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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Aborto de anencéfalo: por mim ou contra meu filho?

No próximo dia 11, o Supremo Tribunal Federal decide se é legal a retirada de fetos em caso de má-formação do cérebro

Uma mistura de susto e desconhecimento tomou conta das duas mulheres. Camila Moreira Olímpio, de 28 anos, já havia escolhido o nome da menina: Stacy. Quando descobriu, no exame de ultrassom, que a filha tinha anencefalia, uma má-formação do cérebro incompatível com a vida, valeu-se de uma autorização judicial para antecipar o parto. A menina viveu por 10 segundos. Felipe, segundo filho de Márcia Tominaga, resistiu cerca de 20 minutos, vítima da mesma anomalia congênita. A mãe, hoje com 41 anos, optou por levar a gravidez até o fim. “Me preparei para o parto e para o enterro. Sou contra o aborto, mesmo de um filho que não vai viver”, diz. Camila pensa diferente. “É crueldade obrigar uma mulher a continuar a gestação sabendo que terá que colocar seu bebê em um caixão”, assinala.

Com histórias parecidas e opiniões tão contrárias, as duas mulheres, que nem se conhecem, representam bem o impasse instalado no Supremo Tribunal Federal (STF). Na próxima semana, os 11 ministros da mais alta Corte do país julgarão uma ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que reivindica a legalização do aborto em casos de anencefalia. O tema chegou ao STF em 2004, mesmo ano em que uma liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio Mello autorizou as grávidas de anencéfalos no Brasil a abreviar o parto. Menos de quatro meses depois, a decisão foi derrubada. Voltou a ser exigida, então, uma autorização judicial para o aborto, sob risco de a mulher e o médico serem processados por homicídio.

Essa foi a resposta que Camila ouviu nos mais de cinco hospitais por onde peregrinou na capital de São Paulo, embora vigorasse, na época, a liminar do ministro Marco Aurélio. “Eu tive que pagar advogado, entrar na Justiça. Como meu obstetra destacou que havia urgência, risco de morte para mim, a decisão saiu em 10 dias”, conta. Quando encontrou um médico que aceitou fazer o procedimento, Camila ainda passou 15 dias internada, sendo entrevistada por psicólogos e assistentes sociais. “Eles só confirmam a cirurgia quando têm certeza de que você sabe o que está fazendo”, lembra. Antes de dizer o que sentiu quando Stacy nasceu e morreu, faz uma pausa, mas não titubeia. “Alívio e vazio, ao mesmo tempo. Chorei muito no dia, depois recomecei a viver”, afirma a mulher, que trabalha como demonstradora de produtos na capital paulistana.

Se tivesse que passar por tudo de novo, ela diz que não faria diferente. “Dentro das minhas possibilidades, agi da melhor maneira”, afirma. Fernanda* gostaria de ter outra história para contar. Nascida e criada em Santos Reis, bairro de Natal conhecido até hoje pelas festas católicas, ela engravidou no ano passado, aos 17 anos. Só descobriu a anencefalia de Ana Clara quando a barriga já alcançava os oito meses de gestação. O médico avisou que o aborto era uma opção, mas salientou a demora habitual da decisão judicial. “Ele disse que era um ou dois meses, mais ou menos. Então, não ia adiantar. Mas, se fosse no início, eu pediria. Esperar esse tempo todinho, esperar uma vida, pra depois morrer? É muito triste”, diz Fernanda.

A avó da criança, Luiza*, concorda com a filha. “Seria melhor para a mãe e para o bebê. No caso dela, fiquei com muita pena, porque ela já mexia, mexia muito na barriga. A pediatra até perguntou por que deixaram uma criança ter essa criança, por que não fizeram o aborto. Mas descobrimos tarde”, conta. A opinião de médicos e amigos que questionavam, aberta ou veladamente, a razão de Márcia ter prosseguido com a gravidez de Felipe incomodava. “Achávamos desrespeitoso com nosso filho. Só porque ele tinha uma doença grave e não resistiria ao parto, as pessoas achavam que a gente deveria matá-lo”, critica Paulo Tominaga, advogado de 42 anos, pai da criança.

