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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Acórdão STJ sobre criopreservação de cadáver

RECURSO ESPECIAL Nº 1.693.718 - RJ (2017/0209642-3)

RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE
RECORRENTE : LIGIA CRISTINA MELLO MONTEIRO
ADVOGADOS : CRISTIANE DE MEDEIROS BRITO CHAVES FROTA - RJ085056 SORAYA RIBAS SAMPAIO BARROS - RJ146178
PAULA ALEXANDRA MALGRAND PRINCIPE PESSOA - RJ022911 RECORRIDO : CARMEN SILVIA MONTEIRO TROIS
RECORRIDO : DENISE NAZARE BASTOS MONTEIRO
ADVOGADOS : WALTER JOSE FAIAD DE MOURA E OUTRO(S) - DF017390 RODRIGO MARINHO CRESPO - RJ135204
ANTONIO VANDERLER DE LIMA - RJ035211 THIAGO AMORIM RODRIGUES - RJ183823
EMENTA

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ORDINÁRIA. 1. DISCUSSÃO TRAVADA ENTRE IRMÃS PATERNAS ACERCA DA DESTINAÇÃO DO CORPO DO GENITOR. ENQUANTO A RECORRENTE AFIRMA QUE O DESEJO DE SEU PAI, MANIFESTADO EM VIDA, ERA O DE SER CRIOPRESERVADO, AS RECORRIDAS SUSTENTAM QUE ELE DEVE SER SEPULTADO NA FORMA TRADICIONAL (ENTERRO). 2. CRIOGENIA. TÉCNICA DE CONGELAMENTO DO CORPO HUMANO MORTO, COM O INTUITO DE REANIMAÇÃO FUTURA. 3. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL SOBRE O PROCEDIMENTO DA CRIOGENIA. LACUNA NORMATIVA. NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO DA NORMA POR MEIO DA ANALOGIA (LINDB, ART. 4º). ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO QUE, ALÉM DE PROTEGER AS DISPOSIÇÕES DE ÚLTIMA VONTADE DO INDIVÍDUO, COMO DECORRÊNCIA DO DIREITO AO CADÁVER, CONTEMPLA DIVERSAS NORMAS LEGAIS QUE TRATAM DE FORMAS DISTINTAS DE DESTINAÇÃO DO CORPO HUMANO EM RELAÇÃO À TRADICIONAL REGRA DO SEPULTAMENTO. NORMAS CORRELATAS QUE NÃO EXIGEM FORMA ESPECÍFICA PARA VIABILIZAR A DESTINAÇÃO DO CORPO HUMANO APÓS A MORTE, BASTANDO A ANTERIOR MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO INDIVÍDUO. POSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO DA VONTADE POR QUALQUER MEIO DE PROVA IDÔNEO. LEGITIMIDADE DOS FAMILIARES MAIS PRÓXIMOS A ATUAREM NOS CASOS ENVOLVENDO A TUTELA DE DIREITOS DA PERSONALIDADE DO INDIVÍDUO POST MORTEM. 4. CASO CONCRETO: RECORRENTE QUE CONVIVEU E COABITOU COM SEU GENITOR POR MAIS DE 30 (TRINTA) ANOS, SENDO A MAIOR PARTE DO TEMPO EM CIDADE BEM DISTANTE DA QUE RESIDEM SUAS IRMÃS (RECORRIDAS), ALÉM DE POSSUIR PROCURAÇÃO PÚBLICA LAVRADA POR SEU PAI, OUTORGANDO-LHE AMPLOS, GERAIS E IRRESTRITOS PODERES. CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS QUE PERMITEM CONCLUIR QUE A SUA MANIFESTAÇÃO É A QUE MELHOR TRADUZ A REAL VONTADE DO DE CUJUS. 5. CORPO DO GENITOR DAS PARTES QUE JÁ SE ENCONTRA SUBMETIDO AO PROCEDIMENTO DA CRIOGENIA HÁ QUASE 7 (SETE) ANOS. SITUAÇÃO JURÍDICA CONSOLIDADA NO TEMPO. POSTULADO DA RAZOABILIDADE. OBSERVÂNCIA. 6. RECURSO PROVIDO.
1. A controvérsia instaurada neste feito diz respeito à destinação do corpo de Luiz Felippe
Dias Andrade Monteiro, pai das litigantes. Enquanto a recorrente busca mantê-lo submetido ao procedimento de criogenia nos Estados Unidos da América, sustentando ser esse o desejo manifestado em vida por seu pai, as recorridas pretendem promover o sepultamento na forma tradicional (enterro).
2. A criogenia ou criopreservação é a técnica de congelamento do corpo humano morto, em baixíssima temperatura, com o intuito de reanimação futura da pessoa, caso sobrevenha
alguma importante descoberta médica ou científica capaz de ressuscitar o indivíduo.
3. O procedimento da criogenia em seres humanos não possui previsão legal em nosso ordenamento jurídico. Nesses casos, para preencher a lacuna normativa sobre a matéria, o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB enumera as técnicas de integração da norma jurídica, estabelecendo que: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito".
3.1 Na hipótese, deve-se aplicar a analogia jurídica (iuris), pois o nosso ordenamento jurídico, além de proteger as disposições de última vontade do indivíduo, como decorrência do direito ao cadáver, contempla diversas normas legais que tratam de formas distintas de destinação do corpo humano após a morte em relação à tradicional regra do sepultamento, dentre as quais podemos citar o art. 77, § 2º, da Lei de Registros Públicos, que disciplina a possibilidade de cremação do cadáver; a Lei n. 9.434/1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento; o art. 14 do Código Civil, que possibilita a destinação do corpo, após a morte, para fins científicos ou altruísticos, dentre outras.
3.2. Da análise das regras correlatas dispostas no ordenamento jurídico, considerando a necessidade de extração da norma jurídica a ser aplicada ao caso concreto, verifica-se que não há exigência de formalidade específica para a manifestação de última vontade do indivíduo, sendo perfeitamente possível, portanto, aferir essa vontade, após o seu falecimento, por outros meios de prova legalmente admitidos, observando-se sempre as peculiaridades fáticas de cada caso.
3.3. Ademais, o ordenamento jurídico brasileiro, em casos envolvendo a tutela de direitos da personalidade do indivíduo post mortem, legitima os familiares mais próximos a atuarem em favor dos interesses deixados pelo de cujus. São exemplos dessa legitimação as normas insertas nos arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil, que tratam especificamente sobre direitos da personalidade, bem como no art. 4º da Lei n. 9.434/1997, que diz respeito à legitimidade dos familiares em relação à autorização para a remoção de órgãos, tecidos e outras partes do corpo humano para fins de transplante, dentre outras.
3.4. Nessa linha de entendimento, extraindo-se os elementos necessários à integração da lacuna normativa pela analogia, é de se concluir que, na falta de manifestação expressa deixada pelo indivíduo em vida no sentido de ser submetido à criogenia após a morte, presume-se que sua vontade seja aquela manifestada por seus familiares mais próximos.
4. Na hipótese dos autos, não obstante as partes litigantes - recorrente e recorridas - tenham o mesmo grau de parentesco com o falecido, pois todas são descendentes de 1º grau (filhas), é razoável concluir que a manifestação da filha Lígia Monteiro, ora recorrente, é a que traduz a real vontade de seu genitor em relação à destinação de seus restos mortais, visto que, sem dúvida alguma, é a que melhor pode revelar suas convicções e desejos, em razão da longa convivência com ele, que perdurou até o final de sua vida.
4.1. Com efeito, revela-se incontroverso nos autos que a recorrente conviveu e coabitou com seu pai por mais de 30 (trinta) anos, após ele ter se divorciado da mãe das recorridas, sendo a maior parte desse tempo - mais de 20 (vinte) anos - em cidade bem distante da que residem suas irmãs (recorridas).
4.2. Também é fato incontroverso que Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro lavrou procuração pública em favor de sua filha Lígia (recorrente), com quem residia, outorgando-lhe amplos, gerais e irrestritos poderes, o que indica a confiança irrestrita inerente a uma convivência duradoura entre pai e filha.
4.3. Por outro lado, as autoras da ação (recorridas) não se desincumbiram de refutar, de forma concreta, o fato de que sua irmã Lígia, por ter convivido com o genitor delas por mais de 30 (trinta) anos, teria melhores condições de traduzir sua vontade, sobretudo porque a causa de pedir está totalmente fundada no desejo delas próprias de realizar o sepultamento de seu pai em território nacional, e não na aferição da manifestação de última vontade dele.
5. Vale destacar que o corpo do genitor das litigantes já se encontra submetido ao procedimento de criogenia, no Cryonics Institute, localizado na cidade de Michigan (EUA), desde julho de 2012, isto é, há quase 7 (sete) anos.
5.1. Tal fato deve ser levado em consideração na análise do presente caso, visto que, embora legítimo o interesse das recorridas em tentar sepultar o pai em território nacional, não se pode ignorar que a situação jurídica, de certa forma, já se consolidou no tempo. De fato, negar provimento ao presente recurso especial para que o corpo seja repatriado e, posteriormente, sepultado e enterrado no Rio de Janeiro/RJ, cidade na qual as recorridas nem sequer residem, não se mostra razoável, pois, além de restabelecer o difícil sentimento de perda e sofrimento já experimentado quando do falecimento, essa situação, certamente, não teria o condão de assegurar a pacificação social almejada pelo direito.
5.2. A solução da controvérsia perpassa pela observância ao postulado da razoabilidade, porquanto, a par do reconhecimento de que o de cujus realmente desejava ser submetido ao procedimento da criogenia após a morte, não se pode ignorar, diante da singularidade da questão discutida, que a situação fático-jurídica já se consolidou no tempo, impondo-se, dessa forma, a preservação do corpo do pai da recorrente e das recorridas submetido ao procedimento da criogenia no referido instituto.
6. Recurso especial provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Moura Ribeiro (Presidente), Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 26 de março de 2019 (data do julgamento).

MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator

RECURSO ESPECIAL Nº 1.693.718 - RJ (2017/0209642-3)

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:

Carmen Silvia Monteiro Trois e Denise Nazaré Bastos Monteiro ajuizaram ação ordinária c.c. pedido de tutela antecipada contra Lígia Cristina de Mello Monteiro, alegando, em síntese, que "as autoras são irmãs paternas da ré, todas filhas de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro, que veio a falecer na madrugada do dia 22.01.12, sendo certo que o mesmo residia na companhia da ré, enquanto que as autoras residem no Rio Grande do Sul, sendo difícil o relacionamento entre as partes nos últimos anos. Sequer o óbito do referido genitor foi comunicado às autoras, do qual tomaram conhecimento através de terceiros, desconhecendo, porém, o destino dado ao corpo, que teria sido retirado pela ré do hospital, para levá-lo para os EUA, cidade de Michigan, onde supostamente pretende congelá-lo e/ou efetuar procedimento correlato, conforme apurado em contato mantido com a empresa RIOPAX, em cuja sede está sendo conservado o corpo, em câmara frigorífica, aguardando os procedimentos para o traslado para o citado país, não obstante o interesse das autoras de dar ao corpo do pai um sepultamento com dignidade e em território nacional" (e-STJ, fl. 90).
O Juízo de primeiro grau julgou parcialmente procedente o pedido para autorizar o imediato supultamento do corpo (e-STJ, fls. 90-92).
Em apelação da ré, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por maioria de votos, deu provimento ao recurso para determinar a realização da criogenia no corpo do genitor das partes. O acórdão foi assim ementado:
CRIOGENIA. DESTINAÇÃO DE RESTOS MORTAIS. DISPOSIÇÃO DE ULTIMA VONTADE. INEXISTÊNCIA DE TESTAMENTO OU CODICILO. DIREITO DA PERSONALIDADE. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. AUSÊNCIA DE CONSENSO ENTRE AS LITIGANTES. PROVA DOCUMENTAL ROBUSTA, QUE DEMONSTRA QUE O DE CUJUS DESEJAVA VER O SEU CORPO SUBMETIDO AO PROCEDIMENTO DA CRIOGENIA.
1. A criogenia ou criopreservação consiste na preservação de cadáveres humanos em baixas temperaturas para eventual e futura reanimação e se insere dentre os avanços científicos que deram nova roupagem à ciência, rompendo com antigos paradigmas sociais, religiosos e morais.
2. Disputa acerca da destinação dos restos mortais do pai das litigantes, cujo desate não consiste na unificação da vontade das partes, mas sim na perquirição da real vontade do falecido.
3. Disposição de última vontade quanto à destinação de seu cadáver, que recai no rol dos direitos da personalidade constitucionalmente assegurados. Inexistência de testamento ou codicilo que não deve inviabilizar o cumprimento dos seus desígnios, sob pena de afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.
4. Em que pese a solenidade e o conservadorismo do direito sucessório pátrio, são reconhecidas formas excepcionais de testamento, como o particular, nuncupativo, marítimo e aeronáutico que prescindem das formalidades ordinárias e visam impedir que o indivíduo venha a falecer sem fazer prevalecer sua derradeira vontade.
5. Os elementos constantes dos autos, em especial a prova documental, demonstram de forma inequívoca o desejo do falecido de ter o seu corpo congelado após a sua morte.
6. Inafastável a aptidão da parenta mais próxima do falecido, com quem mantinha relação de afeto e confiança incondicionais, no caso, sua filha Lygia, para dizer sobre o melhor destino dos restos mortais, ou seja, aquele que melhor traduz suas convicções e desejos à época de seu óbito.
7. Ausência de previsão legal acerca do tema — criogenia — que, na forma do art. 4º da LICC, autoriza a aplicação analógica das disposições existentes acerca da cremação, para a qual a Lei de Registros Públicos não estabeleceu forma especial para a manifestação de vontade. Precedentes deste Egrégio Tribunal.
8. Inexistência de paradigma jurisprudencial que não inviabiliza a pretensão diante da ausência de vedação legal e da demonstração de ser esta a disposição de última vontade do de cujus.

Recurso provido.

Contra o referido acórdão, as autoras opuseram embargos infringentes, os quais foram acolhidos, também por maioria de votos, pelo Tribunal de origem, para determinar o sepultamento do corpo no Brasil, afastando-se, assim, a realização da criogenia.
Daí o presente recurso especial, em que a recorrente Ligia Cristina Mello Monteiro afirma que o acórdão recorrido violou os arts. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB, 14 do Código Civil e 77, parágrafo 2º, da Lei n. 6.015/1973.
Inicialmente, alega que "a questão jurídica envolvida na hipótese dos autos não é propriamente a expectativa, sob a ótica da criogenia, de reanimação do Sr. Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro. O cerne da controvérsia é se fazer prevalecer a última vontade do falecido, seu direito personalíssimo de livremente orientar a destinação do seu corpo" (e-STJ, fl. 979).
Nesse contexto, sustenta que "a ausência de previsão legal acerca do tema, qual seja, a criogenia, provoca uma lacuna, uma vez que a legislação é silente quanto ao fato. No entanto, o art. 4° da LICC dispõe que: 'Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito'. Nesse viés, aplica-se, por analogia, a norma da Lei n. 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), art. 77 e 6º do Decreto Municipal n. 24.986/04, que permite solução diversa do sepultamento, ou seja, a cremação, haja vista a inexistência de regulamentação quanto a outras modalidades de disposição final de corpos sem vida" (e-STJ, fls. 969-970).
Afirma que, no caso em comento, "ainda que a manifestação de vontade não se apresente expressamente, eis que na nossa cultura não é de praxe deixar registrado este tipo de última vontade, resta presumido que a manifestação seja aquela apresentada pelos parentes mais próximos, como é o caso nos autos da filha que ao seu lado permaneceu por toda a vida" (e-STJ, fl. 975).
Ademais, "na origem, restou comprovado de forma inequívoca que as recorridas não mantinham qualquer relação com o pai em seus últimos anos de vida, tampouco com a irmã, ora recorrente, pelo que desconheciam o desejo do pai. Do mesmo modo, as recorridas não lograram justificar razão concreta para o descumprimento da última vontade de seu pai, qual seja, ter os seus restos mortais submetidos ao procedimento da criogenia. Isso porque ninguém melhor que sua parenta mais próxima — a recorrente — com quem mantinha relação de afeto incondicional e conviveu por mais de
32 anos, para expressar a vontade do falecido pai quanto ao destino de seus restos mortais" (e-STJ, fl. 982).
Busca, assim, o provimento do recurso especial para que o acórdão recorrido seja reformado, devendo prevalecer, assim, a vontade do falecido de manter seu corpo no procedimento de criogenia.
À fl. 1.216 (e-STJ), proferi despacho determinando a intimação da recorrente para que informasse a atual situação de fato em relação ao procedimento da criogenia.
Às fls. 1.237-1.278 (e-STJ), a recorrente Ligia Cristina Mello Monteiro informou que "o corpo de seu pai encontra-se devidamente criopreservado há quase 6 (seis) anos", desde 24/7/2012, afirmando, ainda, o seguinte:
Por oportuno, a Recorrente informa que o valor expendido para o acolhimento do corpo e sua criopreservação, ad aeternum, foi integralmente pago, à época U$ 28.000,00 (vinte e oito mil dólares). Vale ressaltar que não há qualquer pagamento intermediário a ser realizado, uma vez que os corpos são preservados em nitrogênio líquido, gás de baixo custo nos EUA, não havendo necessidade de energia elétrica para sua manutenção.
Informa, ainda, que todos os custos com o procedimento foram suportados pela Recorrente, desde a fase de manutenção do corpo no Brasil, que perdurou pelo menos 5 (cinco) meses na Concessionária Rio Pax, até sua liberação e translado para o Instituto nos EUA, de acordo com o que consta dos autos às fls. 363-378 e-STJ.
Insta observar que este procedimento inicial de preparação para envio do corpo aos Estados Unidos perdurou por 5 (cinco) meses e a Recorrente desembolsava diárias no valor aproximado de R$ 1.000,00 (hum mil reais), até que seu translado fosse realizado para os EUA, conforme comprovado nos autos às fls. 363-378 e-STJ.
Importante ressaltar, ainda, que durante a fase de conhecimento desta ação, a Recorrente se comprometeu a custear as visitas de suas meio-irmãs, ora Recorridas, bem como ofereceu acordo onde abriria mão de seu direito sucessório para que fosse respeitado e mantido o incontestável desejo de seu pai de se submeter ao procedimento da criogenia.
(...)
Imperioso destacar que apesar de os corpos criopreservados serem mantidos em cápsulas fechadas, o Instituto de criopreservação permite a visitação tal como ocorre nos cemitérios convencionais, havendo até mesmo local para depósito de flores. Nesse viés, a Recorrente junta aos autos alguns informativos extraídos do site do Instituto, observando tratar-se de empresa idônea, fundada desde 1976, com objetivo de oferecer serviços criônicos disponíveis para o público, possuindo ainda um histórico comprovado de segurança financeira e estabilidade.
Muito embora o procedimento de Criopreservação pareça ser novo e algo futurista, a técnica já existe desde a década de 1960, com empresas que atuam nesse campo específico sediadas nos Estados Unidos e Rússia, ressaltando-se o grande número de pessoas que já aderiu a essa técnica. O Cryonics Institute mantém atualmente centenas de pessoas criopreservadas.
Às fls. 1.219-1.235 (e-STJ), as recorridas Carmen Silvia Monteiro Trois e Denise Nazaré Bastos Monteiro afirmaram que, "após tentar duas vezes sem sucesso obter liminares autorizando o envio do corpo para os EUA, a recorrente resolveu literalmente desprezar o comando do Judiciário e fazer Justiça com as próprias mãos. A recorrente simplesmente enviou o corpo do pai das recorridas para os EUA, contrariando ordens judiciais, a Lei e os costumes, cf. comprova a nota de embarque em anexo", o que revela seu comportamento insidioso e contrário à boa-fé.
Ressaltaram, ainda, que, não obstante o nítido comportamento insidioso da recorrente, "de forma inegavelmente branda, o e. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro considerou a conduta da recorrente como um mero ato de precipitação, sem maiores consequências", ao consignar que: "Apesar da atuação precipitada da requerida, ora agravada, noticiada nesses autos, tal situação, uma vez consumada, não oferece risco de dano irreparável ou de difícil reparação à pretensão das requerentes, que é a de sepultar os restos mortais do seu ente familiar no jazigo da família" (e-STJ, fl. 1.221).
É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.693.718 - RJ (2017/0209642-3)

