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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Limites à autonomia plena do paciente - Impossibilidade de realização de histerectomia a pedido sem indicação médica

PROCESSO-CONSULTA CFM nº 8/2019 – PARECER CFM nº 14/2019
INTERESSADO: Sra. A.P.N.
ASSUNTO: Histerectomia a pedido
RELATOR: Cons. José Hiran da Silva Gallo

EMENTA: Não se deve realizar histerectomia a pedido sem que haja uma indicação médica absoluta.

DA CONSULTA
A presente consulta tem origem em correspondência encaminhada a este Conselho Federal de Medicina, na qual a sra. A.P.N. formula consulta com o seguinte teor: “Gostaria de saber se há algum parecer que impeça o médico ginecologista de fazer a retirada do útero em um paciente que, mesmo após miomectomia, as opções de tratamento (anticoncepcional oral e implante hormonal) não cessam os períodos menstruais. Paciente em idade fértil (34 anos), sem o menor desejo de ter filhos. Há alguma base legal que proíba o ginecologista, mesmo se houver assinatura de termo de responsabilidade assinado pelo paciente por meios legais para que não haja processo futuro contra o médico? Gostaria de saber, porque, como paciente, desejo realizar a histerectomia, mas quero saber se por meios legais eu conseguiria, já que o médico diz que vai contra a ética”.

DO PARECER

REVISÃO HISTÓRICA
Desde 2000 a.C. que os papiros egípcios descrevem o útero como critério regulador da saúde mental da mulher e grande criador de vidas.
Segundo Aristóteles, o útero era a matriz geradora de vida, e todas as doenças femininas eram direta ou indiretamente resultado dessa matriz. Também Platão, na sua obra “Timeo”, descreve o útero como um animal que anseia por gerar filhos e quando fica estéril por muito tempo é capaz de promover todas as espécies de perturbações, conduzindo a mulher à angústia extrema.
Por tudo isto, Hipócrates prescrevia o casamento para as virgens ou viúvas que sofriam daquilo a que chamava de “sufocação do útero”.
No séc. XIX, na Europa, difundia-se uma mentalidade na qual a mulher era física e mentalmente inferior ao homem e escrava da sua fisiologia.
O termo histerectomia foi introduzido por Tillaux em 1879. Vocábulo de origem grega, derivado de hyster, que significa útero, e de ektomé, que significa remoção. Etimologicamente, define-se histerectomia como a remoção cirúrgica do útero.

MITOS E SIGNIFICADOS DO ÚTERO
A histerectomia tem sido utilizada como indicação no tratamento definitivo para condições como leiomiomas, sangramento uterino anormal e prolapso uterino. No entanto, em mulheres com patologia benigna, várias alternativas à histerectomia surgiram nas últimas décadas. A histerectomia é a segunda cirurgia ginecológica mais praticada em mulheres em idade fértil depois da cesariana. Estima-se que entre 20% e 30% das mulheres serão submetidas a esta operação até a sexta década de vida.
Embora as taxas de histerectomia tenham diminuído em alguns países nas últimas décadas, ela ainda é o procedimento ginecológico mais comum nos países desenvolvidos.
A metanálise de Cochrane recomendou a histerectomia vaginal como a principal técnica para patologia benigna. Quando isso não for viável, a histerectomia laparoscópica pode evitar a necessidade de laparotomia. Por fim, a abordagem cirúrgica da histerectomia deve ser decidida pela mulher junto com seu cirurgião.
Juntamente com essas recomendações, a taxa de histerectomias laparotômicas caiu em muitos países. Essa tendência ao uso de técnicas minimamente invasivas resulta em menor tempo de recuperação, menos infecções e menos dias de hospitalização.
Há evidências de que a histerectomia pode ter um impacto negativo na saúde cardiovascular e em todas as causas de mortalidade. A Associação Americana de Psiquiatria reconhece que a depressão tem sido frequentemente relatada após a histerectomia. Esta perturbação traduz-se num mal-estar clinicamente significativo que leva a uma disfunção social, ocupacional ou em qualquer outra área importante.
O conceito de feminilidade associado ao útero foi construído durante muitos séculos com relevância no papel reprodutor da mulher, praticamente resumindo a razão da sua existência à maternidade. É necessário descodificar estas crenças errôneas, mitos e falsos conceitos, uma vez que o conhecimento e domínio desses significados são de grande importância na compreensão da dinâmica emocional e sexual da mulher que irá se submeter à histerectomia.
A perda do útero e a consequente cessação da função reprodutora frequentemente trazem anseios e questões baseados em crenças e valores que podem induzir a reformulações ligadas ao feminino, à representação social, à qualidade de vida e ao funcionamento sexual.
Algumas mulheres acreditam que os melhores dias da sua vida terminam com a histerectomia e identificam a cirurgia com a perda da juventude e saúde, mesmo sabendo que esse recurso pode interromper os efeitos causados pela doença e permitir uma melhoria na qualidade de vida sexual.

