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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Para que uma morte não tenha sido em vão!

PORTUGAL

*Por José Mário Martins
Médico Estomatologista, Presidente da Direcção da APCMG-Associação de Medicina de Proximidade

Para que esta morte não tenha sido em vão, há que apurar porque não funcionou o sistema em benefício do(s) doente(s).


O desfecho trágico do caso de um doente com ruptura de aneurisma cerebral que não foi tratado convenientemente fez correr rios de tinta. Da imprensa escrita às redes sociais, gente anónima e gente conhecida (muitas vezes não conhecedora...) opinou sobre o assunto.

Passados que estão alguns dias, agora é o tempo de a razão tomar o lugar da emoção.

Tentemos colocar as questões fundamentais e, se possível, dar-lhes resposta, ou apontar caminhos para conseguir essa resposta.

1. A transferência do doente para um Hospital de Lisboa era a única e a melhor solução?

NÃO. Contudo, a equipa que o recebeu no hospital de origem tinha a obrigação de o enviar para Lisboa porque as normas de referenciação assim determinam. Em Portugal vigora um sistema de referenciação geográfica anacrónico que, caricaturando, referencia os doentes pelo “código postal”.

Era do conhecimento da tutela que não existia, em Lisboa, resposta para este tipo de casos. Mas claro que há, em Portugal e nomeadamente em Coimbra e Porto, hospitais do SNS que poderiam ter recebido e tratado este doente.

O Ministério da Saúde tinha a obrigação de disseminar essa informação por todos os hospitais que referenciam para Lisboa, dando instruções sobre qual o centro a contactar para receber estes casos. Uma vez chegado a Lisboa, a sua transferência para outro centro implicava enormes riscos para a vida, pelo que devia ser evitada.

2. Não foi possível assistir o doente em causa porque não havia, em Lisboa, equipa de neurocirurgia, já que os médicos deixaram de estar disponíveis para trabalhar ao fim de semana, porque sofreram cortes nos seus vencimentos?

NÃO. De facto há, nos hospitais de Lisboa, equipas de neurocirurgia em serviço de urgência durante o fim-de-semana. Porém, a situação clínica deste doente exige o recurso a uma equipa muito diferenciada - que inclui médicos, enfermeiros, técnicos e pessoal auxiliar - altamente treinada para este tipo de patologia, cuja especificidade vai desde os cuidados anestésicos, cirúrgicos e de enfermagem até ao material e seu manuseio. O que não havia disponível era uma equipa de Neurocirurgia-Vascular. Gente muito habilitada e conhecedora, porque neste tipo de intervenção todos os segundos contam e as hesitações podem ser fatais. E foram precisamente os enfermeiros que, sentindo-se vilipendiados pelo valor que lhes foi proposto para pagamento de uma tarefa tão exigente, decidiram não continuar a trabalhar, inviabilizando a continuação das equipas.

Sublinhe-se que a falta de condições de trabalho e os aviltantes vencimentos que são pagos aos profissionais de saúde (não apenas aos médicos), levam a que aqueles estejam a abandonar precocemente o SNS.

3. O doente não poderia ter sido enviado para um hospital privado de Lisboa e aí ter sido operado?

Não respondo a esta questão, porque não conheço a capacidade de resposta para este tipo de situações em todos os hospitais privados de Lisboa. Permito-me, contudo, duvidar de que tenham capacidade instalada para atender estes casos, porque a manutenção de uma equipa deste tipo não será economicamente rentável. Sei que um Hospital privado terá referido ter “três neurocirurgiões com competência para este tipo de intervenções”. Como atrás ficou demonstrado, o problema nunca foi o da falta de neurocirurgiões com competência, mas de uma equipa altamente diferenciada.

Ficámos a saber que, apesar de o SNS dever ser, porque a Constituição assim o determina, igual para todos, a hora e o local onde se adoece tem uma marcada importância nas hipóteses de sucesso do tratamento.

Com uma correcta referenciação entre instituições do SNS este doente poderia ter tido acesso ao melhor tratamento, de acordo com o estado da arte, ainda que o resultado final pudesse ter sido o mesmo.

Para que esta morte não tenha sido em vão, há que apurar porque não funcionou o sistema em benefício do(s) doente(s).

Não podem três demissões apaziguar as nossas consciências.

Fonte: www.publico.pt