VOTO
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR):

A controvérsia trazida nestes autos diz respeito à destinação do corpo de Luiz Felippe Dias Andrade Monteiro, pai da recorrente e das recorridas. Enquanto a recorrente busca mantê-lo submetido ao procedimento de criogenia nos Estados Unidos da América, sustentando ser esse o desejo manifestado em vida por seu pai, as recorridas pretendem promover o sepultamento na forma tradicional.

1. Delimitação fática

Colhe-se dos autos que Carmen Silvia Monteiro Trois e Denise Nazaré Bastos Monteiro, ora recorridas, são irmãs paternas de Lígia Cristina de Mello Monteiro, recorrente, todas filhas de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro, que veio a falecer na madrugada do dia 22 de janeiro de 2012.
Consta, ainda, que as recorridas residem no Rio Grande do Sul, enquanto o genitor das partes, antes de seu falecimento, residiu por mais de 30 (trinta) anos com sua filha, a recorrente Lígia, na cidade do Rio de Janeiro/RJ.
Argumentando que seu pai, por diversas vezes, havia manifestado o desejo de ter seu corpo submetido ao procedimento de congelamento após a sua morte, a recorrente Lígia providenciou os preparativos para a realização da criogenia, por intermédio da empresa Rio Pax, localizada na cidade do Rio de Janeiro/RJ, para posterior traslado do corpo aos Estados Unidos da América.
Sabendo dessa informação e não concordando com o intuito de sua irmã paterna, Carmen Monteiro e Denise Monteiro ajuizaram ação ordinária visando impedir a realização da criogenia, buscando, em consequência, o sepultamento do corpo de seu pai ao lado de sua ex-esposa, mãe das autoras, em Canoas-RS.
O pedido foi julgado parcialmente procedente pelo Juízo de primeiro grau para autorizar o sepultamento do corpo de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro no local indicado pelas autoras da ação (e-STJ, fls. 90-92).
Em apelação da ré, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por maioria de votos, reformou a sentença para determinar a continuação do procedimento de criogenia, sob o fundamento, em síntese, de que, embora não houvesse uma declaração expressa de última vontade do falecido, "os elementos constantes dos autos, em especial a prova documental, demonstram de forma inequívoca o desejo do falecido de ter o seu corpo congelado após a sua morte", sendo "inafastável a aptidão da parenta mais próxima do falecido, com quem mantinha relação de afeto e confiança incondicionais, no caso, sua filha Lígia, para dizer sobre o melhor destino dos restos mortais, ou seja, aquele que melhor traduz suas convicções e desejos à época de seu óbito" (e-STJ, fl. 533).
O referido acórdão foi publicado em 10/7/2012 (e-STJ, fl. 562).
Alguns dias após a publicação do referido decisum, em 24/7/2012, o corpo de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro foi enviado para a cidade de Michigan, nos Estados Unidos da América, onde fica localizada a empresa especializada em criogenia Cryonics Institute, permanecendo lá até hoje.
Posteriormente, em embargos infringentes, também por maioria de votos, o Tribunal de Justiça Fluminense, por meio de judicioso voto proferido pelo eminente Desembargador Ricardo Couto de Castro, restabeleceu a sentença, determinando o sepultamento do corpo "no antigo domicílio do falecido" (e-STJ, fl. 733), isto é, na cidade do Rio de Janeiro, sob o fundamento de que, na ausência de autorização expressa deixada pelo pai das autoras e da ré em vida, não seria razoável permitir a realização da criogenia pela vontade de uma de suas filhas.
Daí o presente recurso especial, em que a recorrente Lígia busca restabelecer o acórdão que deu provimento à sua apelação, a fim de permitir a manutenção do corpo de seu pai congelado no referido instituto.

2. Da alegação de comportamento insidioso da recorrente formulada na Petição n. 140.079/2018

Às fls. 1.219-1.235 (e-STJ), as recorridas afirmam que a recorrente Lígia agiu de forma insidiosa, pois, após tentar duas vezes sem sucesso obter liminares autorizando o envio do corpo para os EUA, "resolveu literalmente desprezar o comando do Judiciário e fazer justiça com as próprias mãos", pois "simplesmente enviou o corpo do pai das recorridas para os EUA, contrariando ordens judiciais, a Lei e os costumes" (e-STJ, fl. 1.220).
Não obstante as alegações feitas, verifica-se, da análise dos autos, que não há elementos para aferir se, de fato, houve descumprimento de ordem judicial por parte da recorrente.
Na verdade, constata-se que o corpo foi enviado aos Estados Unidos apenas alguns dias após a publicação do acórdão que julgou a apelação favorável à pretensão da recorrente, isto é, que autorizou a continuidade da realização do procedimento da criogenia, não constando, ademais, a informação de que as recorridas tenham obtido alguma liminar para suspender os efeitos do referido decisum, a fim de impedir o traslado do corpo.
Dessa maneira, eventual descumprimento de ordem judicial ou da existência de crime de desobediência por parte da recorrente deverá ser apurado perante o Juízo de primeiro grau, não sendo possível analisar, neste momento processual, as questões suscitadas na petição de fls. 1.219/1.235.
De qualquer forma, na linha do que consignou o Tribunal de origem, o fato de o corpo já ter sido enviado aos EUA para a realização do procedimento de criogenia "não oferece risco de dano irreparável ou de difícil reparação à pretensão das requerentes [recorridas], que é a de sepultar os restos mortais do seu ente familiar no jazigo da família" (e-STJ, fl. 1.234), pois, caso o presente recurso especial seja desprovido pela Turma julgadora, e após o trânsito em julgado, a recorrente deverá providenciar a repatriação do corpo de seu pai, para que seja sepultado no Brasil.
Afastada essa questão, passo ao exame da matéria de fundo do presente recurso especial.