Apesar do jeitão pragmático, Márcia, analista judiciária em Brasília, não esconde a emoção do parto normal de Felipe. Ela recusou a anestesia total oferecida pela equipe exatamente porque queria ver o menino. “Colocaram o Felipe perto de mim, com o topo da cabeça enfaixado, para eu não visualizar a falta da calota craniana. Eu só conseguia dizer: ‘Filho, a mamãe te ama muito’. A boquinha dele era linda, nunca vi igual. Passaram alguns minutos e, aí sim, eu pedi a sedação”, lembra Márcia. Felipe foi velado com a única roupinha que a mãe comprou. Os trâmites funerários também estavam todos prontos. “Resolvi tudo com barrigão grande. Escolhi o caixão, deixei tudo acertado. É muito triste saber que seu filho vai morrer, mas eu tinha que continuar vivendo”, diz.

Na época, Márcia já tinha o primogênito, Pedro Paulo. Depois vieram Rafael, Marcos, João Paulo e Letícia. Nesse período, ela teve dois abortos espontâneos, mas nenhum relacionado à anencefalia. “Costumamos dizer que temos oito filhos, cinco aqui e três no céu”, diz o pai. Para o casal, ambos formados em direito e católicos, a ação que está no STF não deve ser aprovada. “O Código Penal não prevê essa situação como exclusão de crime, mas apenas os casos de estupro e risco de morte para a mãe. Então, se for para alterar, tem que mudar a legislação penal”, diz Márcia. “Abre-se uma exceção para mais tarde pleitear o aborto de fetos com algum problema genético, com Down e por aí vai.”

Código defasado

O jurista Luís Roberto Barroso, que atua no caso em favor da CNTS, destaca a defasagem do Código Penal, de 1940. “Nos dois casos previstos em lei, estupro e risco para a mãe, existe potencialidade de vida no feto, mas, ainda assim, o aborto é permitido. A anencefalia só não figura na legislação porque naquela época não havia condições técnicas de fazer esse diagnóstico”, diz Barroso. Outra tese defendida pelo especialista é que obrigar uma mulher a levar adiante a gestação de um anencéfalo contraria o princípio constitucional da dignidade humana. “Ela passará por todas as transformações físicas e psicológicas esperando o filho que não vai ter. Quem quiser levar a gestação a termo tem todo o direito. Mas o Estado não pode impor esse sofrimento”, diz Barroso, ao destacar que só as mulheres pobres ficam à mercê de autorizações judiciais, que muitas vezes chegam depois que a criança nasceu e morreu. “As ricas resolvem isso no consultório.”

Paulo Fernando Melo da Costa, advogado e membro da comissão de bioética da Arquidiocese de Brasília, posiciona-se contrário à ação, sustentando que o pedido fere o direito à vida, previsto no artigo 5º da Constituição Federal. Ele também cita o Código Civil, que estabelece os direitos do nascituro. “Nosso Código Penal não prevê o aborto eugênico, além do que o Supremo Tribunal Federal não pode legislar. Ninguém fala da dignidade da criança, do direito de ter certidão de nascimento, de óbito”, diz Paulo. Pelo menos três projetos de lei já foram apresentados no Congresso Nacional com o objetivo de descriminalizar o aborto no caso de anencefalia. Mas as bancadas católica e evangélica, contrárias ao tema, cada vez mais fortes no Legislativo, trabalham para arquivar as propostas. Caberá aos ministros do STF resolverem a questão. (Colaborou Iano Andrade)
* Nomes fictícios

Falta de ácido fólico

A anencefalia é uma anomalia congênita grave, caracterizada pela ausência da caixa craniana e da maior parte do encéfalo. Cerca de 50% das crianças morrem antes mesmo do parto. As que resistem têm minutos ou horas de vida. Em casos raros, alguns dias. A causa é a falta de ácido fólico, uma vitamina do Complexo B, durante a gestação. A Sociedade Brasileira de Genética Médica aponta que nascem em média oito crianças sem cérebro a cada dia no país. A partir da 12ª semana de gestação, é possível diagnosticar a anencefalia pelo ultrassom.

Fonte: Correio Braziliense / Renata Mariz