APELAÇÃO CÍVEL Nº 5000807-88.2021.4.04.7100/RS
RELATORA: DESEMBARGADORA FEDERAL MARGA INGE BARTH TESSLER
APELANTE:
ADVOGADO:
APELADO:
MPF:
INTERESSADO
RELATÓRIO
Trata-se de mandado de segurança em que o impetrante objetiva a concessão de ordem para:
"a. garantir o direito constitucional do impetrante de se manifestar a respeito de qualquer temática e de exercer, livremente, as suas outras profissões, que não se encontram abrangidas pela competência fiscalizadora do impetrado;
b. determinar o imediato encerramento/arquivamento do PEP 54/2020, do PEP 60.668/2019, da Sindicância 64.354 e da Sindicância 15.607/2, sob pena de multa diária de R$1.000,00 (mil reais), enquanto os procedimentos administrativos ilícitos permanecerem ativos;
c. determinar que o impetrado se abstenha de instaurar novos procedimentos que violem os direitos constitucionais do impetrante de liberdade de manifestação e de livre exercício profissional, sob pena de multa diária de R$1.000,00 (mil reais), incidente sobre cada novo procedimento ilegal instaurado (...)"
Narra, em síntese, que o CRM está extrapolando sua competência ao fiscalizar suas condutas pessoais. Relata que possui perfil de figura pública na rede social Instragram, com o intuito de compartilhar fatos do seu dia a dia, suas atividades e vida pessoal, não se tratando, portanto, de um perfil profissional de médico, pois além da medicina, exerce atividades como escritor, professor, palestrante e influenciador. Diz que tem muitos seguidores e que esta talvez seja a motivação dos diversos procedimentos instaurados no Conselho. Diz que há notória perseguição, considerando que são instaurados vários processos éticos eivados de ilegalidades. Nesse contexto, cita o PEP 54/2020, PEP 60.558/2019, Sindicância 64.354 e sindicância 15.607/20. Discorre vastamente sobre a legislação de regência e cita jurisprudência.
Processado o feito, a sentença denegou a segurança, extinguindo o feito, com resolução de mérito, forte no art. 487, I, do CPC.
Em apelação, o impetrante defende a ausência de análise dos fundamentos apresentados na exordial, pois a petição inicial foi clara e expressa no sentido de que a sindicância 64.354/2019 foi citada apenas e tão somente a título de exemplo das condutas ilícitas adotadas pela autarquia, com o intuito de comprovar um padrão de comportamento que justifica a pretensão exposta na petição; que a pretensão apresentada nos presentes autos consiste apenas, no afastamento da fiscalização do CRM sobre as condutas do impetrante realizadas como escritor, empresário e influenciador, pois inexiste previsão legal que atribua competência ao impetrado para fiscalizar os atos do impetrante como empresário e dono de um SPA; que os processos éticos não seguem trâmites legais, tampouco asseguram o contraditório e a ampla defesa. Postulou pela reforma da sentença.
O impetrante junta documentos nos eventos 42/43 e alega fato novo.
Com contrarrazões, vieram os autos.
O MPF opinou pelo parcial provimento da apelação.
É o relatório.
VOTO
O recorrente postula a apreciação e declaração de nulidade de procedimentos éticos profissionais em andamento junto ao CRM (Sindicância 64.354/2019, PEP n. 60.668/2019 e PEP 54/2020), narrando ilegalidades que entendem terem sido cometidas no trâmite administrativo.
Contudo, nos temos do artigo 1º da Lei n. 12.016/09, o Mandado de Segurança visa a proteger direito líquido e certo, comprovável por prova pré-constituída, não admitindo instrução probatória.
Como destacado pelo representante do Ministério Público Federal, a resolução das demandas pretendidas pelo impetrante demandam instrução probatória, até mesmo eventual prova técnica, na medida em que alega ilicitude na coleta das provas (em vídeos e CDs), diligências incabíveis na via eleita (ev - PARECER1):
No caso em tela, a análise das nulidades pretendida pelo impetrante demandam a análise acerca de:
(1) ter sido ou não arquivada a Sindicância n. 15.607/20, pela ausência de intimação do médico acerca de tal ato;
(2) que o suposto arquivamento foi uma atitude desesperada da autarquia tão somente para evitar a apreciação dos abusos realizados pelos seus agentes;
(3) que o PEP n. 54/2020 foi irregularmente transformado de “denúncia anônima” para “procedimento ex officio”, na medida em que esta decisão não foi submetida à Câmara de Sindicância (conforme estabelece o § 4º do artigo 12 do Código de Processo Ético Profissional), visto que o relatório do sindicante já tipificava o procedimento como ex officio e a decisão foi proferida pelo corregedor;
(4) que os responsáveis pela condução ilegal do procedimento são os mesmos que julgarão as atividades do impetrante, o que fere o princípio da legalidade, bem como imparcialidade da Autarquia;
(5) que somente na esperança de ocultar suas ilegalidades da apreciação judicial, o CRM apresentou os dados de suposto responsável pela gravação e degravação de vídeo que instruiu o Processo Ético Profissional de n. 54/2020 (em trâmite);
(6) o PEP n. 60.668/2019 foi julgado antes da instrução, visto que antes da citação do impetrante os documentos já continham registro manuscrito de sua condenação, o que comprova que assim que a denúncia chegou ao Conselho, os agentes públicos julgaram e condenaram o médico, impossibilitando, portanto, uma análise isenta e imparcial da denúncia
Ocorre que, como demonstrado, a resolução das demandas pretendidas pelo autor inegavelmente demanda análise probatória e até produção de prova técnica, o que não se coaduna com a via eleita.