3. Da criogenia

No Brasil, país em que a maioria da população se declara católica (64,6%) e a grande maioria cristã (86,8%), segundo o Censo 2010 realizado pelo IBGE¹, a forma mais comum de destinação de restos mortais é, sem dúvida, o sepultamento em túmulo, com o respectivo enterro (inumação) em cemitério público ou particular.
Não obstante essa seja a regra na nossa cultura, há outras formas de destinação dos restos mortais de um indivíduo, entre as quais podemos citar a cremação (incineração do cadáver com posterior entrega das cinzas aos familiares em urna apropriada), regulada pela Lei de Registros Públicos (§ 2º do art. 77 da Lei n. 6.015/1973); a destinação gratuita do próprio corpo, após a morte, para fins científicos ou altruísticos, nos termos do art. 14 do Código Civil; e a possibilidade de destinação do cadáver não reclamado às escolas de medicina, para fins de estudo ou pesquisa científica, conforme disciplina a Lei n. 8.501, de 30 de novembro de 1992, que em seu art. 2º assim estabelece:
Art. 2. O cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo de trinta dias, poderá ser destinado às escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.
Há, ainda, diversas outras modalidades de destinação do cadáver bem diferentes da tradicional regra do sepultamento verificadas em diversas partes do mundo, apesar de não previstas na legislação brasileira, dentre as quais podemos citar, a título de exemplos:
i) a "resomação" ou "biocremação" - processo em que, utilizando-se água superaquecida e hidróxido de potássio, o cadáver é liquefeito, sobrando apenas os ossos, os quais são cremados e devolvidos aos familiares em uma urna;
ii) os "recifes eternos" (eternal reefs) - procedimento em que se misturam os restos mortais de um indivíduo com cimento ecológico para criar formações de recifes artificiais no fundo do mar;

1 IBGE, Censo 2010 - disponível em acesso em 12.12.2018.

iii) a "plastinação" - procedimento que, semelhante à mumificação, consiste em preservar o corpo em uma forma semireconhecível. Segundo informações obtidas no site www.hypescience.com, essa técnica foi "inventada pelo anatomista Gunther von Hagens", sendo "usada em escolas de medicina e laboratórios de anatomia para preservar amostras dos órgãos para a educação. Mas von Hagens tomou o processo um passo adiante, e criou exposições de corpos plastinados como se estivessem congelados no meio de suas atividades cotidianas. Segundo o Instituto de Plastinação, milhares de pessoas se inscreveram para doar seus corpos para a educação ou exposição".

Outra forma de destinação do corpo humano para depois da morte não prevista em nossa legislação, que vem ganhando muitos adeptos no mundo todo, e que diz respeito ao caso ora em julgamento é a criogenia.
A criogenia (ou criopreservação) é a técnica de congelamento do corpo humano após a morte, em baixíssima temperatura, a fim de conservá-lo, com o intuito de reanimação futura da pessoa, caso sobrevenha alguma importante descoberta científica que possibilite o seu retorno à vida.
As particularidades sobre o procedimento realizado para o congelamento e posterior conservação do corpo foram muito bem explicitadas no parecer de fls. 497-523 (e-STJ), conforme se verifica do seguinte trecho:
A criogenia é um ramo da físico-química que estuda tecnologias para a produção de temperaturas muito baixas (abaixo de -150°C, de -238°F ou de 123K), principalmente até à temperatura de ebulição do nitrogênio líquido, ou, ainda mais baixas, e o comportamento dos elementos e materiais nessas temperaturas.
A criônica, mais especificamente, é um ramo da criogenia que preserva a baixas temperaturas humanos ou mamíferos, com o objetivo de serem reanimados no futuro.
A criogenia, então, em suma, consiste no congelamento de cadáveres a baixas temperaturas, com a finalidade de que, com os possíveis avanços da ciência, sejam, um dia, ressuscitados.
De tal modo, quando o paciente é declarado morto, os médicos tentam evitar a deterioração do corpo, injetando-lhe medicamentos específicos, e se utilizando de máquinas que mantém a circulação do sangue e a oxigenação do corpo.
O corpo é envolto em uma manta térmica especial, que ajuda a mantê-lo frio, e transportado até a clínica em temperaturas baixas, que fazem com que o cérebro exija menos oxigênio e mantenha os tecidos vivos por mais tempo.
Na clínica, o sangue do paciente é retirado ao mesmo tempo em que, por outro tubo, é inserido o líquido crioprotetor, uma substância química à base de glicerina. O líquido substitui outros compostos intracelulares, evitando que cristais de gelo se formem dentro das células. Depois de injetadas as substâncias, o corpo é direcionado para uma cabine com gás nitrogênio circulante. Lá, fica esfriando por cerca de três horas para assegurar que todas as partes do corpo serão congeladas por igual. No final do processo, o paciente estará completamente vitrificado.
Em seguida, o corpo é colocado em um saco plástico protetor e imerso em um cilindro de nitrogênio líquido, onde é monitorado. O corpo, então, repousará em tal cilindro, podendo ser visitado pela família até que a ciência descubra um modo de recuperá-lo.
A criogenia tem suas origens na publicação da obra de Robert Ettinger, em 1964, intitulada The Prospect of Immortality. Nela, o autor propôs a conservação de corpos humanos em temperaturas extremamente baixas, com base nas técnicas da criobiologia desenvolvidas ainda na década de 1950. O entusiasmo com a obra propiciou o surgimento de uma sociedade de criogenia em Nova York e foi tema debatido pela comunidade científica em uma conferência realizada em Washington D.C., no ano de 1966. O corpo de Ettinger, que veio a falecer em 2011, foi criopreservado pelo Cryonics Institute, no Michigan – o mesmo onde está o corpo do pai das litigantes2.
No Brasil, embora a criopreservação de alimentos, sêmen, cordão umbilical e até de óvulos fertilizados já faça parte do nosso cotidiano, este é o primeiro caso que se tem notícia no país acerca da utilização da criogenia para a conservação de cadáveres.

2SMITH, George P. Intimations of Immortality: Clones, Cryons, and the Law (1983). University of New South Wales Law Journal. vol.6, p. 119-132. CUA Columbus School of Law Legal Studies Research Paper No. 2016-17. Disponível em SSRN: acesso em 13.12.2018.


Todavia, constata-se que há, atualmente, em diversos países, cerca de 250 (duzentas e cinquenta) pessoas congeladas em tubos de nitrogênio e mais de 2 (duas) mil pessoas já cadastradas para serem criopreservadas após a morte, conforme informações obtidas nas páginas eletrônicas da Alcor Life Extension Foundation, fundação destinada à pesquisa e realização da criogenia, bem como do Cryonics Institute, instituto que realiza o procedimento de criopreservação, ambos localizados nos Estados Unidos.
Certo e incontroverso no caso é que o corpo de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro, pai das litigantes, encontra-se atualmente criopreservado no Cryonics Institute, no Michigan – Estados Unidos, desde julho de 2012.

4. Do mérito: violação aos arts. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB; 14 do Código Civil; e 77, parágrafo 2º, da Lei n. 6.015/1973.

