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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Aborto de anencéfalos: Breves considerações sobre o voto do Min. Marco Aurélio

Hoje, 11/04/2012, começou o julgamento acerca do "aborto de anencéfalos" no Supremo Tribunal Federal. O primeiro a votar foi o Ministro Marco Aurélio. Independentemente do voto em si, a fundamentação apresentada deixou a desejar.

Ao iniciar o seu voto, o Ministro fez questão de esclarecer que a questão posta não guarda relação com questões religiosas, detendo-se por mais de uma hora neste ponto. Completamente desnecessário. Bastaria dizer que a análise não se pautaria em critérios religiosos e sim jurídicos (o que é óbvio e evidente).

Neste ponto, afirmou ser partidário da retirada da expressão "Deus seja louvado" das cédulas de Real, bem como compartilha do entendimento de que nas salas dos juízes não pode haver crucifixo, sob o argumento de que o Estado é laico. Entretanto, infelizmente o Ministro não se posicionou em relação aos feriados nacionais, eis que a maioria são feriados religiosos.

Após a longa e desnecessária fundamentação sobre a separação do Estado e da Igreja, o Ministro passou a abordar a questão do anencéfalo, trazendo informações importantíssimas, mas que, ao final, se mostraram contraditórias.

O Ministro apresentou informações técnicas no sentido de que o feto anencéfalo é, para a Medicina, equiparado ao morto encefálico. Logo, ao equiparar o feto anencéfalo ao morto ancefálico, o Ministro afirma que o feto anencéfalo não possui vida.

Assim sendo, se o anencéfalo é igual ao morto, resta evidente que não haveria crime de aborto, pois o feto já está morto e, por óbvio, não se pode matar quem está morto. Nos dizerem do Ministro: ‎"o feto anenéfalo, ainda que vivo biologicamente, é juridicamente morto".

Portanto, interrupção da gravidez de feto anencéfalo é fato atípico para o Direito Penal.

Contudo, posteriormente, argumentou o Ministro que o sofrimento da mãe deve ser levado em consideração, pois não é justo determinar que ela sofra com a gestação para que o bebê viva por alguns minutos apenas.

Mencionou caso da mãe que sentia o feto se mexendo momentos antes do parto e dos pensamentos desta gestante e do seu marido. Após o parto, ocorreu o óbito extrauterino do feto, mas a mãe não quis saber de velório, atestado de óbito, etc.

Ora, se o feto estava se mexendo (movimentos voluntários) e irá viver por alguns minutos depois do parto, o feto anencéfalo não pode ser considerado juridicamente tal qual o morto encefálico!!! Por óbvio, se o feto anencéfalo viver após o parto, um instante que seja, significa que ele não estava morto e, portanto, não poderia ser equiparado ao morto encefálico. Gigantesco equívoco argumentativo do Ministro...

Ainda, para fetos anencéfalos deve ser feito atestado de óbito? E declaração de nascido vivo? A Declaração de Óbito deve ser elaborada quando a criança nascer viva e morrer logo após o nascimento, independentemente do tempo que tenha permanecido vivo. E, se nasceu com vida, deve ser feita a Declaração de Nascido Vivo.

Ademais, se o feto teve seu diagnóstico de anencefalia antes da 20ª semana, sendo considerado como morto encefálico desde então, ainda que a gestação tenha seguido até o seu natural termo (em tese por volta de 40 semanas), não se emitirá a Declaração de Óbito, pois nos óbitos fetais antes de 20 semanas não se faz a Declaração de Óbito.

Assim, a pergunta é: o feto anencéfalo é considerado juridicamente vivo ou morto? E, quando é o momento da morte? Ou, ainda, em algum momento este feto teve vida para o Direito?

Estas questões, além de não terem sido respondidas claramente pelo Ministro, ainda ficaram mais confusas, pois, como visto acima, em um momento o feto anencéfalo é considerado como morto e, em outro momento, o mesmo feto anencéfalo nasceu para logo após o parto morrer.

Outrossim, o voto do Ministro, respeitados os entendimentos contrários, apresentou argumento perigoso de que as mães não poderiam sofrer durante os meses de gestação em razão da existência do feto anencéfalo.

Inicialmente, se faz importante lembrar que esta gestação foi, em tese, desejada. Isto é, a mãe queria ficar grávida. A repulsa à gravidez não se deu no momento do fato, mas sim no instante em que a mãe ficou sabendo que o feto era anencéfalo. Somente a partir deste momento a mãe não desejou mais ter o filho.

Considerando apenas o aspecto emocional, realmente poderia se admitir que não fosse justo obrigar a mãe a levar ao final a gravidez. Aqui, a confusão feita pelo Ministro entre ser o feto anencéfalo vivo ou morto ganha importância. Se ele for considerado como morto, torna-se absoluta a necessidade de respeitar a vontade da mãe. Mas e se ele for um ser vivo (juridicamente), a mãe pode decidir sobre a vida do anencéfalo?