Assim, no que diz respeito a esses pedidos, não merece provimento a apelação, devendo ser mantida a sentença que denegou o pedido de suspensão/cancelamento das sindicâncias e procedimentos administrativos instaurados contra o impetrante junto ao conselho impetrado.
Portanto, como as pretensões demandam dilação probatória, o que não se admite em sede de ação mandamental, é de ser denegada a segurança quanto aos pedidos de suspensão/cancelamento das sindicâncias e procedimentos administrativos instaurados contra o impetrante junto ao conselho impetrado.
Contudo, ainda que seja da própria essência da Autarquia a fiscalização e investigação das condutas profissionais de seus membros, o impetrante sustenta que o CRM atua de forma ilegal, fiscalizando atos realizados no desempenho de suas outras atividades profissionais, diferentes do exercício da medicina.
Na hipótese, verifica-se que o impetrante, além de médico, exerce outras atividade profissionais (tais como a de escritor, influenciador digital e empresário) e possui um perfil nas redes sociais direcionado a todas as suas atividades, bem como a sua vida pessoal.
Em decorrência das postagens na internet alega que tem sofrido sucessivas denúncias anônimas e procedimentos administrativos junto ao CRM, sob a acusação de estar infringindo o Código de Ética Médica, bem como a legislação que rege a profissão.
Da mesma forma que o Ministério Público Federal em segundo grau, entendo que embora o impetrante seja médico e exerça a profissão, deve ter assegurada a liberdade de opinar publicamente a respeito de qualquer assunto, não estando prevista, ao que tudo indica, entre as atribuições do Conselho Profissional pretender alcançar atos estranhos à profissão de médico.
Nesse sentido, transcrevo excerto do parecer do MPF (ev. 4):
DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
O impetrante sustenta que o CRM atua de forma ilegal, fiscalizando atos realizados no desempenho de suas outras atividades profissionais, diferentes do exercício da medicina.
Com razão.
A liberdade de opinião e a proibição de toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística, bem como a livre manifestação do pensamento são pilares da democracia, estando garantidos nos artigos 220, caput e § 2º e 5º, incisos IV e IX da Constituição Federal, como se verifica:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (..)
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Art. 5º 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Também no artigo 5º é assegurado o direito ao exercício de qualquer trabalho ofício ou profissão:
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão,
Referido dispositivo arrola, ainda, entre os direitos e garantias fundamentais dos brasileiros o princípio da legalidade, segundo o qual:
II - Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
Por fim, a Carta Magna garante o trabalho e a educação como direito social de todos, os quais o Estado tem o dever de promover, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 6° c/c art. 205 da CF/88).
Na hipótese sub judice, verifica-se que o impetrante, além de médico, exerce outras atividade profissionais (tais como a de escritor, influenciador digital e empresário) e possui um perfil nas redes sociais direcionado a todas as suas atividades, bem como a sua vida pessoal.
Em decorrência das postagens na internet vem sofrido sucessivas denúncias anônimas e procedimentos administrativos junto ao CRM, sob a acusação de estar infringindo o Código de Ética Médica, bem como a legislação que rege a profissão.
Ocorre que, ainda que o impetrante seja um médico e exerça a profissão, tem a liberdade de opinar publicamente a respeito de qualquer assunto e não pode ser punido por seu Conselho Profissional ao expressar opiniões em temas que não se enquadrem nas atividades previstas em lei como privativas de médico.
O Conselho de Medicina, a seu turno, somente pode agir (fiscalizando e punindo) condutas que representem infração médica, no exercício da profissão, que estejam legalmente previstas como tal.
Sobre o aspecto, o artigo 4º da Lei n. 12.842/13 estabelece quais são as atividades privativas de médico, in verbis:
Art. 4º São atividades privativas do médico:
I - (VETADO);
II - indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pósoperatórios;
III - indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;
IV - intubação traqueal;
V - coordenação da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como das mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas, e do programa de interrupção da ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;
VI - execução de sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia geral;
VII - emissão de laudo dos exames endoscópicos e de imagem, dos procedimentos diagnósticos invasivos e dos exames anatomopatológicos;
VIII - (VETADO); IX - (VETADO);
X - determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico;
XI - indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde;
XII - realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular;
XIII - atestação médica de condições de saúde, doenças e possíveis sequelas;
XIV - atestação do óbito, exceto em casos de morte natural em localidade em que não haja médico.