De início, vale registrar que a questão a ser analisada neste recurso especial, obviamente, não consiste em saber se são válidos ou não os efeitos da criogenia sobre o corpo do pai das litigantes. Em outras palavras, não importa saber (e nem seria possível) se, a depender dos avanços da ciência, será viável ou não que o de cujus retorne à vida.
Ademais, também não há que se falar em incidência do óbice da Súmula n. 7/STJ na hipótese, pois a análise do caso não demanda o reexame do conjunto fático-probatório, mas apenas a valoração dos fatos incontroversos constantes nos autos.
Em verdade, o presente julgamento consiste tão somente na análise da manifestação de última vontade de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro, isto é, se é possível ou não inferir que o seu desejo era o de ser criopreservado após a morte, bem como se tal vontade afronta ou não o ordenamento jurídico pátrio.
Dessa forma, não obstante o ineditismo da matéria discutida, a questão que se coloca é eminentemente jurídica e sob essa perspectiva, apenas, deve ser analisada. Descabe, portanto, qualquer juízo moral e religioso sobre a suposta opção do falecido e seus resultados científicos, bem como qualquer tentativa de regulação da matéria, cuja competência é do Poder Legislativo.
Nessa linha, faço um registro para reiterar a preliminar do bem lançado voto apresentado pela Desembargadora Flávia Romano de Rezende, relatora do feito no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que, ao julgar a apelação, assim consignou (e-STJ, fls. 536-538):
Por primeiro, há que se refutar alguns argumentos expendidos na sentença combatida, eis que se revelam tendenciosos, uma vez que fincados em costumes religiosos, que não se coadunam com o Estado Laico e com a expressão moderna do Direito, na forma, aliás, destacada, em julgamento recente da ADPF 54/DF, proferido em 11/04/2012 -, pelo Exmo. Sr. Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello: 'Os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais', afirmado ainda que: 'as concepções morais religiosas — unânimes, majoritárias ou minoritárias
— não podem guiar as decisões de Estado, devendo, portanto, se limitar às esferas privadas'.
Anote-se que, hodiernamente, diante dos constantes avanços científicos e tecnológicos, divulgados com impressionante velocidade devido ao advento da internet, os operadores do direito se deparam inevitavelmente com questões inusitadas, cujo enfrentamento requer o despojamento de valores até então arraigados a costumes que se pensavam inarredáveis.
Com efeito, em menos de meio século, ocorreram avanços e mudanças de paradigmas até então indizíveis, eis que foram quebrados tabus sociais, morais e religiosos em ritmo verdadeiramente frenético.
Ora, em menos de duas décadas, quem cogitaria da 'barriga de aluguel', do congelamento, através do processo de criogenia, de cordão umbilical para preservação das células tronco, da legalização da união homoafetiva, da clonagem de animais, da fertilização in vitro e tantos outros.
Diante desta efervescência, os legisladores e julgadores são compelidos inexoravelmente a adequar o direito aos novos paradigmas sociais que se apresentam, mostrando-se inadequada a sentença que pretende taxar de 'insipiente' e 'esdrúxulo' o procedimento criogênico, que, sem embargo das opiniões contrárias, vem sendo utilizado em países como Estados Unidos e Japão para o fim de preservar cadáveres.
Admitir-se apenas a inumação como forma digna de sepultamento, e não por acaso aceito e propalado pela Igreja Católica implica em conceito parcial e excludente daqueles adotados por outras religiões.
Frise-se que a história da civilização é cíclica, de modo que, uma análise histórica do destino dos restos mortais pode reportar-nos a épocas, nas quais civilizações antigas, que legaram inegável contribuição cultural para humanidade, não tinham por hábito o descarte do corpo, mas sim a sua conservação através da mumificação que guarda similitude com a criogenia, porquanto ambos os procedimentos se lastreiam na preservação do cadáver.
Ora, no contexto mundial atual, no qual impera a globalização e a coexistência harmônica das diferenças, não se vislumbra espaço para posicionamentos conservadores e parciais que implicam em verdadeiro desalijo social.
O célebre filósofo iluminista John Locke, antes de 1700, já dissera: 'As novas opiniões são sempre suspeitas e geralmente opostas, por nenhum outro motivo além do fato de ainda não serem comuns'.
Feita essa observação preliminar, passa-se ao exame da questão jurídica propriamente dita.
Como se sabe, o ordenamento jurídico pátrio não possui previsão legal sobre a utilização da criogenia em corpo humano post mortem. Também não há qualquer vedação no nosso sistema jurídico em relação à adoção do referido procedimento.
Trata-se, assim, de verdadeira lacuna normativa.
Nessas hipóteses, para viabilizar a integração da norma jurídica, o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB (Decreto-lei n. 4.657/1942) estabelece a seguinte regra:
Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

A respeito da utilização da analogia, Carlos Maximiliano afirma que duas possibilidades são abertas: "ou falta uma só disposição, um artigo de lei, e então se recorre ao que regula um caso semelhante (analogia legis); ou não existe nenhum dispositivo aplicável à espécie nem sequer de modo indireto; encontra-se o juiz em face de instituto inteiramente novo, sem similar conhecido; é força, não simplesmente recorrer a um preceito existente, e, sim, a um complexo de princípios jurídicos, à síntese dos mesmos, ao espírito do sistema inteiro (analogia iuris)" (Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 192).
Assim, considerando a ausência de regulação a respeito da criogenia, deve-se utilizar, no presente caso, a analogia jurídica (iuris), que consiste na aplicação não somente de uma norma semelhante, como na analogia legal, mas, sim, de um conjunto de normas próximas aptas à extração dos elementos normativos necessários à integração da lacuna existente sobre o assunto.
Com efeito, o nosso ordenamento jurídico, além de proteger as disposições de última vontade do indivíduo, contempla um conjunto de normas legais que tratam de formas distintas de destinação do corpo humano após a morte em relação à tradicional regra do sepultamento (enterro), fornecendo, assim, o substrato legal necessário para a solução do litígio, conforme doravante será demonstrado.
Sem descuidar das divergências entre os concepcionistas e os natalistas quanto ao início da personalidade, a extinção desse status jurídico por meio do evento morte é ponto pacificado no direito brasileiro, na esteira do art. 6º do Código Civil. Outrossim, há direitos oriundos da personalidade que continuam sendo protegidos após a morte, pela transferência de seu exercício aos herdeiros - a exemplo dos direitos autorais - § 1º do art. 24 da Lei n. 9.610/1998 - ou pela transferência da pretensão jurídica de sua defesa em juízo – conforme consta no parágrafo único do art. 12 do Código Civil.
Em respeitável pesquisa bibliográfica comparando aspectos do fim da personalidade no direito brasileiro e no direito português, encontram-se diversos doutrinadores que reconhecem a proteção de alguns direitos da personalidade após a morte do titular, sendo eles: Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Sousa, Diogo Leite Campos, Heirinch Ewald Hörster, Nuno Manuel Pinto de Oliveira, Diana Filipa Montenegro da Silveira, Álvaro Villaça Azevedo, Silmara Juny de Abreu Chinellato, Rubens Limongi França, Ingo Wolfgang Sarlet, Gustavo Tepedino, Maria Helena Diniz, Paulo Lôbo, Francisco Amaral e José Rogério Cruz e Tucci. Em conclusão, o estudo comparativo aponta:
A tutela de pessoas falecidas é plenamente protegida no direito luso e no direito brasileiro, respectivamente, no art. 71, nº 2, e parágrafos únicos dos arts. 12 e 20, ambos do Código Civil, cujos legitimados abrangem também o companheiro.
(RIBEIRO, Ney Rodrigo de Lima. Direito à proteção de pessoas falecidas. Enfoque luso-brasileiro. Direitos da Personalidade. Organizado por Jorge Miranda, Otavio Luiz Rodrigues Junior e Gustavo Bonato. São Paulo: Atlas, 2012, p. 424/426)
Esta Turma Julgadora, por sua vez, já prestigiou, em diversas ocasiões, o cumprimento das disposições de última vontade do falecido, mesmo em detrimento de formalidades testamentárias, quando essas puderem ser supridas por outros elementos dos autos, conforme se verificam dos seguintes precedentes:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TESTAMENTO. ROMPIMENTO. POSSIBILIDADE. NULIDADE. EXISTÊNCIA. Na busca da preservação da vontade do testador, o rompimento de um testamento, com a sua consequente invalidade geral, é medida extrema que somente é admitida diante da singular revelação de que o testador não tinha conhecimento da existência de descendente sucessível. A prova em sentido contrário - de que o testador sabia da existência do descendente sucessível - mesmo existindo declaração do testador de que não tinha herdeiros necessários, impede a incidência do quanto disposto no art. 1.973 do Código Civil. A nulidade das disposições testamentárias que excedem a parte disponível do patrimônio do testador se circunscreve ao excesso, reduzindo-se as disposições testamentárias ao quanto disponível, nos termos dos arts. 1.967 e 1.968. A avaliação do conteúdo da deixa e seu cotejo com as disposições de ultima vontade do de cujus, para fins de verificação de possível invasão da legítima, são matérias adstritas ao curso do inventário. Inviável a aplicação da multa a embargos de declaração com o fito de prequestionamento (Súmula 98/STJ). Recurso especial parcialmente provido, apenas para afastar a incidência da multa do art. 538 do CPC/73, fixada na origem.
(REsp n. 1.615.054/MG, Relatora a Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 10/8/2017 – sem grifos no original.)

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. TESTAMENTO PARTICULAR. VONTADE DO TESTADOR MANTIDA. VÍCIOS FORMAIS AFASTADOS. CAPACIDADE MENTAL RECONHECIDA. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. SÚMULA N. 83/STJ. REVISÃO DE PROVAS. SÚMULA N. 7/STJ.
1. Na elaboração de testamento particular, é possível flexibilizar as formalidades prescritas em lei na hipótese em que o documento foi assinado pelo testador e por três testemunhas idôneas.
2. Ao se examinar o ato de disposição de última vontade, deve-se sempre privilegiar a busca pela real intenção do testador a respeito de seus bens, feita de forma livre, consciente e espontânea, atestada sua capacidade mental para o ato. Incidência da Súmula n. 83/STJ.
3. Incide a Súmula n. 7 do STJ na hipótese em que o acolhimento da tese defendida no recurso especial reclama a análise dos elementos probatórios produzidos ao longo da demanda.
4. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no REsp n. 1.401.087/MT, Relator o Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, DJe de 13/8/2015 – sem grifos no original)

