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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Parecer CFM nº 37/2010 - Limites da atuação do auditor

PROCESSO-CONSULTA CFM nº 4.263/10 – PARECER CFM nº 37/10
INTERESSADO:
CRM-BA

ASSUNTO:
Proposição de “novo modelo de gestão” por plano de saúde, no qual o auditor assiste aos procedimentos médicos

RELATOR:
Cons. Jecé Freitas Brandão

EMENTA: Solicitações genéricas de autorizações, formuladas pelos serviços contratantes de saúde, que visam encaminhar indiscriminadamente auditores para acompanhar procedimentos executados pelos médicos assistentes, ainda que com prévia anuência destes e do paciente, extrapolam o facultado pela Resolução CFM nº 1.614/01, sendo incompatíveis com o Código de Ética Médica. Apenas em situações excepcionais, diante de indícios de irregularidades na prática profissional, poderá ocorrer tal acompanhamento mediante solicitação de autorização específica, fundamentada, demonstrando: a necessidade de tal intervenção; manutenção da integridade da liberdade profissional do médico assistente e garantia à saúde do paciente.

RELATÓRIO
A presente consulta teve início com o encaminhamento de documentos enviados pelo Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb) ao CFM, solicitando apreciação ante a proposição, por parte de planos de saúde, a hospitais da cidade de Salvador-Ba, para a colocação de auditores para assistirem procedimentos cirúrgicos (fls.2 a 4).

À folha 3, correspondência do plano de saúde, dirigida ao hospital, traz a seguinte informação: “Conforme nossos entendimentos, referentes à presença de um profissional de auditoria médica em determinados procedimentos cirúrgicos, formalizamos que a partir dessa data será iniciado o processo neste hospital com prévia autorização do médico assistente do paciente. Nessa ocasião, poderão ser dirimidas dúvidas e fornecido auxílio para resolver alguma disfunção, acaso existente”. Finaliza informando que “a enfermeira A. A. dos S., Coren 07463, está autorizada pelo plano de saúde a desempenhar as atribuições citadas acima”.

Nesse sentido, a presente consulta tem por foco a avaliação ética da pretensão dos gestores de planos e seguradoras de saúde de enviar auditores para as instituições médico-hospitalares, com o objetivo de fiscalizar, in loco e ao vivo, procedimentos médicos, cumprindo-nos, pois, verificar se tal conduta viola a autonomia profissional e se pode vir a representar potencial dano à qualidade do ato médico.

Frise-se, a priori, que a auditoria médica é atividade exclusiva da profissão médica.

De início, vale pontuar que o Código de Ética Médica, ao traçar as vigas mestras da profissão médica, dispõe no princípio VIII, do Capítulo 1, dedicado aos Princípios Fundamentais, que:

O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficácia e a correção de seu trabalho.

Como se vê, o citado dispositivo contempla o princípio segundo o qual o médico deve ser livre para trabalhar da melhor forma, sendo obrigado a afastar qualquer limitação externa que possa afetar a qualidade do atendimento médico.

Em sintonia, encontram-se os artigos 94 e 98, os quais vedam, dentre outras coisas, que o médico incumbido de realizar auditorias extrapole suas funções, intervenha nos atos profissionais, emita sua opinião na presença do paciente assistido. Vejamos:

É vedado ao médico:
Art. 98 Deixar de atuar com absoluta isenção quando designado para servir como perito ou como auditor, bem como ultrapassar os limites de suas atribuições e competência.

(...)

Art. 94 – Intervir, quando em função de auditor, assistente técnico ou perito, nos atos profissionais de outro médico, ou fazer qualquer apreciação em presença do examinado, reservando suas observações para o relatório.

Da análise conjunta do princípio VIII do CEM e dispositivos acima transcritos, constata-se que a auditoria médica deve ser exercida sem qualquer restrição à liberdade profissional do médico assistente e à qualidade do serviço por ele prestado, estando o auditor adstrito à sua função de auditar, ou seja, de fiscalizar os atos médicos praticados, não lhe sendo facultado realizar interferências e comentários que não por relatórios.

A esse respeito, note-se, ainda, que a Resolução CFM nº 1.614/01, que disciplina a fiscalização praticada nos atos médicos pelos serviços contratantes de saúde, estabelece como premissa (conforme se depreende de suas considerações iniciais), que o médico auditor deve especial respeito ao art. 8º, bem como aos artigos 16, 19, 81, 108, 118 e 121, todos do CEM da época, que correspondem, no CEM atual, aos princípios VIII, XVI, XVIII e aos artigos 85, 94 e 98 .