(...)
§ 3º As doenças, para os efeitos desta Lei, encontram-se referenciadas na versão atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.
(...)
§ 6º O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação.
Assim sendo, qualquer atividade ou manifestação fora das hipóteses previstas em lei como privativas de médico, não se encontram no âmbito de competência de apuração de fiscalização pelo impetrado.
Ocorre que, da leitura do a rtigo suprarreferido verifica-se que não se encontra previsto entre as atividades privativas de médico ensinamentos sobre alimentação e/ou saúde, os quais podem ser feitos, diga-se de passagem por nutricionistas, psicólogos, educadores físicos, fisioterapeutas e tantas outras profissões que se refiram ao bem-estar global do indivíduo.
Neste contexto, está fora das atribuições da autarquia o controle sobre estudos e discussões científicas, os quais, a seu turno, também são assegurados pelo artigo 218 da CF/88:
Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação.
§ 1º A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.
Sobre o aspecto, corretamente destacou o impetrado na apelação que consta no Evento 40:
Desse modo, é imperioso salientar que não há previsão, na Constituição Federal ou em lei infraconstitucional, acerca da competência dos integrantes do CFM ou do CRM para se reunirem e decidirem, em nome de toda a população brasileira, quais temas objetos de pesquisas científicas podem ou não ser divulgados.
Outrossim, importante destacar que as informações são de importantíssima relevância para a sociedade, além de que não há que se falar em qualquer restrição, pois o objeto dos procedimentos destacados reflete um direito constitucional do impetrante de livre manifestação de pensamento, o qual se encontra fora do âmbito de competência legal do Conselho.
Portanto, as publicações do impetrante não se referem à consulta ou a procedimentos médicos. O profissional traz considerações, estudos e opiniões, fundamentado em sua liberdade para se manifestar e compartilhar sua vida privada, bem como para exercer seus outros ofícios que, portanto, não são de competência do Conselho.
A Ciência não pode ser vista como uma verdade imutável pronta e acabada. Aliás, a Humanidade só chegou ao estado atual de seu avanço científico porque estudos e discussões são constantemente contrapostos a outros estudos e discussões.
De fato, a circunstância de o apelante ser médico e inclusive exercer tal profissão, não o impede de expressar-se livremente acerca de temas que não estejam previstos expressamente em lei como privativos da profissão de médico e, neste caso, sob fiscalização dos Conselhos Federal e Regional de Medicina.
Admitir-se o contrário seria, p. ex., concordar que um contador fosse punido e mesmo investigado por seu Conselho Profissional, ao emitir opinião pessoal sobre uma lei de trânsito; um arquiteto punido e mesmo investigado também por seu Conselho Profissional por emitir opinião sobre direito do consumidor (que são matérias estranhas as suas lides diárias mas nem por isso retiram-lhe a garantia constitucional de como cidadãos opinarem sobre elas), o que, como se sabe, não se coaduna com o ordenamento jurídico pátrio, no qual vige o Princípio da Legalidade, de forma que é permitido ao particular fazer tudo que não esteja proibido em lei (de outra banda, o mesmo Princípio da Legalidade, agora aplicado à Administração Pública, da qual os Conselhos Profissionais são também expressão, veda que se faça algo não previsto em Lei, no caso a legislação atinente ao exercício da Medicina, ao alcançar atos estranhos à profissão).
Cumpre salientar que a profissão de médico não se assemelha a de juízes e promotores de justiça, que possuem restrições de ordem constitucional e em leis complementares sobre a emissão de opiniões, visando preservar sua atuação profissional com independência e imparcialidade em nome do Estado, as quais, entretanto, não se aplicam a profissionais liberais como é o caso do autor.
Assim, de qualquer ângulo que se analise a questão, não restam dúvidas de que não cabe ao Conselho promover ingerências junto à vida privada e profissional do impetrante, sem que exista nenhuma base legal ou regulamentar para isso.
Neste contexto, o parecer é pelo provimento do pedido, a fim de que seja garantido ao impetrante a liberdade de expressão em qualquer meio em temas alheios às atividades previstas em lei como privativas de médico, sujeitando-se, se for ao caso à legislação civil e/ou criminal aplicável a qualquer cidadão após o devido e regular processo judicial.
3. Diante do exposto, o Ministério Público Federal opina pelo parcial provimento da apelação.
Frente ao panorama, é de ser dado parcial provimento à apelação, assegurando a liberdade de expressão em relação a outras profissões exercidas pelo impetrante, que não se encontrem abrangidas pela competência fiscalizadora do Conselho de Medicina, sujeitando-se, se for o caso, à legislação civil e/ou criminal aplicável a qualquer cidadão após o devido e regular processo judicial.
Ante o exposto, voto por dar parcial provimento à apelação, para conceder, em parte, a segurança, nos termos da fundamentação.