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE TESTAMENTO PÚBLICO. 1. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. 2. VÍCIO DE FORMA. CONTEMPORIZAÇÃO DO RIGOR FORMAL DO TESTAMENTO, REPUTANDO-O VÁLIDO SEMPRE QUE ENCERRAR A REAL VONTADE DO TESTADOR, MANIFESTADA DE MODO LIVRE E CONSCIENTE. EXEGESE PERFILHADA PELA JURISPRUDÊNCIA DO STJ. 3. CONGRUÊNCIA ENTRE O DISPOSTO NO TESTAMENTO E O REAL PROPÓSITO DE SEU AUTOR. RECONHECIMENTO, DE ACORDO COM OS ELEMENTOS FÁTICOS PROBATÓRIOS REUNIDOS NOS AUTOS. 4. REITERADA ATUAÇÃO ANTIJURÍDICA DA TABELIÃ, A QUEM INCUMBIA, IMEDIATAMENTE, ZELAR PELA OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS FORMAIS. VERIFICAÇÃO. FRUSTRAÇÃO DA MANIFESTAÇÃO DE ÚLTIMA VONTADE ENCERRADA NO TESTAMENTO PÚBLICO, QUANDO ESTA, A PARTIR DOS ELEMENTOS DE PROVA REUNIDOS NOS AUTOS, REFLETE A REAL INTENÇÃO DE SEU AUTOR. INVIABILIDADE. 5. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. (...).
2. Especificamente em relação aos testamentos, as formalidades dispostas em lei possuem por finalidade precípua assegurar a higidez da manifestação de última vontade do testador e prevenir o testamento de posterior infirmação por terceiros. Assim, os requisitos formais, no caso dos testamentos, destinam-se a assegurar a veracidade e a espontaneidade das declarações de última vontade.
2.1. Todavia, se, por outro modo, for possível constatar, suficientemente, que a manifestação externada pelo testador deu-se de forma livre e consciente, correspondendo ao seu verdadeiro propósito, válido o testamento, encontrando-se, nessa hipótese, atendida a função dos requisitos formais, eventualmente inobservados.
2.2. A jurisprudência desta Corte de Justiça (a partir do julgamento do Resp n. 302.767/PR), em adoção a essa linha de exegese, tem contemporizado o rigor formal do testamento, reputando-o válido sempre que encerrar a real vontade do testador, manifestada de modo livre e consciente.
3. Na hipótese dos autos, sem proceder a qualquer consideração de ordem moral, especialmente porque a lei a admite, é certo que a vontade manifestada pelo autor do testamento de dispor sobre os bens disponíveis da herança, em detrimento da filha reconhecida a posteriori - intuito sobre o qual, como visto, nem mesmo a recorrente controverte -, restou substancialmente demonstrada, cuja verificação deu-se, de modo uníssono, pelas instâncias ordinárias com esteio nos elementos de prova reunidos nos autos.
(...)
4. Em que pese a existência de vício de forma (testemunhas instrumentárias, funcionários do cartório, que não presenciaram a lavratura do testamento, apondo as respectivas assinaturas posteriormente), a confirmar a reiterada atuação antijurídica da Tabeliã, a quem incumbia, imediatamente, zelar pela observância dos requisitos formais, inviável, na hipótese dos autos, frustrar a manifestação de última vontade encerrada no testamento público, quando esta, a partir dos elementos de prova reunidos nos autos, refletiu, indene de dúvidas, a real intenção de seu autor.
5. Recurso especial improvido.
(REsp n. 1.419.726/SC, de minha Relatoria, Terceira Turma, DJe de 16/12/2014 – sem grifos no original)

Nota-se, portanto, que o ordenamento jurídico confere certa margem de liberdade à pessoa para dispor sobre seu patrimônio jurídico após a morte, assim como protege essa vontade e assegura que seja observada. Demais disso, as previsões legais admitindo a cremação e a destinação do cadáver para fins científicos apontam que as disposições acerca do próprio corpo estão incluídas nesse espaço de autonomia. Trata-se do direito ao cadáver.
O direito ao cadáver é, pois, reconhecido como um desdobramento do direito de personalidade por juristas da envergadura de Miguel Reale3, Adriano De Cupis4 e Carlos Alberto Bittar, cuja lição é de oportuna transcrição nesse voto:
Como prolongamento do direito ao corpo, e em nosso entender, sob a mesma base, encontra-se o direito da pessoa de dispor quanto ao destino do próprio cadáver, devendo ser respeitada a sua vontade pela coletividade, salvo se contrária à ordem pública. A morte opera a separação do ser, remanescendo, por certo tempo, a forma material e alguns componentes, até a consumação definitiva, persistindo, enquanto presentes, o direito de personalidade correspondente (direito ao cadáver e às partes do cadáver). (BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7ª ed. Atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 85/86)

3 REALE, Miguel. Os direitos da personalidade. Disponível em:
acesso em 12.12.2018.
4 "O cadáver é, além disso, objeto de um direito privado não patrimonial, emergente do costume e que compreende a faculdade de determinar o modo e a forma de seu destino normal", in DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p.99.


Doutrina recente procurou apresentar um panorama das concepções acerca da natureza desse direito e, embora o tenha feito a fim de analisar o regramento jurídico da doação de órgãos, verifica-se que as lições sobre o direito ao cadáver são perfeitamente adequadas e aplicáveis à discussão sobre a criogenia, por tratar-se de forma pouco ortodoxa de destinação de restos mortais. Nesse sentido, o autor observou que:
O direito ao cadáver é direito subjetivo (facultas agendi), na medida em que seu exercício é a expressão da vontade do titular desse direito, ou seja, é a tradução do seu querer para com o objeto que está em jogo.
(TRONCO, Arthur Abbade. O direito ao cadáver e a doação de órgãos pós-morte. Revista de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Ed RT, out-dez. 2017, vol 13. Ano 4, p. 68-98)

Ainda no entender do autor, o direito ao cadáver seria uma vertente do direito ao próprio corpo e, portanto, um direito da personalidade, que compreende o direito às exéquias, consubstanciado na possibilidade de optar-se por uma forma de sepultamento, assim como a autorização para dispor do corpo morto, no todo ou em partes, a exemplo da doação de órgãos.
Embora existam defensores da tese de que caberia ao Estado determinar a destinação do cadáver, atendendo ao interesse público, essa concepção não se amolda ao ordenamento jurídico, que disciplina a matéria no âmbito privado e prestigia a autonomia tanto no aspecto patrimonial, a exemplo do art. 1.857 do Código Civil, que exprime o direito da pessoa capaz de dispor, por testamento, do seus bens, para depois de sua morte; quanto extrapatrimonial, como no inciso III do art. 1.609 do Código Civil, que cuida do reconhecimento de filiação por testamento, além do já mencionado art. 14 do mesmo diploma legal.
Sendo assim, é conveniente frisar que também os direitos de personalidade, e entre eles o direito ao cadáver, se orientam pela lógica do Direito Privado, primando pela autonomia dos indivíduos, sempre que esta não violar o ordenamento jurídico. Apenas como contraponto, lembre-se que, no âmbito do Direito Público, é a lei que rege e fundamenta a ação de seus atores. Com efeito, sob a égide do Direito Privado, os particulares têm uma margem de liberdade na orientação de suas condutas, e a lei funciona, em regra, como um limite e uma proteção, mas não como fundamento. Por outro lado, os entes públicos dependem da lei para atuar, pois na falta dela, não podem fazê-lo.
Percebe-se, com isso, que a natureza do direito em questão tem inegável aspecto prático, à luz da dicotomia entre o Direito Público e o Direito Privado, cuja relevância para nossa tradição jurídica foi muito bem lembrada em recente obra de Otavio Luiz Rodrigues Junior:
Longe de obsoleta, a separação é útil, preserva importantes espaços da autodeterminação, justifica indiretamente a autonomia epistemológica do Direito Privado, tem fundamento histórico e permite a solução de casos da realidade prática com grande êxito. (RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: Estatuto Epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. 1ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2019. p. 143)

No caso em análise, por sua natureza privada, a escolha feita pelo particular de submeter seu cadáver ao procedimento da criogenia encontra proteção jurídica, na medida em que sua autonomia é protegida pela lei e não há vedação à escolha por esse procedimento.
Por outro lado, é certo que essa liberdade só será objeto da proteção na medida em que não violar o ordenamento em vigor, incluindo não somente a lei, mas também os costumes e os princípios que ele encerra5, visto que são disciplinadores das relações em nossa sociedade.
No caso, como exposto, não há norma proibitiva da submissão de corpos humanos à criogenia. Tal escolha também não ofende a moral e os bons costumes, uma vez que não patrimonializa o corpo, em respeito ao caráter não patrimonial dos direitos da personalidade; tampouco implica em sua exposição pública, o que seria absolutamente incompatível com as normas sanitárias e de saúde pública e também com o devido respeito aos restos mortais humanos, visto que o corpo está acondicionado em local reservado, sem, contudo, impedir a visitação dos entes queridos.

5 "Em qualquer das hipóteses de disposição de partes do corpo, os limites da autonomia privada devem ser observados, ou seja, o ato não pode ultrapassar o que é permitido pela Constituição Federal, pelas leis e pela ordem pública, além de observar a dignidade humana como valor fundamental de todos os atos jurídicos", in BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da personalidade e autonomia privada. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 173.