Nesta linha, a mencionada resolução assim dispõe acerca do direito do médico auditor:

Art. 7º. O médico, na função de auditor, tem o direito de acessar, in loco, toda a documentação necessária, sendo-lhe vedada a retirada dos prontuários ou cópias da instituição, podendo, se necessário, examinar o paciente, desde que devidamente autorizado pelo mesmo, quando possível, ou por seu representante legal.

De sua leitura depreende-se que o direito conferido aos médicos auditores é o de acessar livremente os documentos pertinentes à sua fiscalização, podendo, ainda, examinar o paciente assistido, se necessário.

Quanto à possibilidade de o médico auditor acompanhar o ato médico, esta não foi prevista no caput como um direito do médico auditor, tendo apenas sido tratada, de forma restrita, pelo parágrafo 3º:

Parágrafo 3º O médico, na função de auditor, só poderá acompanhar procedimentos no paciente com autorização do mesmo, ou representante legal e/ou do seu médico assistente.

Como se vê, o acompanhamento do ato médico não constitui um direito típico da função de auditor, a ser exercido livremente por este; também não sendo, por sua vez, conduta absolutamente vedada.

De fato, podem existir casos excepcionais – situações que fogem à rotina –, como um indício de irregularidade, por exemplo, em que tal acompanhamento se justificará, sendo indispensável, todavia, sua autorização pelo médico assistente e/ou paciente.

Cabe ressaltar, neste aspecto, que a opção de a Resolução CFM nº 1.614/01 não considerar o acompanhamento dos procedimentos médicos como um “direito” do médico auditor é extremamente condizente com o CEM, já que este diploma legal, principalmente no princípio VIII e artigos 94 e 98, privilegia a liberdade do profissional da medicina, vedando que os auditores cometam excessos ou intervenham no ato médico.

É indiscutível que a simples presença de médico, enfermeira e/ou outros, com função fiscalizadora ou censora, constitui intervenção no ato médico, capaz de interferir na tranquilidade psicoemocional do profissional, fator indispensável para a aplicação virtuosa dos conhecimentos cognitivos relativos ao procedimento em execução.

Em outras palavras: a mera existência de estranho (especialmente um fiscal) durante o procedimento médico é suficiente para prejudicar a qualidade do atendimento e para criar um ambiente potencialmente propício ao cometimento dos mais variados erros.

Assim sendo, o acompanhamento dos procedimentos médicos não pode ser prática corriqueira, um “modelo de gestão” dos serviços contratantes de saúde, sob pena de se subverter o disposto no princípio VIII e nos artigos 94 e 98 do CEM, os quais priorizam a liberdade profissional do médico e seu dever de afastar riscos externos à saúde do paciente, estabelecendo, ainda, limitações à atuação do médico auditor.

Ou seja, não há como aplicar a previsão contida no § 3º, do art. 7º da Resolução CFM nº 1.614/01 sem obedecer ao determinado nos princípios e regras do CEM acima mencionados.

Parágrafo 3º O médico, na função de auditor, só poderá acompanhar procedimentos no paciente com autorização do mesmo, ou representante legal e/ou do seu médico assistente.

Neste contexto, para que o acompanhamento do ato médico, com a presença de auditores médicos durante o seu transcurso, possa ser efetivado de acordo com o explicitado no § 3º, do art. 7º da Resolução CFM nº 1.614/01 não basta o mero envio de cartas genéricas ou de termos de autorização padrão pelos serviços contratantes de saúde (planos, seguradoras etc. Os interessados em tal medida deverão, em cada caso específico, fundamentar o seu pedido de autorização, demonstrando a: 1) necessidade de tal intervenção excepcional, 2) manutenção da integridade da liberdade profissional do médico assistente e 3) garantia à saúde do paciente.

Do exposto, concluímos que solicitações genéricas de autorizações formuladas pelos serviços contratantes de saúde, que visam encaminhar indiscriminadamente auditores para acompanhar procedimentos executados pelos médicos assistentes, ainda que com a prévia anuência destes e do paciente, extrapolam o facultado pela Resolução CFM nº 1.614/01 e são incompatíveis com o Código de Ética Médica, motivo pelo qual a manifestação escrita do plano de saúde dirigida a hospitais (fls. 3), dando conta de formulação deste “novo modelo de gestão”, é insuficiente para legitimar tais pretensões.

Este é o parecer, SMJ.

Salvador-BA, 30 de setembro de 2010

Jecé Freitas Brandão
Conselheiro relator

Fonte: CFM