Para responder a esta pergunta, algumas considerações, tendo como premissa o fato do feto anencéfalo ser considerado vivo.

Para que a mãe consiga interromper a gestação de forma segura, necessariamente contaria com o auxílio de um médico para realizar o "aborto". Logo, o médico estaria autorizado a praticar o aborto, ou seja, ele estaria autorizado a auxiliar a mãe no ceifar a vida do feto anencéfalo.

Considerando que o diagnóstico de anencefalia seja feito na primeira metade da gestação, por volta até da 20ª semana, o médico estaria auxiliando a mãe a interromper aproximandamente 5 meses da vida do feto, sob o argumento de minimizar os sofrimentos da mãe.

Este mesmo médico poderia auxiliar uma pessoa que tenha desejo de se matar, pois está descontente com a vida?

Se o médico pode auxiliar uma pessoa (gestante) a acabar com a vida de uma outra "pessoa" (feto anencéfalo) para evitar prejuízos emocionais àquela, por que não permitir que o médico auxilie aquele que deseja acabar com sua própria vida para evitar os próprios desgostos? A mãe não pode sofrer por aproximadamente 5 meses, mas as outras pessoas devem conviver com o sofrimento, mesmo desejando morrer?

Com o destaque de que no segundo caso o maior interessado foi ouvido; no primeiro, o maior interessado sequer pode expressar a sua vontade ou se defender...

Ainda, o mesmo médico poderia "desligar os aparelhos" de um paciente que está em estado vegetativo, mas não em estado terminal de doença, para evitar o sofrimento dos familiares que não suportam mais ter que conviver com aquela pessoa acamada e imóvel? Se forem retirados os aparelhos desta pessoa ela não terá sobrevida.

Em última análise, com as devidas diferenças, a mãe está para o feto anencéfalo como os aparelhos estão para o paciente em estado vegetativo. Se eu posso "desligar" o feto anencéfalo da mãe (que é o "que" o mantém vivo), também poderia desligar os aparelhos do paciente em estado vegetativo, posto que nos dois casos, como dito, não haveria "vida autônoma possível" (sobrevida) sem o auxílio externo (mãe e aparelhos).

A definição quanto à vida ou morte do feto anencéfalo tem outras inúmeras consequências, podendo ser citadas como exemplo a possibilidade de crime de infanticídio e direito sucessórios.

Se o feto anencéfalo possui vida, após o parto a mãe pode vir a cometer crime de infanticídio. O Código Penal de 1940 estabalece em seu artigo 123 o crime como: "Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante ou logo após o parto". Se o feto anecéfalo for morto, não poderia haver o citado crime.

Na órbita do direito das sucessões, se o feto anencéfalo for vivo, transcrevo exemplo do ex-Ministro Eros Roberto Grau: "Ana, filha de família muito rica, apaixona-se por um homem sem bens materiais, Antonio. Casa-se com separação de bens. Ana engravida de um anencéfalo e o casal decide tê-lo. Ana morre de parto, o filho sobrevive alguns minutos, herda a fortuna de Ana. Antonio herda todos os bens do filho que sobreviveu alguns minutos além do tempo de vida de Ana."

Feitas estas considerações, a decisão do Ministro Marco Aurélio em absolutamente nada contribui, de forma efetiva e incisiva, para o deslinde da questão. Não se trata de concordar ou discorda com o resultado do voto, mas sim de não se poder chegar à conclusão mais importante que o caso prescinde: o feto anencéfalo é um ser vivo ou um ser morto?

Isso porque, a única certeza que todos os seres humanos possuem é que em algum momento morrerão. Todos, absolutamente todos, durante a gestação, possuem uma mera expectativa de que viverão alguns anos. Ninguém pode afirmar que um determinado feto "normal" viverá por décadas, anos, meses, dias, horas ou minutos.

A análise pelo STF não deveria ser sob o aspecto de vida possível após o parto, mas sim de caracterização jurídica de vida ou morte para o feto anencéfalo. Afinal, feto com cardiopatias ou deficiências pulmonares severas também possuem poucas chances de sobrevida. E alguns casos de prematuridade, qual as chances de sobrevida? O bebê que nasceu prematuro pode ser morto pela mãe ou pelo médico? Estariam autorizados também o aborto e o homicídio/infanticídio nestes casos?

Enfim, o voto do Ministro apresentou avanços ao afirmar que o feto anencéfalo é morto juridicamente, mas ao fundamentar a sua posição e exemplificar caso, apresentou argumentos contrários a esta conclusão. Talvez tenha faltado capricho na escolha das palavras, pois, se considerado o feto anencéfalo como um morto, jamais poderia exemplificar dizendo que a mãe sentia os movimentos do filho e que o feto nasceu e logo depois morreu.

Considerando o todo acima exposto, o voto do Ministro Marco Aurélio deixou a desejar em relação a categoricamente afirmar, sem margem de dúvidas, se o feto anencéfalo é ou não ser vivo para o Direito, perdendo uma grande oportunidade de apresentar somente argumentos técnicos, de forma inequívoca.