia e, após, até que o autor ficasse sabendo de seu diagnóstico.
De todo modo, mesmo que as chances de cura fossem pequenas, não se poderia negar, ao paciente, a possibilidade de tentar aproveitá-las. A perda de uma chance de 7% a 18% de cura não poderia ter sido sonegada ao paciente.
A autora, na qualidade de filha do paciente, acompanhou o tratamento do pai. Embora a única pessoa ouvida tenha sido o convivente, as informações sobre os laços entre o pai e a filha são fidedignos. O pai da autora estava desempregado, retornou de Santa Catarina para Porto Alegre, morou com a filha e posteriormente passou a frequentar a casa da filha e do companheiro. Assim, presume-se que o tratamento dispensado ao seu pai, com o diagnóstico tardio e a perda de uma chance de cura, seja evento capaz de causar à autora sofrimento psíquico e emocional, passível de indenização. Presente, pois, o nexo de causalidade e o dano.
A pequena extensão da possibilidade de cura, embora não afaste o dever de indenizar, deve ser levada em conta no momento da fixação do valor da indenização. Da mesma forma, o fato do paciente não ter aguardado a consulta também deve ser levado em consideração na fixação do valor da indenização.
Portanto, o valor da indenização deve ser fixado abaixo dos valores que comumente são fixados nos casos de indenização por dano moral decorrente da morte de familiar, razão pela qual entendo que o valor de R$40.000,00 (quarenta mil reais) afigura-se adequado para compensar o dano.

Do dano material
Na inicial, a parte autora requer também o pagamento de indenização por danos materiais, no valor de R$ 1.486,86 (mil, quatrocentos e oitenta e seis reais e oitenta e seis centavos), valores gastos com certidão de óbito, caixão e sepultamento.
A autora trouxe aos autos comprovantes dos gastos, juntados às fls. 22 e 24, os quais não foram impugnados na contestação.
Contudo, conforme já apontado acima, não há como imputar, ao réu, a responsabilidade integral pela morte do pai da autora, de modo que tampouco há como o condenar ao ressarcimento integral das despesas decorrentes do óbito.
Diante disso, entendo adequado que o réu pague, à autora, metade do valor das despesas.

DISPOSITIVO.
Ante o exposto, julgo parcialmente procedente o pedido, a fim de condenar o réu ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais), atualizados pelo ICPA-E desde a data desta sentença e acrescidos de juros de mora, de 12% ao ano, desde a data do óbito (25.10.2006), e de indenização por danos materiais, no valor de R$ 743,43 (setecentos e quarenta e três reais e quarenta e três centavos), corrigidos pelo IPCA-E a partir da data de cada pagamento, e acrescidos de juros de mora, de 12% ao ano, também desde 25.10.2006.
Nos termos do artigo 20, §4º, c.c. artigo 21, caput, do CPC, condeno a parte ré ao pagamento de honorários advocatícios à parte autora, fixados em 5% sobre o valor da condenação. Na fixação do percentual levei em consideração a parcial sucumbência da parte autora.
Sentença não sujeita a reexame necessário.
Havendo recurso(s) voluntário(s) tempestivo(s), tenha-se-o(s) por recebido(s) em seus legais efeitos.
Intime(m)-se a(s) parte(s) contrária(s) para apresentação de contra-razões, no prazo legal.
Nos termos do artigo 1º, §4º, da Resolução nº 49/10, do TRF da 4ª Região, ficam as partes intimadas de que, na eventual subida do processo ao TRF4, os autos serão digitalizados, passando a tramitar no meio eletrônico (Sistema e-Proc), sendo obrigatório o cadastramento dos advogados, na forma do art. 5º da Lei nº 11.419/06.
Publique-se, registre-se e intimem-se.
Transitada em julgado, e nada sendo requerido no prazo de 10 (dez) dias, arquivem-se os autos, com baixa na Distribuição.
Porto Alegre, 10 de março de 2011.
Francisco Donizete Gomes
Juiz Federal Titular

Fonte: Espaço Vital