TOMADA DE DECISÃO PARA HISTERECTOMIA
Alguns estudos mostram que a maioria das mulheres toma a decisão de fazer a histerectomia como último recurso e como forma de procurar alívio dos sintomas e colocar um fim à maioria dos seus problemas físicos e mentais, resignando-se perante uma doença que pode levar à morte, no caso de câncer.
Um aspecto que tem sido citado mas pouco estudado é o papel do cônjuge na tomada de decisão da histerectomia. Bernhard, no seu estudo sobre o efeito da histerectomia na sexualidade, verificou que a maioria dos homens tem uma visão negativa sobre a histerectomia e sobre as mulheres que são submetidas a essa cirurgia.

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
Quanto ao aspecto ético, no juramento de Hipócrates, estão claramente enunciados alguns princípios, pilares da Ética Médica até nossos dias: a philia, a não maleficência, a beneficência, o sigilo e também, até certo ponto, a justiça.
Ao estabelecer os fundamentos da teoria e arte mé dica, Hipócrates deu especial atenção a uma questão essencial em Medicina: a relação médico-paciente. Essa relação deveria ser alicerçada em forte sentimento entre as partes. Esse sentimento profundo é o da amizade com amor, isto é, a philia. O médico deveria exercer sua atividade com amor pelo ser humano (filantropia) e com amor pela técnica (filotecnia), a qual só teria sentido se posta a favor do doente.
Diversos autores concordam que um dos fatores geradores de grandes conflitos e mudanças na relação médico-paciente na segunda metade do século XX, e que persiste até hoje, foi a promoção da autonomia do paciente como um principio hegemônico.
O referencial da autonomia é uma das conquistas bioéticas mais importantes e ocasionou novos conflitos é ticos na relação médico-paciente. É aceito hoje, pela maioria dos autores, que esse referencial deve ser o mais amplo possível, tanto para o paciente quanto para o médico, na busca da melhor opção diagnóstica ou terapêutica.
Cohen e Marcolino construíram um modelo bastante dinâmico e adequado para abordar esse conflito de assimetria de poder. A essa luz, temos que, na relação médico-paciente, a autonomia e o paternalismo hipocrático são complementares. Por esse motivo, não pode existir autonomia total nem paternalismo absoluto, pois eles são complementares nessa singular relação.
Qualterer-Burcher refere que o conceito de autonomia deveria ser substituído pelo conceito muito mais completo, conhecido como “justa distância”, balizado em termos da valorização da narratividade, singularidade e relacionalidade. Portanto, preconiza que os pacientes procuram seus médicos com a finalidade de resolver seus agravos à saúde, e não para ter suas autonomias respeitadas. Defende a “justa distância” como um principio que deve substituir, no futuro, o principio da autonomia. Entender que aquele paciente que comparece ao encontro é único e peculiar e que cada encontro pode ser diferente do anterior é fundamental para a adequada atenção terapêutica.
Nesse mesmo sentido, diversos trabalhos têm sido publicados defendendo a prática da “decisão compartilhada”.
Quanto à histerectomia a pedido, estamos a tocar em um tema de dilemas inconciliavéis, uma questão controversa que a medicina enfrenta na atualidade. A paciente tem o direito de opinar pela retirada do útero, independentemente das motivações envolvidas no determinismo da escolha. Os riscos e benefícios do procedimento devem ser expostos e compreendidos pela paciente. É fundamental que haja um pleno esclarecimento que possibilite à mulher tomar a decisão que julgar mais adequada.
Ressalta-se que, em outros campos da medicina, já ocorrem cirurgias a pedido. Na cirurgia plástica, por exemplo, respeita-se a decisão da paciente em mudar o volume das mamas, do abdome, das nádegas ou o formato do nariz, só com o intuito de melhorar sua fisionomia. Salienta-se que os procedimentos preditos, a lipoaspiração e as mamoplastias, não estão isentos de morbidade e mortalidade.
A cesariana a pedido constitui exemplo das mudanças que assistimos no exercício da obstetrícia. No epílogo dessas considerações, é necessário ressaltar a deliberação do Conselho Federal de Medicina – Resolução CFM nº 2.144, de 17 de março de 2016 – Diário Oficial da União: Poder Executivo, Brasília, DF, 22 de junho de 2016. Seção I, p. 138:

Art. 1º – É direito da gestante, nas situações eletivas, optar pela realização de cesariana, garantida por sua autonomia, desde que tenha recebido todas as informações de forma pormenorizada sobre o parto vaginal e cesariana, seus respectivos benefícios e riscos.
Parágrafo único – A decisão deve ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil compreensão, respeitando as características socioculturais da gestante.

As considerações preditas deram suporte para a realização da cesariana a pedido, permitindo à gestante a escolha da via do parto, respeitando a liberdade individual e atendendo aos princípios de autonomia, beneficência e não-maleficência.
A autonomia na prática clínica significa a capacidade de governar a si próprio (in- dependência), ou seja, é o princípio que reconhece que as pessoas detêm o poder de decidir sobre questões que lhe são inerentes.
É prudente lembrar que o médico também pode exercer o direito de sua autonomia e recusar-se a realizar o procedimento, encaminhando a mulher a outro profissional. A decisão de realizar ou não a histerectomia a pedido deve ser conjunta, envolvendo o médico e a paciente.
É peça fundamental e necessária o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, reforçando as informações prestadas oralmente e explicando os princípios, as vantagens e as desvantagens potenciais da operação. Deve ser assinado pelo médico e pela paciente.

FUNDAMENTAÇÃO E PARECER
Em últimas palavras, julga-se que o esmero nas normas enunciadas para a realização da histerectomia a pedido tem como desiderato atender o desígnio príncipe da medicina, que é preservar a integridade da saúde materna.
O Código de Ética Médica aborda o tema nos artigos 14, 15 e 22, que assim rezam: É vedado ao médico:

Art. 14. Praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no Pais.
Art. 15. Descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou de tecidos, esterilização, fecundação artificial, abortamento, manipulação ou terapia genética.
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal apó s esclarecê -lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Assim como em respeito à Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, em seu artigo 10, inciso 4: “A esterilização cirúrgica como método contraceptivo somente será executada através da laqueadura tubária, vasectomia ou de outro método cientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e ooforectomia”.
Em que pese a importância da autonomia do paciente acerca dos procedimentos a que venha a ser submetido, bem como a obrigação do médico em obter o prévio e esclarecido consentimento do paciente ou de seus representantes legais nas situações de risco iminente de morte, o médico deve preservar o bem maior, insubstituível e irreparável que é a vida. Trata-se, como no caso descrito pela consulente, de medidas salvadoras, insusceptíveis de formalidades ou de delongas, nas quais o médico tem que decidir segundo os princípios da benemerência e da não-maleficência.
Quanto à legalidade, em que pese tal análise extrapolar a competência deste conselho, há que se assegurar que a preservação da vida é garantia constitucional.

CONCLUSÃO
Diante destas considerações, não se deve realizar histerectomia a pedido sem que haja uma indicação médica absoluta.

Esse é o parecer, S.M.J. Brasília, DF, 16 de maio de 2019

JOSÉ HIRAN DA SILVA GALLO
Conselheiro-relator

REFERÊNCIAS
QUALTERER-BURCHER, P. The just distance: narrativity, singularity and relationality as the source of a new biomedical principle. Journal of Clinical Ethics, Hagerstown, v. 20, n. 4, p. 299- 309, 2009.