De igual modo, o próprio intuito do procedimento permite supor que as condições a que está submetido são condizentes com o status jurídico do corpo morto, merecedor de respeito e de certa discrição, compatíveis com o pacífico descanso que, de um modo geral, as culturas ocidentais conferem aos seus mortos.
Decorre, também, da natureza e classificação do direito ao cadáver, que a vontade objeto da proteção jurídica é aquela exprimida pelo finado, quando ainda vivo. Os familiares, portanto, que ora litigam acerca do destino dos restos mortais do falecido, não são os titulares por excelência desse direito, mas adquirem a capacidade jurídica de fato para exercê-lo, ante a evidente impossibilidade do falecido.
Em monografia dedicada ao estudo da extração e transplante de órgãos e tecidos humanos no direito espanhol, Víctor Angoitia Gorostiaga identificou que o cadáver é objeto de proteção jurídica, ainda que despido de personalidade, em razão do princípio da intangibilidade, consagrado naquela cultura. Não obstante, reconhece que o princípio da autodeterminação do indivíduo resguarda sua autonomia acerca do próprio corpo.
Portanto, apesar de não mais exercer esses atos de vontade após a morte, é a vontade do falecido, manifestada em vida, que deve ser conhecida e respeitada:
No se trata, en definitiva, de que los vivos decidan lo que se hace con los muertos, ni siquiera de dilucidar artificiosamente quién aparece más legitimado para adoptar aquella decisión, sino de articular los cauces jurídicos que posibiliten la averiguación o determinación de la voluntad de quien ha fallecido, en aquellas hipótesis en que la misma no se había manifestado en modo alguno.
(GOROSTIAGA, Víctor Angoitia. Extracción y Transplante de órganos y Tejidos Humanos. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 124)

Assim, percebo que o mero reconhecimento do direito ao cadáver não é suficiente para o deslinde da questão ora em discussão. É preciso investigar a cargo de quem ficará seu exercício, bem como se são exigíveis especiais condições ou formalidades para tal. Esse é, por certo, o ponto central deste litígio.
Na hipótese, o Tribunal de origem, por ocasião do julgamento dos embargos infringentes, entendeu que, "inexistindo manifestação expressa de vontade do Sr. Luiz Felippe quanto ao congelamento de seu corpo após a morte; inexistindo indícios de chance de cura e de uma vida digna, não há como autorizar o traslado do corpo do Sr. Luiz Felippe para ser submetido ao procedimento de criogenia, devendo prevalecer o enterro como forma de sepultamento e destino dado ao corpo após a morte" (e-STJ, fl. 733).
Da leitura do inteiro teor do acórdão recorrido, verifica-se que as razões de decidir estão embasadas na ausência de manifestação expressa de vontade do genitor das litigantes acerca da submissão de seu corpo ao procedimento de criogenia após a morte.
Ocorre que, analisando as regras correlatas dispostas no ordenamento jurídico - que disciplinam diferentes formas de disposição do corpo humano após a morte
-, em razão da necessidade de extração da norma jurídica a ser aplicada ao caso concreto, considerando a existência de lacuna normativa, verifica-se que não há exigência de formalidade específica acerca da manifestação de última vontade do indivíduo.
Nesse sentido, por exemplo, é o que dispõe o § 2º do art. 77 da Lei n. 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), que disciplina a cremação do cadáver, ao estabelecer o seguinte:

Art. 77. Nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento ou do lugar de residência do de cujus, quando o falecimento ocorrer em local diverso do seu domicílio, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico, se houver no lugar, ou em caso contrário, de duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte. (Redação dada pela Lei nº 13.484, de 2017)

§ 1º Antes de proceder ao assento de óbito de criança de menos de 1 (um) ano, o oficial verificará se houve registro de nascimento, que, em caso de falta, será previamente feito. (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).

§ 2º A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e, no caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária.
(Incluído pela Lei nº 6.216, de 1975).

Da análise do referido dispositivo legal, extrai-se que, com exceção da hipótese de "morte violenta" - que necessita também de autorização judicial -, os requisitos para a realização da cremação do cadáver são: i) a existência de atestado de óbito assinado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico legista; e ii) a anterior manifestação de vontade do indivíduo de ser incinerado após a morte.
Assim, ao contrário do que ficou consignado no acórdão recorrido, muito embora seja recomendado, a fim de evitar futuros litígios entre os familiares, a lei não exige que a pessoa tenha deixado por escrito a vontade de ser cremada após a morte, isto é, não há exigência legal de que essa manifestação de vontade seja formalizada por meio de escritura pública, testamento ou outro documento correlato, sobretudo porque na nossa cultura não é de praxe deixar formalizado esse tipo de última vontade.
Dessa maneira, não exigindo a Lei de Registros Públicos forma especial para a manifestação em vida em relação à cremação, será possível aferir a vontade do indivíduo, após o seu falecimento, por outros meios de prova legalmente admitidos.
Nesse ponto, é de se ressaltar que, em casos envolvendo a tutela de direitos da personalidade do indivíduo post mortem (direito ao cadáver), o ordenamento jurídico legitima os familiares mais próximos a atuarem em favor dos interesses deixados pelo de cujus. São exemplos dessa legitimação as normas insertas nos arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil, que assim dispõem:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Outro exemplo interessante diz respeito à legitimidade dos familiares em relação à autorização para a remoção de órgãos, tecidos e outras partes do corpo humano para fins de transplante, conforme estabelece o art. 4º da Lei n. 9.434/1997:

Art. 4º A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.

Logo, na falta de manifestação expressa deixada pelo indivíduo em vida acerca da destinação de seu corpo após a morte, presume-se que sua vontade seja aquela apresentada por seus familiares mais próximos.
Trazendo a referida premissa para o caso dos autos, em decorrência da integração da norma pela analogia, conclui-se que os familiares podem traduzir a expressão da vontade da pessoa no sentido de ser submetida ao procedimento da criogenia após o seu falecimento, observando-se sempre as particularidades de cada caso concreto.
A hipótese em julgamento, todavia, guarda certa peculiaridade que demanda um exame pormenorizado dos autos, notadamente em relação às circunstâncias fáticas incontroversas estabelecidas pelas instâncias ordinárias.
Isso porque, conforme já relatado, a disputa judicial em relação ao destino do corpo de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro é travada entre suas filhas - recorrente e recorridas -, razão pela qual, estando todas as partes na mesma linha sucessória (descendentes de 1º grau), não há que se falar, em princípio, na presunção em favor de alguma delas.
Entretanto, não se pode ignorar (e isso é fato incontroverso nos autos) que a recorrente conviveu e coabitou com seu pai por mais de 30 (trinta) anos, após ele ter se divorciado da mãe das recorridas, sendo certo que a maior parte desse tempo (mais de 20 anos) a recorrente Lígia e seu pai residiram nas cidades de Belém/PA e Rio de Janeiro/RJ, ao passo que as recorridas Carmen Monteiro e Denise Monteiro sempre residiram no Rio Grande do Sul.
Desse modo, não obstante as autoras e a ré possuam o mesmo grau de parentesco com o falecido, é razoável concluir, diante das particularidades fáticas do presente caso, que a manifestação da filha Lígia, ora recorrente, é a que traduz a real vontade de seu genitor em relação à destinação de seus restos mortais, pois, sem dúvida alguma, é a que melhor pode revelar suas convicções e desejos, em razão da longa convivência com ele, que perdurou até o final de sua vida.
Há informação nos autos, ainda, que Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro lavrou uma procuração pública em favor de sua filha Lígia, com quem residia, outorgando-lhe amplos, gerais e irrestritos poderes, o que "aponta a confiança irrestrita inerente a uma convivência longeva entre pai e filha" (trecho do acórdão de apelação de fl. 543, e-STJ).
Ressalte-se, também, conforme consignado no acórdão de fls. 532-561 (e-STJ), que a recorrente juntou diversas declarações, com firma reconhecida, de "pessoas que guardavam os mais diversos vínculos com o de cujus — médicos, empregados domésticos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, parentes e amigos -, tendo em comum o convívio próximo com o de cujus, nos seus derradeiros momentos" (e-STJ, fl. 549), sendo todos no sentido de que seu pai, de fato, desejava ser criopreservado após o seu falecimento.
Por outro lado, as autoras, conforme constou do acórdão de apelação, "não lograram sequer comprovar que mantinham qualquer contato com seu falecido pai, o que seria facilmente demonstrado tanto através de missivas, contas telefônicas, e-mail, comprovantes de fax ou mesmo através de passagens de avião ou ônibus, não sendo demais lembrar que impressões tiradas de convívio pretérito não têm o condão de demonstrar a vontade de seu genitor quando de seu óbito" (e-STJ, fl. 547).
Ademais, da leitura da petição inicial (e-STJ, fls. 3-8), verifica-se que a causa de pedir está totalmente embasada no desejo das próprias autoras (recorridas) de que seu pai tenha um "sepultamento digno em território nacional", sem tentar infirmar a presunção de que sua irmã Lígia, por ter convivido com o genitor delas por mais de 30 (trinta) anos, teria melhores condições de expressar sua vontade, ou mesmo de demonstrar que o desejo de seu pai era o de ser sepultado na forma tradicional.
Questão interessante que poderia eventualmente surgir, na hipótese dos autos, consistiria em averiguar de quem seria a responsabilidade pelo pagamento dos custos, que são bastante elevados, referentes ao procedimento da criogenia.
Em outras palavras, havendo o reconhecimento de que a última vontade do indivíduo era a de ser submetido à criogenia - seja porque deixou testamento ou escritura pública nesse sentido, seja porque essa vontade foi reconhecida por outros meios de prova, como no caso - quem deveria arcar com os custos do respectivo procedimento? Essa responsabilidade seria do espólio ou dos herdeiros? Deve-se preservar a legítima, isto é, o procedimento somente poderia ser viabilizado se o custo fosse suportado por, no máximo, metade do patrimônio deixado pelo de cujus?
Tratam-se de questões jurídicas extremamente relevantes, as quais demandariam, certamente, uma análise ainda mais aprofundada das normas correlatas.
No caso dos autos, contudo, essa discussão é irrelevante.

Isso porque, revela-se incontroverso nos autos que todas as despesas com a realização do procedimento da criogenia no corpo de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro foram custeadas por sua filha Lígia, ora recorrente, não havendo qualquer gasto suportado pelo espólio ou por suas irmãs paternas (recorridas).
A propósito, na petição de fls. 1.237-1.278 (e-STJ), a recorrente informou que "o valor expendido para o acolhimento do corpo e sua criopreservação, ad aeternum, foi integralmente pago, à época U$ 28.000,00 (vinte e oito mil dólares)", ressaltando, ainda, que "todos os custos com o procedimento foram suportados pela recorrente, desde a fase de manutenção do corpo no Brasil, que perdurou por pelo menos 5 (cinco) meses na Concessionária Rio Pax", ocasião em que desembolsava diárias no valor aproximado de R$ 1.000,00 (mil reais), "até sua liberação e traslado para o Instituto nos EUA".
Nesse ponto, destaco, ainda, que a recorrente, durante a fase de conhecimento, chegou a abdicar de sua parte na herança, bem como se propôs a custear duas viagens por ano (passagens e hotel) para as autoras visitarem o corpo de seu genitor no Cryonics Institute, considerando ser permitido a visitação "tal como ocorre nos cemitérios convencionais, havendo até mesmo local para depósito de flores" (e-STJ, fl. 1.238), desde que elas aceitassem a realização da vontade de seu pai no sentido de ser criopreservado.
Essas alegações constam na petição de fls. 118-123 (e-STJ), a qual fora redigida pela própria recorrente e juntada aos autos ainda na fase de conhecimento, possuindo o seguinte teor, na parte que interessa:

Excelência, o congelamento de corpos realmente pode nos parecer estranho, mas criogenia não é crime!!! É o primeiro caso no Brasil, é INÉDITO!! Apesar de haver mais de mil corpos congelados nos EUA.
Pode nos soar estranheza, porém foi o que meu pai desejou!!! E o desejo dele não é ilegal! Meu pai era engenheiro civil, amante da ciência, da inovação e da tecnologia.
A última manifestação de vontade está devidamente amparada no nosso ordenamento jurídico, através do princípio da dignidade da pessoa humana, da autonomia individual e respeito à pessoa, e da liberdade de consciência.
Minhas meio irmãs mal possuíam contato com meu pai, telefonando pra ele uma vez por mês, mais ou menos, não sabendo de seus desejos.
Para elas, talvez lhes cause estranheza o fato de congelar um corpo para mantê-lo conservado, mas ERA O QUE MEU PAI DESEJAVA!!!
Ele não deixou isso por escrito, pois nunca passou pela cabeça dele, e muito menos pela minha, que elas seriam contra. Tenho certeza que se elas tivessem tomado ciência dessa vontade de meu pai, não estariam se opondo agora.
Se o que elas desejam é que o corpo vá para um cemitério, afirmo, desde já, que o Cryonics Institute é um cemitério, registrado como tal legalmente (posso apresentar a documentação legal comprovando), só que ao invés de enterrar os corpos, eles permanecem congelados.
Se o que elas desejam é manter contato com o corpo do meu pai, me comprometo, desde já, a custear duas viagens ao ano às duas autoras para Detroit-EUA, com passagens e hospedagem pagas, para ir visitar, não somente um mármore no cemitério escrito o nome dele, mas sim o corpo do meu pai INTACTO.
Excelência, chego ao ponto de, desde já, abrir mão para as autoras da parte que me cabe na herança deixada pelo meu pai (a saber três imóveis) em troca de ver a vontade do meu pai realizada!

Tais afirmações, a meu sentir, reforçam ainda mais que a recorrente, de fato, expressa a real vontade de seu genitor no sentido de ser criogenizado após o seu falecimento.
Por essas razões, impõe-se o restabelecimento do acórdão que julgou a apelação da ora recorrente, no sentido de permitir a continuação do procedimento da criogenia, visto ser essa a vontade do de cujus revelada nos autos, a qual deve ser preservada, ainda que contrária à vontade dos demais familiares (filhas/recorridas).

5. Da situação jurídica consolidada no tempo

Por fim, impende destacar um fato que, embora não se trate de questão propriamente jurídica, deve ser levado em consideração na análise do caso em julgamento.
É que, conforme dito anteriormente, o corpo de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro já se encontra submetido ao procedimento da criogenia, no Cryonics Institute, na cidade de Michigan (EUA), desde julho de 2012, isto é, há quase 7 (sete) anos.
Não se olvida que a discussão era extremamente relevante no momento do falecimento do genitor das partes, que ocorreu em janeiro de 2012. Hoje, no entanto, passados mais de 7 (sete) anos da data do óbito, certamente não encontra a mesma repercussão no ânimo dos envolvidos, pois ultrapassado o sempre difícil período de luto pela perda de um ente querido.
Com efeito, embora legítimo o interesse das recorridas em tentar sepultar seu pai em território nacional, não se pode ignorar que a situação jurídica, de certa forma, já se consolidou no tempo.
De fato, negar provimento ao presente recurso especial para que o corpo seja repatriado e, posteriormente, sepultado e enterrado no Rio de Janeiro/RJ, cidade na qual as recorridas nem sequer residem, tal como determinado no acórdão que acolheu, em parte, os embargos infringentes (e-STJ, fl. 733), não se mostra razoável, pois, além de restabelecer o difícil sentimento de perda e sofrimento já experimentado quando do falecimento, tal situação, certamente, não teria o condão de assegurar a pacificação social almejada pelo direito.
A solução da controvérsia, dessa forma, perpassa pela observância ao postulado da razoabilidade, porquanto, a par do reconhecimento de que o de cujus realmente desejava ser submetido ao procedimento da criogenia após a morte, não se pode ignorar, diante da singularidade da questão discutida, que a situação fático-jurídica já se consolidou no tempo, impondo-se, dessa forma, a preservação do corpo do pai da recorrente e das recorridas submetido ao procedimento da criogenia no referido instituto.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para julgar improcedente a ação ordinária, mantendo-se, em consequência, o corpo de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro submetido ao procedimento da criogenia em atenção à sua vontade manifestada em vida.
Ficam as recorridas condenadas ao pagamento das custas processuais e honorários de sucumbência fixados em R$ 1.000,00 (mil reais), nos termos do art. 20, §

4º, do CPC/1973.

É o voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO TERCEIRA TURMA

Número Registro: 2017/0209642-3 PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.693.718 / RJ

Números Origem: 00576066120128190001 201725104979 576066120128190001
PAUTA: 26/02/2019 JULGADO: 26/03/2019

Relator
Exmo. Sr. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro MOURA RIBEIRO
Subprocuradora-Geral da República
Exma. Sra. Dra. MARIA IRANEIDE OLINDA SANTORO FACCHINI
Secretário
Bel. WALFLAN TAVARES DE ARAUJO

AUTUAÇÃO
RECORRENTE : LIGIA CRISTINA MELLO MONTEIRO
ADVOGADOS : CRISTIANE DE MEDEIROS BRITO CHAVES FROTA - RJ085056 SORAYA RIBAS SAMPAIO BARROS - RJ146178
PAULA ALEXANDRA MALGRAND PRINCIPE PESSOA - RJ022911 RECORRIDO : CARMEN SILVIA MONTEIRO TROIS
RECORRIDO : DENISE NAZARE BASTOS MONTEIRO
ADVOGADOS : WALTER JOSE FAIAD DE MOURA E OUTRO(S) - DF017390 RODRIGO MARINHO CRESPO - RJ135204
ANTONIO VANDERLER DE LIMA - RJ035211 THIAGO AMORIM RODRIGUES - RJ183823
ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Pessoas naturais - Direitos da Personalidade

SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr(a). CRISTIANE DE MEDEIROS BRITO CHAVES FROTA, pela parte RECORRENTE: LIGIA CRISTINA MELLO MONTEIRO
Dr(a). RODRIGO MARINHO CRESPO, pela parte RECORRIDA: DENISE NAZARE BASTOS MONTEIRO

CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Terceira Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Moura Ribeiro (Presidente), Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator.


Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi.